I)Prisão preventiva
1)Introdução
Coerente com o sistema acusatório que adota expressamente (art. 3°-A), a lei dá nova redação aos arts. 282, §2°, e 311 do CPP, suprimindo o “de ofício” que constava da redação original desses artigos, vedando assim a decretação de medidas cautelares, especialmente a prisão preventiva, sem provocação expressa do Ministério Público ou do querelante ou sem representação da autoridade policial durante o inquérito policial.
O juiz já não poderá, portanto, decretar medida cautelar pessoal ou real de ofício, tampouco poderá converter automaticamente prisão em flagrante em prisão temporária ou preventiva, porque equivaleria a decretá-las de ofício.
A proibição legal (de prisão cautelar de ofício etc.) vale também para os casos de revogação de medida cautelar diversa, com a consequente decretação de prisão preventiva, de substituição de medida cautelar por outra mais grave e também para o caso de cumulação de cautelares, em virtude de descumprimento das condições impostas, pois também aqui se exige requerimento das partes (art. 282, §4).
Embora o juiz não possa de ofício decretar prisões ou medidas cautelares, nada o impede de revogar a prisão cautelar (prisão preventiva etc.) ou de substituí-la por restrições mais brandas, independentemente de pedido dos interessados.
Em suma: o juiz só não pode agravar a medida cautelar imposta ao réu ou ao investigado de ofício, mas pode atenuá-la mesmo de ofício. É que o princípio da legalidade penal constitui essencialmente uma garantia individual destinada a evitar abusos estatais no exercício do poder punitivo. Assim, embora o juiz não possa decretar, por exemplo, uma prisão preventiva de ofício, pode perfeitamente revogá-la sem requerimento algum (CPP, art. 316).
Mais: como regra, o juiz ou tribunal só poderá decretar medidas cautelares com observância do contraditório prévio, com prazo de 5 dias para manifestação da parte contrária. Nos casos de urgência ou de risco de ineficácia da medida, deferirá o pedido de decretação da medida cautelar, realizando o contraditório a seguir (contraditório diferido).
2)Reexame obrigatório da prisão preventiva a cada 90 dias
Embora a lei não tenha fixado o prazo máximo de duração da prisão preventiva, tal como ocorre com a prisão temporária, impôs o dever de reanálise de seus fundamentos a cada 90 dias (CPP, art. 316, parágrafo único). A rigor, portanto, a prisão preventiva vale apenas por esse prazo. Com efeito, se, decorrido o prazo legal, não houver pronunciamento judicial algum, a prisão tornar-se-á ilegal, devendo ser relaxada. Esse reexame é obrigatório e independe de provocação das partes.
Quando o juiz ou tribunal entender que a prisão preventiva deve ser mantida, proferirá decisão, motivando a manutenção da prisão. Trata-se de uma decisão que reaprecia a anterior, acolhendo ou rejeitando seus fundamentos, acrescentando novos argumentos quando houver.
Evidentemente, não valerá como tal a simples ratificação da decisão ou do acórdão já proferido, sem mais. Ou uma mera decisão afirmando que persistem os fundamentos da prisão preventiva porque nada de novo lhe sobreveio, como é comum ocorrer. É que a lei exige, a cada noventa dias, uma nova decisão, fundamentada sempre, não uma simples formalidade ou mera reiteração dos seus termos. Se assim fosse, a inovação seria inútil.
Como é óbvio, nada impede que o juiz faça esse reexame antes do prazo de 90 dias, podendo, inclusive, revogar a preventiva a qualquer tempo, com ou sem pedido, com ou sem substituição da prisão por medida cautelar diversa.
Com a entrada em vigor da lei, as prisões preventivas decretadas há mais de 90 dias deverão ser reexaminadas imediatamente ou num prazo razoável. As demais deverão ser revistas tão logo completem aquele prazo legal.
