QUEM MATOU SEVERINO DO ARACAJU?

12 de dezembro de 2013

 

José Osterno Campos de Araújo

Procurador Regional da República

Mestre em Ciências Criminais

Professor do UniCEUB

A novelesca pergunta salta da literatura de Ariano Suassuna1 e invade o foro criminal, onde se ouve: ‘Mataram Severino do Aracaju!‘. ‘Mataram o cangaceiro!‘. ‘Quem o matou?‘. ‘Quem matou o cruel latrocida?’.

2. Foi o cabra de Severino que o matou? Ou foi João Grilo – sem pegar em arma – com a ajuda de Chicó?

3. A reconstituição dos fatos e a verdadeira autoria do crime, o que se busca aqui.

DA LITERATURA

4. No dia tal do mês tal do ano tal (não se sabe), Severino do Aracaju e seu cabra invadem a cidade de Taperoá, para roubar e matar.

5. Roubam mais de 12 contos de réis e, então, matam o bispo, o padre, o sacristão, o padeiro e sua (menos dele que de outros) mulher. O frade, não matam, já que Severino confidencia – quando o frade pergunta: “Agora, eu?” – “Não, não gosto de matar frade que dá azar. Vá embora. [O frade sai]”.

6. Chega a hora de João Grilo, que, antes de morrer, pede a Severino que aceite um presente: uma gaita ressuscitadora.

7. Uma gaita ressuscitadora!? Severino não acredita: “Que conversa é essa? Já ouvi falar de chocalho bento que cura mordida de cobra, mas de gaita que cura ferimento de rifle, é a primeira vez”.

8. João Grilo faz, então, a ardilosa demonstração.

9. Diz que a gaita “foi benzida por Padre Cícero, pouco antes de morrer”, e pede o punhal de Severino. “Olhe lá!” – diz o capitão.

10. João dirige-se a Chicó, com o punhal na mão: “Agora vou dar uma punhalada na barriga de Chicó”. “Na minha, não!” – responde o companheiro, assustado. “Deixe de moleza, Chicó. Depois eu toco a gaita e você fica vivo de novo! [Murmurando, a Chicó.] A bexiga, a bexiga!”.

11. João “Acena pra Chicó, mostrando a barriga e lembrando a bexiga”, mas como Chicó não entende e antes que seu plano malogre, parte para cima do amigo, dizendo: “Homem, sabe do que mais? Vamos deixar de conversa. Toma lá! Morra, desgraçado”. “Dá uma punhalada na bexiga. Com a sugestão, Chicó cai ao solo, apalpa-se, vê a bexiga e só então entende. Ele fecha os olhos e finge que morreu”.

12. Severino diz que da facada não duvida, mas quer mesmo é ver João Grilo ressuscitar Chicó.

13. “É já!” – diz João e “Começa a tocar na gaita e Chicó começa a se mover no ritmo da música, primeiro uma mão, depois as duas, os braços, até que se levanta como se estivesse com dança de São Guido”.

14. O circo está armado. Resta, agora, João Grilo convencer Severino a passar pela experiência da morte, conversar com Padre Cícero e, depois, reviver pelo toque da gaita.

15. Para tanto, João diz a Severino que a gaita lhe dará a oportunidade única de conhecer Padre Cícero.

16. “Como?” – pergunta o capitão.

17. “Seu cabra lhe dá um tiro de rifle, você vai visitá-lo. Então eu toco na gaita e você volta” – responde João.

18. Severino acata a sugestão de João Grilo, mas, por cautela, pede que ele entregue a gaita para seu cabra.

19. “Agora eu levo um tiro e vejo Meu Padrinho?” – pergunta Severino. “Vê, não vê, Chicó?” – diz João Grilo e Chicó acrescenta: “Vê demais! Está lá, vestido de azul, com uma porção de anjinhos em redor. Ele até estava dizendo: ‘Diga a Severino que eu quero vê-lo’”.

20. Severino, então toma a decisão da ‘viagem’ e diz a seu cabra: “Ai, eu vou. Atire, atire!”. Ante a indecisão do cabra, grita com mais força: “Atire, cabra frouxo, eu não estou mandando?”. A contragosto, “O cangaceiro ergue o rifle”, no que é interrompido por Severino: “Não se esqueça de tocar a gaita”.

21. Após garantir: “Não tenha cuidado, capitão”, o cangaceiro finalmente atira. “Severino cai e o cangaceiro pega a gaita”. João Grilo diz para ele não tocar a gaita de imediato: “Deixe pobre de Severino conversar mais um pedaço com Padre Cícero!”.

22. O cangaceiro não concorda: “Não, já deu tempo dele ver o padre. [Toca na gaita] Capitão! [Toca na gaita.] Capitão! Capitão! [Empurra Severino com o pé.] Está morto!”.

23. Por fim, consciente do embuste, o cangaceiro grita: “Ah, Grilo amaldiçoado, você matou o capitão!”.

DO DIREITO

24 A pergunta, que encima este texto e para qual se busca resposta, é: quem, de fato e de direito, matou Severino do Aracaju?

25. Não há dificuldade em se responder que, de fato, quem matou o capitão-cangaceiro foi seu cabra. Não foi ele que atirou? E Severino não morreu do tiro de rifle por ele disparado?

26. A dificuldade (aparente, é verdade) reside – mormente para os jejunos em direito penal – em responder: quem, de direito (melhor, para o direito; ou, mais especificamente, para o direito penal), matou o chefe dos cangaceiros?

27. Neste ponto, necessário trazer-se à baila os conceitos jurídicos de autoria, participação e, principalmente, de autoria mediata, colhidos na doutrina nacional e estrangeira.

