Por uma interpretação conforme a Constituição, que considere o princípio da proporcionalidade.
O Código Penal assim define os crimes de importunação sexual e estupro de vulnerável:
Importunação sexual
Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro.
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.
Estupro de vulnerável
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
Como distinguir os delitos, se ambos têm em comum a prática de atos libidinosos e são crimes contra a dignidade sexual?
Bem, em primeiro lugar, é preciso repetir o óbvio: a importunação sexual é um crime mais leve e subsidiário, pois só incide quando não for possível a imputação de crime mais grave (estupro ou estupro de vulnerável).
Obviamente, a importunação sexual é a infração penal mais leve, e, portanto, subsidiária relativamente ao crime de estupro de vulnerável, como a própria lei o declara expressamente: “se o ato não constitui crime mais grave”.
Logo, havendo violência ou grave ameaça à pessoa, ficará caracterizado o delito mais grave. A violência/grave ameaça afasta o tipo de importunação sexual.
Em segundo lugar, a importunação sexual só se configura se não houver anuência da suposta vítima. Se houver consentimento do ofendido, esse tipo legal de crime não incidirá, o fato será atípico ou caracterizará estupro de vulnerável, se a vítima for vulnerável na forma da lei (menor de 14 anos etc.). No estupro de vulnerável o eventual consentimento da vítima é inválido, dada a presunção legal de vulnerabilidade, que é absoluta, não admitindo prova em sentido contrário, segundo o enunciado da Súmula 593 desse STJ: “O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente”.
Em terceiro lugar, o tipo legal de estupro de vulnerável fala expressamente de “conjunção carnal” ou outro ato libidinoso. Assim, havendo conjunção carnal, incidirá o crime do art. 217-A do CP. Embora a lei fale de conjunção carnal, parece óbvio que atos da mesma gravidade ou lesividade farão incidir esse delito mais grave, como sexo oral, anal etc.
Por fim, o crime do art. 215-A do CP tem redação mais ampla, alcançando qualquer ato libidinoso praticado com alguém sem sua anuência. Já o estupro de vulnerável é mais específico: somente pode ser praticado contra vulnerável na forma da lei, com ou sem anuência do ofendido, com ou sem violência/grave ameaça à pessoa. Nesse sentido, é um crime especial. Lex specialis derrogat legi generali (princípio da especialidade).
Em resumo, é perfeitamente possível distinguir os dois delitos com base em ao menos cinco critérios: a) a condição de vulnerabilidade da vítima, que é essencial no estupro de vulnerável; b) o emprego de violência/grave ameaça, que é acidental no crime de estupro de vulnerável e afasta o tipo de importunação sexual; c) a importunação sexual é um delito geral e o estupro de vulnerável um crime específico, fazendo incidir o princípio da especialidade (não há concurso de crimes, mas crime único); d) a importunação sexual é um delito mais leve e subsidiário em relação aos estupros (CP, art. 213 e 217-A), fazendo incidir o princípio da subsidiariedade; e) se houver conjunção carnal ou ato equivalente (sexo anal etc.), ficará caracterizado o estupro de vulnerável.
Mas isso significa que toda vez que a vítima for vulnerável na forma da lei e houver a prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal, incidirá necessariamente o delito do art. 217-A do CP?
Parece-nos que não.
Temos que, também aqui, é preciso fazer distinção conforme a gravidade dos atos libidinosos praticados. Logo, atos libidinosos leves ou superficiais não podem fazer incidir o delito mais grave ou configurará a forma tentada de estupro de vulnerável (CP, art. 14, II), sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade das penas, que compreende a necessidade, a adequação e a proporcionalidade em sentido estrito (da resposta penal).
Considerando a literalidade do dispositivo, a prática de qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos, independentemente de violência, grave ameaça ou falta de anuência, configura o crime de estupro de vulnerável. Nesse sentido é a “orientação jurisprudencial, então dominante, de que é absoluta a presunção de violência em casos da prática de conjunção carnal ou ato libidinoso diverso com pessoa menor de 14 anos.” (REsp n. 1.977.165/MS, relator Ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), relator para acórdão Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 16/5/2023, DJe de 25/5/2023.)
Ocorre que as penas previstas para o referido crime são altas (8 a 15 anos de reclusão, na modalidade simples), mais elevadas do que as da prática de estupro, mediante violência ou grave ameaça (6 a 10 anos de reclusão, na modalidade simples, e de 8 a 12 anos, quando a vítima é menor de 18 anos e maior de 14). Com efeito, a pena mínima é igual ou excede, inclusive, àquela prevista para outros delitos graves, como homicídio simples, extorsão mediante sequestro, lesão corporal seguida de morte etc.
A violação aos princípios de isonomia e proporcionalidade é, portanto, manifesta, visto que um comportamento de igual ou menor gravidade (ex. beijo lascivo em pessoa desacordada) é punido com pena superior ao delito mais grave (conjunção carnal mediante emprego de arma), o que deve ser considerado ao se interpretar e aplicar a lei.
Assim, temos que para fins de consumação de delitos sexuais graves, estupro e estupro de vulnerável, por exemplo, o “outro ato libidinoso”, diverso da conjunção carnal, deve ter gravidade e relevância equiparável. Afinal, o que pode vir a ser outro ato libidinoso é impossível de ser listado, uma vez que a imaginação humana é fertilíssima no particular (ex. beijo ou visão lasciva, automasturbação etc.). De todo modo, há de consistir numa conduta relevante que importe em grave constrangimento à vítima a fim de que incida a mais grave imputação.
Inclusive, nesse sentido é o Código Penal português que exige, expressamente, para a configuração do crime de coacção sexual e outros delitos sexuais que se trate de acto sexual de relevo, razão pela qual os atos considerados insignificantes não são passíveis de proteção pelo tipo penal em causa. De acordo com o seu art. 163, 1, do CP:
Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Como escreve Jorge de Figueiredo Dias, “ficam excluídos do tipo actos que, embora ‘pesados’ ou em si ‘significantes’ por impróprios, desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima” (Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, tomo 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 449).
Logo, para tipificação do crime de estupro, não apenas de vulnerável, o ato libidinoso diverso da conjunção carnal deve ser grave, a exemplo de sexo oral, anal etc. Em suma, deve-se adotar interpretação restritiva quanto ao conceito de “outro ato libidinoso” típico na hipótese de atos leves ou superficiais e dar ao tema interpretação conforme a Constituição.
Se for assim, haverá desclassificação para a infração penal menos grave (importunação sexual) ou mesmo para estupro de vulnerável na forma tentada (CP, art. 14, II).