De acordo com o art. 3º-C, §2°, o juiz da instrução e julgamento deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias. Como a lei não ressalva a prisão preventiva, segue-se que também ela deverá ser revista no prazo de 10 dias pelo juiz da instrução, ainda que não tenha decorrido o prazo legal de 90 dias da decretação da preventiva ou do seu reexame.
3)Fundamentação da decisão
O art. 315, §2°, do CPP, repete ipsis litteris o art. 489, parágrafo único, do CPC, relativamente aos critérios legais para a definição de decisão fundamentada/desfundamentada. Falaremos disso a seu tempo.
O art. 315 exige que a decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre fundamentada. A exigência é aplicável a toda e qualquer medida cautelar (§1°).
A nova redação do art. 282, §6°, explicita a necessidade de justificar o porquê da não substituição da prisão preventiva por medida cautelar diversa. Afinal, a cautelaridade é um requisito essencial de toda e qualquer medida cautelar, que deve ser aplicada proporcionalmente.
A prisão preventiva é a ultima ratio do sistema cautelar, por ser a mais grave. A cautelaridade é, pois, uma condição necessária, mas não suficiente para a imposição da prisão preventiva, que exige mais: a insuficiência das demais medidas cautelares, aplicáveis cumulativamente. Tem, assim, caráter residual ou subsidiário relativamente às outras cautelares pessoais e reais.
Exige-se, ainda, fundamentação individualizada para o caso de coautoria e participação. Uma decisão bem fundamentada para alguns corréus pode carecer de motivação para outros. À semelhança do que se passa com a individualização da pena, cada imputação penal e cada imputado demandam uma justificação particular/autônoma.
A lei dá nova redação ao art. 312 do CPP, acrescentando-lhe o “perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”, enfatizando a cautelaridade da prisão preventiva, reafirmada nos novos art. 283 e 313 do CPP, cujo §2º diz de modo enfático: Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia.
Afinal, a gravidade do crime é uma condição necessária, mas não suficiente para a decretação e manutenção de medida cautelar, especialmente a prisão preventiva, a mais grave das medidas cautelares.
Exige-se mais: que a prisão preventiva seja motivada com base em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos (art. 312, §2°, e 315, §1°). A inovação é aplicável às medidas cautelares em geral, não apenas à prisão preventiva.
Os fatos novos ou contemporâneos têm a ver, não propriamente com os crimes imputados na denúncia ou queixa, que podem ser antigos, mas com os fundamentos da medida cautelar (garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal etc.). Afinal, um crime não recente pode dar lugar a uma motivação atual para a prisão preventiva, como, por exemplo, ameaça à testemunha, destruição de prova ou mesmo um novo delito.
4)Prisão preventiva obrigatória nos crimes dolosos contra a vida?
A lei prevê a prisão preventiva obrigatória, isto é, sem cautelaridade (CPP, art. 492) para os crimes dolosos contra a vida, de competência do tribunal do júri, conforme a gravidade da pena aplicada. A reforma ressuscitou a velha e má prisão preventiva obrigatória prevista na redação original do Código de 1941.
Com efeito, ao ser proferida sentença condenatória pelo júri, o juiz-presidente determinará (art. 492, I, e), no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos.
Nos demais casos (condenação inferior a 15 anos), a prisão é facultativa, isto é, requer cautelaridade.
A lei prevê ainda hipóteses em que o presidente poderá deixar de autorizar a execução provisória das penas (§3°). Afirma também que a apelação interposta contra decisão condenatória do tribunal do júri a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão não terá efeito suspensivo (§4°). Apesar disso, admite exceções (§5°), conferindo efeito suspensivo à apelação.
