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Sobre a mentira

Por eso los hombres no huyen tanto de ser engañados como de ser perjudicados mediante el engaño; en este estadio tampoco detestan en rigor el embuste, sino las consecuencias perniciosas, hostiles, de ciertas clases de embustes. El hombre nada más que desea a la verdade en um sentido análogamente limitado: ansía las consecuencias agradables de la verdad, aquellas que mantienen la vida; es indiferente al conocimiento puro y sin consecuencias e incluso hostil frente a las verdades susceptibles de efectos perjudiciales o destructivos. Nietzsche. Sobre verdade y mentira. Madrid: Tecnos, 2008, p.21.

De acordo com Kant, jamais deveríamos mentir, porque a verdade é um dever moral categórico (incondicional) que nos dignificaria enquanto pessoas humanas. Para Kant, o que de fato importava era a verdade, não suas consequências (boas ou más). Justo por isso, o dever de declarar a verdade não comportaria exceção alguma e deveríamos inclusive revelá-la mesmo ao assassino que perseguisse a vítima que ocultávamos e assim protegíamos.

Kant escreveu: “Cada homem, porém, tem não somente o direito, mas até mesmo o estrito dever de enunciar a verdade nas proposições que não pode evitar, mesmo que prejudique a ele ou a outros. Ele mesmo por conseguinte não faz com isso propriamente nenhum dano a quem é lesado, mas é o acaso que causa este dano. Porque neste caso o indivíduo não é absolutamente livre para escolher, porquanto a veracidade (desde que seja obrigado a falar) é um dever incondicionado”1.

Nem todos pensavam assim. Schopenhauer2, por exemplo, defendia o direito de mentir em autodefesa (p.ex., contra criminosos): “Todavia, tem de ser rigorosamente mantida a limitação proposta ao caso de autodefesa, pois, fora disso, esta doutrina daria lugar a abusos abomináveis, porque, em si, a mentira é um instrumento perigoso (…). Excetuado o caso de autodefesa contra a força ou a astúcia, toda mentira é uma injustiça e por isso a justiça exige veracidade diante de todos. Mas, contra a reprovação incondicional da mentira sem exceções, que está na essência da própria coisa, fala o fato de que há casos em que mentir é até mesmo um dever, sobretudo para os médicos…”3.

A razão está com Schopenhauer. De fato, a verdade nem sempre é um bem, nem a mentira um mal. Mais: se, como dizia Spinoza, não desejamos algo por ser bom, mas o contrário, é por desejarmos uma coisa que a julgamos boa4, o valor da verdade (e da mentira) dependerá de como a interpretamos num dado contexto. Normalmente é bom e necessário dizer a verdade; mas há também verdades más, inconvenientes, ilegais e mesmo criminosas. E assim como existem verdades que matam, mentiras há que salvam.

Da perspectiva ateísta, a religião seria justamente isso: mitologia com outro nome; uma boa mentira, portanto. A Torá, a Bíblia e o Corão não seriam, pois, outra coisa senão uma compilação de fábulas que confortariam o crente e eventualmente o salvariam. Obra humana, portanto, como todo livro. O mesmo se poderia dizer da literatura, do cinema etc5.

Por que mentimos? Mentimos pelas mesmas razões que dizemos a verdade: porque nos é necessária ou apenas conveniente. E mentimos por mil razões: mentimos porque temos medo; mentimos porque nos sentimos impotentes ou incapazes de dizer a verdade; mentimos para não contrariar alguém que apreciamos; mentimos para evitar pessoas desagradáveis ou situações embaraçosas; mentimos para proteger um amigo ou prejudicar um inimigo; mentimos para evitar a reprovação alheia; e, mais frequentemente, mentimos para nós mesmos.

E mentem todos. Mentem os políticos por mais poder6; mentem os pais para proteger os filhos; mentem os casais para preservar o casamento; mentem os criminosos para consumar seus crimes; mentem os policiais para prender os criminosos; mentem os advogados para defender seus clientes; mentem os médicos para atenuar o sofrimento dos pacientes; mentem os comerciantes para vender seus produtos; mentem os generais para vencer a guerra; mentem os jornalistas para vender notícias; mentem os que fazem promessas e juramentos etc.

Daí dizer Pascal que “a vida humana não passa uma ilusão perpétua; não se faz mais do se entrenganar e se entreadular. Ninguém fala de nós em nossa presença como fala em nossa ausência. A união que existe entre os homens não é baseada senão nessa mútua enganação; e poucas amizades subsistiriam se cada um soubesse o que o amigo diz dele quando não está presente, embora fale então sinceramente e sem paixão. O homem não é portanto senão disfarce, mentira e hipocrisia, tanto em si mesmo como para com os outros. Não quer que lhe digam a verdade. Evita dizê-la aos outros; e todas essas disposições, tão afastadas da justiça e da razão, têm uma raiz natural em seu coração”7.

E por vezes a própria lei protege, e até estimula, a mentira. Que são os espiões e os agentes infiltrados senão mentirosos legais, que mentem em nome da lei e do Estado?