28. Paulo Queiroz, após referir-se às teorias unitária (ou monista); objetivo-formal; subjetiva e do domínio do fato, ensina que “A autoria pode se manifestar por três modos distintos: autoria direta (ou imediata), coautoria e autoria mediata (ou indireta). Simplificadamente: autor direto é aquele que comete pessoalmente o delito. É enfim o sujeito ativo que está implícito em todo tipo penal de crime: no homicídio é quem dispara o revólver; no furto, o que subtraia coisa; no estupro, o que constrange alguém à prática do ato libidinoso. A coautoria ocorre quando várias pessoas tomam parte, conjuntamente, no delito, de modo que o domínio do fato é comum a todos que dele participam. Finalmente, a autoria mediata dá-se quando o agente (autor mediato) se utiliza de outrem como instrumento para a realização do crime2 (Sublinhei).

29. É, ainda, Paulo Queiroz que, mais à frente, esclarece: “A chamada autoria mediata (…) ocorre quando o autor (mediato) se utiliza, dolosamente, de uma terceira pessoa como instrumento para a prática do delito, caso em que só o autor mediato responde penalmente. (…) só se pode afirmar o domínio do fato por parte do autor mediato quando o autor imediato (instrumento) se encontre em situação de autêntica subordinação, a qual pode decorrer de coação, erro, incapacidade etc3 (Sublinhei).

30. Alonso, Ceballos, Espinar, Herrera, e Tapia trazem à baila instigante conceito de participação. Para eles, “En una primera aproximación la participación se puede definir de forma negativa: son partícipes los que no realizan el hecho, es decir, los que no tienen el dominio del hecho (…), pero contribuyen al hecho ajeno realizado por el autor4 (Sublinhei).

31. Neste ponto, e, agora, sob as luzes de autorizada doutrina, ou, melhor, “subindo em ombros de gigantes”, com Newton, fica mais fácil responder à pergunta-título deste texto, fazendo-o, no entanto, sem pretensão de imunidade a críticas.

DA CONCLUSÃO

32. Neste ponto, à pergunta central deste texto: ‘Quem, de direito, matou o cangaceiro Severino do Aracaju?‘, responde-se, por fim: foram João Grilo e Chicó, pelas seguintes razões: 1ª) dolosamente, utilizaram-se eles das ingenuidades de Severino e de seu cabra, para iludindo aquele, forçá-lo a coagir seu cabra, para que lhe desse um tiro de rifle; 2ª) Severino foi enganado e, enganado, coagiu5 seu cabra, para lhe disparar um tiro, contando, levianamente, com a ressuscitação pelo toque da gaita; 3ª) agindo sob coação irresistível6, o cabra de Severino atuou sem culpabilidade7, logo, foi mero instrumento de João Grilo e Chicó, para atingirem seu intento: a eliminação de Severino; e 4ª) Chicó não foi tão somente partícipe da infração, já que teve participação decisiva no fato, mediante “convincente” encenação, bem como tinha total domínio do fato realizado, visto poder interrompê-lo a qualquer instante.

33. João Grilo e Chicó, mediante autoria mediata – já que se utilizaram da ingenuidade de Severino e da coação de seu cabra – praticaram, pois, o homicídio qualificado de Severino do Aracaju, nos termos postos nos artigos 121, parágrafo 2º, inciso IV8, combinado com o artigo 299, ambos do Código Penal Brasileiro.

1 Suassuna, Ariano. Auto da compadecida. 35. ed. pela Agir. 1ª ed. pela Pocket Ouro. Rio de Janeiro: Pocket Ouro, 2008. Todas a demais referências e transcrições referem-se a esta obra e edição.

2Queiroz, Paulo. Curso de direito penal – parte geral. 9. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, p. 338/339.

3Ob. cit., p. 342.

4 Alonso, Esteban Juan Peréz; Ceballos, Elena Marín de Espinosa; Espinar, José Miguel Zulgadía; Herrera, María Rosa Moreno-Torres; Tapia, María Inmaculada Ramos. Fundamentos de derecho penal – parte general. 4. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010, p. 409.

5 Nucci: “A viabilidade da coação moral irresistível com apenas duas partes envolvidas: ‘O quesito que propõe a vítima como agente da coação moral irresistível não delira da lógica jurídica, nem apresenta coação absurda em tese’ (HV 62.982-2, rel. Francisco Rezek, RT 605/380)”. Nucci, Guilherme de Souza. Manual de direito penal – parte geral e parte especial. 5. ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 299.

6 Por que coação irresistível? Porque se desobedecesse a Severino, seu chefe, quem, por certo, levaria um tiro de rifle seria ele, o “cabra frouxo”, no dizer de Severino.

7 Artigo 22 do Código Penal: “Art.22. Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem”. No pertinente, Mezger pontua: “III . Se denomina autor mediato al autor cuando há causado el resultado sirviéndose de una persona que actúa sin culpabilidad”. Mezger, Edmundo. Tratado de derecho penal. Traducción de la 2ª edicción alemana (1933) y notas de derecho español por José Arturo Rodriguez Miñoz. Tomo II. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1949, p. 303.

8Art. 121. (…) § 2º. Se o homicídio é cometido: (…) IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; (…) Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.

9Art. 29. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”.

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3 Comentários

  1. Professor, esse é o perfil do verdadeiro apaixonado por direito, aquela pessoa que tipifica condutas lidas em livros ou vistas em filmes. Parabéns pelo bom gosto (no que diz respeito à obra) e, ainda mais, pela criatividade.

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