Semelhante previsão (prisão preventiva obrigatória), além de incoerente e ilógica, é claramente inconstitucional1, visto que: 1)ofende o princípio da presunção de inocência, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (CF, art. 5°, LVII), razão pela qual toda medida cautelar há de exigir cautelaridade, especialmente a prisão preventiva; 2)viola o princípio da isonomia, já que condenações por crimes análogos e mais graves (v.g., condenação a 30 anos de reclusão por latrocínio) não admitem tal exceção, razão pela qual a prisão preventiva exige sempre cautelaridade; 3)estabelece critérios facilmente manipuláveis e incompatíveis com o princípio da legalidade penal, notadamente a pena aplicada pelo juiz-presidente; 4)o só fato de o réu sofrer uma condenação mais ou menos grave não o faz mais ou menos culpado, já que a culpabilidade tem a ver com a prova produzida nos autos e com os critérios de valoração da prova, não com o quanto de pena aplicado; 5)a gravidade do crime é sempre uma condição necessária, mas nunca uma condição suficiente para a decretação e manutenção de prisão preventiva. Como é óbvio, a exceção está em manifesta contradição com o novo art. 313, §2º, que diz: Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena.
Já vimos também que tal exceção não é legitimável com base na soberania dos veredictos.
5)Acordo de não persecução penal
Quando cabível o acordo de não persecução penal de que trata o art. 28-A do CPP, previsto para o investigado confesso de infração penal praticada sem violência ou grave ameaça à pessoa punida com pena mínima inferior a 4 anos, é vedada a prisão preventiva, dada a manifesta incompatibilidade entre os institutos.
II)Acordo de não persecução penal
1)Introdução
A lei prevê o acordo de não persecução penal (ANPP) para os crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa cuja pena mínima seja inferior a 4 anos e desde que haja confissão formal e circunstanciada (art. 28-A). Repete, no essencial, o art. 18 da Resolução 181 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), alterada pela Resolução n° 183, de 24 de janeiro de 2018, daquele Conselho.
A incidência prática do instituto é amplíssima, visto que a quase totalidade dos crimes não violentos comina pena mínima inferior a 4 anos, tais como: furto simples e qualificado, corrupção passiva e ativa, peculato etc. A pena máxima cominada é irrelevante.
Se bem aplicado, o instituto poderá ter impacto significativo sobre o encarceramento, se bem que os crimes que mais encareceram são os praticados com violência ou grave ameça à pessoa, especialmente o roubo, delito típico de pessoas socialmente excluídas.
Embora a lei não tenha revogado o art. 89 da Lei n° 9.099/95, a suspensão condicional do processo foi sensivelmente esvaziada, uma vez que o acordo de não persecução é muito mais amplo por já compreender as hipóteses que comportariam a suspensão condicional, isto é, crimes punidos com pena mínima igual ou inferior a um ano. De todo modo, como os institutos exigem requisitos distintos (v.g., a suspensão condicional não requer confissão formal e circunstanciada, nem o oferecimento de denúncia), a suspensão condicional ainda terá alguma aplicação.
Quando cabível a transação penal, o acordo não é aplicável (art. 28-A, §2, I). A transação penal está prevista para as infrações de menor potencial ofensivo (contravenções penais e crimes punidos com pena máxima não superior a 2 anos), de competência dos juizados especiais criminais.
Embora vedado no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, o acordo é possível na Justiça Militar e Eleitoral.
A prescrição não corre enquanto o acordo não for cumprido ou rescindido (CP, art. 116, III). Trata-se de nova causa suspensiva ou impeditiva da prescrição.
Como não há proibição legal, temos que é possível o acordo de não persecução nos casos de ação penal privada2.
O ANPP é também aplicável às investigações relativas a ações penais originárias, de competência dos tribunais (art. 1°, §3°, da Lei n° 8.038/90).
O novo instituto incidirá sobre investigações em andamento ou concluídas e mesmo sobre processos criminais já instaurados (CPP, art. 2°), devendo o MP se manifestar sobre seu cabimento.
2)Cabimento
O ANPP exige os seguintes requisitos (art. 28-A): a)que não seja caso de arquivamento da investigação; b)crime praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa; c)crime punido com pena mínima inferior a 4 anos; d)confissão formal e circunstanciada (a lei fala, em verdade, de circunstancial); e)necessidade e suficiência do acordo para a reprovação e prevenção do crime.
