Frequentemente, juízes e tribunais afastam a aplicabilidade do princípio da insignificância em razão dos maus antecedentes, reincidência etc.
O equívoco é manifesto.
Com efeito, o subprincípio da insignificância, que é uma dimensão do princípio da proporcionalidade em sentido amplo (necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito), tem por fundamento a irrelevância jurídico-penal da ação, traduzida no desvalor da ação e do resultado.
Trata-se, pois, de um postulado de política criminal que visa a afastar do âmbito penal ações que, embora formalmente criminalizadas, não afetam significativamente o bem jurídico penal em questão. Afinal, a intervenção penal, como ultima ratio do controle social formal, não deve incidir em casos de absoluta ou mínima irrelevância da conduta, porque, como dizia Alfonso de Castro, o direito penal é a fortaleza e os canhões dos demais direitos. Não é, pois, a única nem mais importante forma de prevenir e reprimir violações à ordem jurídica, mas um meio subsidiário de enfrentamento dos conflitos sociais mais agudos.
Como assinala Antonio García-Pablos de Molina, a intervenção penal é traumática, cirúrgica e negativa, devendo, por isso, ficar limitada aos casos de absoluta necessidade de proteção dos cidadãos (García-Pablos de Molina, Antônio. Momento atual da reflexão criminológica. Trad. Luiz Flávio Gomes. Revista de Ciências Criminais, São Paulo, n. 0, dez. 1992).
Quantos aos maus antecedentes/reincidência etc., é importante notar que, segundo a doutrina e a jurisprudência, o princípio da insignificância constitui uma excludente de tipicidade, pois, embora formalmente criminalizada, a conduta não traduz, em concreto, uma lesão digna de proteção penal. O fato insignificante é um fato atípico, isto é, penalmente irrelevante. Os maus antecedentes e a reincidência são temas da teoria da pena, não da teoria do delito.
Consequentemente, por traduzir um problema de tipicidade, não de individualização judicial da pena, o princípio há ser reconhecido independentemente da existência de maus antecedentes, reincidência, continuidade delitiva, habitualidade ou reiteração.
Afinal, não está em questão a aplicação de pena, a qual pressupõe fato típico, ilícito, culpável e punível, mas a própria relevância jurídico-penal da ação (tipicidade). Mais: admitir a intervenção penal em casos como o aqui discutido é legitimar a arbitrária seletividade do sistema penal, que recruta sua clientela preferencialmente entre os grupos mais vulneráveis da população, castigando, em geral, pessoas socialmente excluídas e mais vulneráveis, que, mais do que castigo, necessitam da proteção do estado e em relação aos quais há de haver mais tolerância.
Como escreve Eugênio Raúl Zaffaroni, “Hoje sabemos que a realidade operativa de nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico-penal, que todos os sistemas penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder que cancelam o discurso jurídico-penal e que, por fazer parte de sua essência, não poderiam ser suprimidos sem suprimir os próprios sistemas penais. A seletividade, a reprodução da violência, o condicionamento de maiores condutas lesivas, a corrupção institucional, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício do poder de todos os sistemas penais” (Zaffaroni, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas: delegitimación y dogmática jurídico-penal. 2ª edição. Bogotá: Temis, 1992, p.6).