Casos há também em que a lei não só protege ou tolera a mentira, como condena a verdade. Com efeito, em nome da ampla defesa e do princípio da não autoincriminação, o investigado ou acusado pode não só calar a verdade (ficar em silêncio), como dar a versão que lhe parece mais favorável, não raro falsa (no todo ou em parte). Ademais, uma confissão de crime obtida por meios ilícitos (tortura etc.), por mais verdadeira, não tem valor legal algum.

Certas pessoas são, inclusive, proibidas de testemunhar, isto é, não podem declarar a verdade, conforme dispõe o art. 207 do Código de Processo Penal: “São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho”.

Se, por exemplo, um padre, violando o segredo da confissão, revelar a autoria de um crime, prestará um depoimento inválido, embora verdadeiro; e, mais, responderá pelo crime do art. 154 do Código Penal (violação do segredo profissional)8.

Normalmente, a mentira é penalmente irrelevante. Mas há formas de mentir que podem constituir crime (falsificação documental, estelionato, calúnia etc.) ou apenas agravar seu cometimento (homicídio qualificado pela traição, emboscada etc.) e outras há que podem atenuá-lo ou justificá-lo, como nos casos de legítima defesa ou estado de necessidade (p.ex., a vítima finge-se de morta ou ferida para golpear seu agressor).

É possível também falar-se de participação em delito por parte de quem presta (dolosamente) informações valiosas (verdadeiras) a criminosos e assim os auxilia na identificação e localização de suas potenciais vítimas.

Por fim, a mentira é um meio absolutamente legítimo contra condutas ilícitas ou criminosas. O professor que mente sobre a etnia ou credo dos alunos para protegê-los da ação de grupo terrorista, além de cumprir seu dever legal de proteção, faz um grande bem. A verdade é boa sob certas circunstâncias, não sempre.

Em resumo, é possível mentir para o bem e para o mal, com boas ou más razões, de modo legal ou ilegal, de forma vergonhosa ou heroica.

A verdade e a mentira não são, pois, em si mesmas louváveis ou condenáveis; tudo depende do porquê e de como mentimos.

1Textos seletos. Petrópolis: Editora Vozes, 2018, p.76.

2Sobre o fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.157.

3Ainda de acordo com Schopenhauer: “Todas as vezes que tenho direito de constrangimento, um direito absoluto de usar as minhas forças contra o outro, posso igualmente, segundo as circunstâncias, opor a astúcia à violência do outro; não cometerei injustiça com isso: por consequência, possuo um direito de mentir, na mesma medida em que possuo um direito de constrangimento. Assim, um indivíduo é detido por ladrões de estrada; eles revistam-no; ele assegura-lhes que não tem consigo mais nada do que aquilo que eles encontraram: ele está no seu pleno direito. Do mesmo modo, também, se um ladrão se introduziu durante a noite em casa, se, com uma mentira, o fizeram entrar num porão e aí o fecharam. Um homem é capturado por salteadores, barbarescos, suponho. Ele vê-se levado para o cativeiro. Para readquirir a sua libertação, não pode recorrer à força aberta; ele usa da manha e mata-os: está no seu direito. – É por esse mesmo motivo que um juramento arrancado pela força pura e simples não obriga moralmente aquele que o faz. A vítima deste abuso da força podia, com pleno direito, livrar-se do seu agressor, matando-o, e principalmente podia livrar-se dele, enganando-o. Roubaram a vossa fortuna e não estais em estado de recobrá-la pela força; se o conseguirdes pela artimanha, não fareis mal. E mesmo se o meu ladrão joga contra a mim o dinheiro que me roubou, tenho o direito de me servir de dados falsos contra ele; o que lhe recupero é, apesar de tudo, apenas a minha fortuna; para negar tudo isso, seria preciso primeiro negar a legitimidade dos estratagemas da guerra, visto que, em suma, eles são outras tantas mentiras…”.

4Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p. 106. Textualmente: “Torna-se, assim, evidente, por tudo isso, que não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa”.

5De acordo com Flávio Kothe (Arte comparada. Brasília: Editora UnB, 2016, p.646), “Mitologia, religião, ideologia política, arte – todas são produtos da faculdade de fingir como se fosse real o que ficção é e que, afetando atos, acaba sendo real. Mesmo a ciência exata, que se baseia na matemática e na generalização a partir de algumas observações e, se possível, experiências, também é produto da facultas fingendi. A matemática finge que é bem igual o que é apenas semelhante, faz de conta que conjuntos não iguais sejam idênticos entre si, ela finitiza o infinito para fins de cálculo, ela cria a ficção do zero para poder operar”.

6Maquiavel escreveu, a propósito, que: “Necessitando, portanto, um príncipe saber usar bem o animal, desse deve tomar como modelos a raposa e o leão, porque o leão não sabe se defender das armadilhas e a raposa não tem defesa contra os lobos. É preciso, portanto, ser raposa para conhecer as armadilhas e leão para aterrorizar os lobos. Aqueles que usam apenas os modos de leão, nada entendem dessa arte. Um senhor prudente, portanto, não pode nem deve manter sua palavra quando isso se torna prejudicial e quando desapareceram as causas que o levaram a empenhá-la”. O príncipe. São Paulo: La fonte, 2017, p.86.

7Pascal, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.425.

8Violação do segredo profissional

Art. 154 – Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:

Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.

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