2.1)Justa causa: casos de denúncia, não de arquivamento
Inicialmente, não cabe o acordo se, por qualquer motivo, for caso de arquivamento da investigação (inquérito policial etc.). Faltar-lhe-á justa causa quando couber o arquivamento. Faltando justa causa para a denúncia, faltará justa causa para o acordo. Afinal, o ANPP é uma alternativa à denúncia, não uma alternativa ao arquivamento. O juiz deve, pois, rejeitá-lo quando for manifesto o abuso do poder de acusar ou carecer de amparo legal (art. 28-A, §§4°, 5° e 7°). Também aqui se presume a inocência, não a culpa, apesar da confissão formal do delito.
O acordo não será possível, por exemplo, se o fato não constituir crime ou incidir excludentes de tipicidade, de ilicitude ou de culpabilidade (erro de tipo ou de proibição inevitável, coação física ou moral irresistível etc.). Tampouco se a punibilidade estiver extinta em razão de prescrição, decadência etc. Ou não houver elementos de prova suficientes para o oferecimento de denúncia ou a prova obtida for ilícita etc. Nem se admitirá o acordo quando for manifesta a insignificância jurídico-penal da conduta.
Quanto ao investigado inimputável ou semi-imputável, o acordo é perfeitamente possível3, devendo as condições serem fixadas segundo a espécie e o grau de inimputabilidade (art. 28-A, V). Também aqui se exige, e com maior razão, dada a maior vulnerabilidade do investigado, que se trate de fato típico punível.
Não há incompatibilidade com a voluntariedade que se exige no acordo, seja porque o advogado é indispensável à sua formalização e, pois, representará os interesses do contratante, imputável ou inimputável, seja porque a inimputabilidade não priva o agente inteiramente da capacidade de deliberar sobre seus próprios interesses. Cabe dizer, aliás, ao modo de Nietzsche, que não existem fenômenos psiquiátricos, mas uma interpretação psiquiátrica dos fenômenos4. Daí porque o inimputável ou semi-imputável, se tratado/medicado adequadamente, poderá levar uma vida relativamente normal.
Seja como for, a instauração do incidente de sanidade mental de que trata o art. 149 do CPP é indispensável.
2.2)Crimes não violentos
Somente os crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, não à coisa, são excluídos pela lei. Assim, por exemplo, o roubo, o estupro e o homicídio doloso. Já os delitos cometidos com violência à coisa (v.g., furto qualificado com rompimento de obstáculo ou destruição da coisa) são passíveis do acordo. Temos também que os crimes culposos admitem-no, visto que a violência não é intencional (v.g., lesões corporais culposas). Idem, aqueles em que a ameaça ou a violência constituem o próprio delito (v.g., crime de ameaça).
Não há vedação legal para crimes hediondos ou afins desde que praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa, diversamente do que dispunha a Resolução 181/2017 do CNMP, alterada pela Resolução n° 183, de 24 de janeiro de 2018, daquele Conselho.
O tráfico de drogas na forma simples (art. 33 da Lei 11.343/2006) é incompatível com o instituto, por cominar pena mínima de 5 anos de reclusão; mas é cabível no caso de tráfico privilegiado (art. 33, §4°). Além disso, diversos crimes da lei cominam pena inferior a 4 anos; logo, admitem-no, a exemplo dos previstos nos arts. 34 a 35 e 37 a 39 da lei antitóxico. Idem, o porte de droga para consumo (art. 28).
2.3)Crimes cuja pena mínima seja inferior a 4 anos
Exige-se que se trate, ainda, de delito cuja pena mínima seja inferior a 4 anos. Logo, se a pena for igual ou superior a 4 anos não cabe o acordo. Melhor seria se a lei dissesse: pena igual ou inferior a 4 anos, à semelhança da suspensão condicional do processo, que fala de pena igual ou inferior a 1 ano.
Para a apuração da pena mínima cominada, considerar-se-ão as causas de aumento e de diminuição de pena. Quando se tratar de percentual variável de aumento de pena (v.g., 1/3 a 2/3), acrescentar-se-á o mínimo previsto (no caso, 1/3), diminuindo-se o máximo legal quando for causa de redução de pena (v.g., redução de 2/3, não de 1/3, no caso de crime tentado), prevalecendo sempre a pena mínima possível para saber-se se a pena mínima prevista é inferior a 4 anos. Incide aqui a Súmula 723 do STF, analogicamente: Não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano.
Havendo concurso material de crimes (CP, art. 69), somam-se as penas mínimas previstas. E no concurso formal e na continuidade delitiva (CP, arts. 70 e 71), acrescentar-se-á o aumento mínimo previsto em lei sobre a pena mínima cominada. Se da soma resultar pena mínima inferior a 4 anos, o acordo é possível.
Incide a Súmula 243 do STJ, por analogia: O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano.
Se oferecida a denúncia, o juiz ou tribunal proceder à desclassificação para crime que admita o acordo, deverá abrir vistas ao MP para que se manifeste a respeito. A Súmula 337 do STJ é aplicável analogicamente: É cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva.
2.4)Confissão formal e circunstanciada etc.
Somente o investigado que confessar o crime, formal e circunstanciadamente, fará jus ao benefício.
A confissão é a admissão, no todo ou em parte, da imputação penal.
Diz-se simples quando o réu confessa o delito sem mais; e qualificada quando a confissão vem acompanhada de alegação de excludentes de tipicidade, de ilicitude ou de culpabilidade. Assim, por exemplo, se o investigado afirma que praticou furto em estado de necessidade ou que não houve um fato típico, mas um ato legal e consentido.
Para efeito do acordo, não necessariamente para outros fins (v.g., reconhecimento da atenuante da confissão espontânea), temos que somente a confissão simples permite a realização do ANPP. Ou seja, confissão formal e circunstanciada (a lei fala, em verdade, de confissão circunstancial) deve ser entendida como confissão simples. Confissão formal e circunstanciada é, portanto, uma confissão simples e voluntária em que o investigado menciona o essencial da infração cometida, narrando a motivação e as circunstâncias juridicamente relevantes. A lei exige que seja circunstanciada inclusive para a aferição judicial de sua consistência e verossimilhança.
Obviamente, não vale como tal o silêncio do investigado, seja porque a lei exige confissão formal, seja porque, se preferir se calar, o investigado não estará confessando delito algum, mas se valendo do direito à não autoincriminação (nemo tenetur se detegere).
Tampouco a confissão qualificada equivale à confissão formal. É que a confissão qualificada corresponde, em última análise, a uma alegação de inocência, que, se fundada e verossímil, é incompatível com o acordo de não persecução, visto que: a)o acordo pressupõe que não seja caso de arquivamento do inquérito (art. 28-A); b)se o investigado alega excludentes de ilicitude ou de outra natureza não está confessado crime algum, muito menos formalmente. Afinal, quem, por exemplo, subtrai coisa alheia móvel em estado de necessidade (furto famélico) atua conforme o direito; logo, não comete crime; c)não vale qualquer confissão, mas uma confissão consistente e verossímil, sob pena de se firmar acordos com possíveis inocentes. Como é óbvio, o acordo só pode ser firmado com alguém que se declara culpado, não com alguém que se diz inocente.
Quando a confissão for parcial (v.g., confessa um delito e nega outro), o acordo poderá ser feito relativamente àquele crime objeto da confissão.
É aplicável ao caso, por analogia, o art. 307 do Código de Processo Penal Militar, segundo o qual, para que tenha valor de prova, a confissão deve: a) ser feita perante autoridade competente; b) ser livre, espontânea e expressa; c) versar sobre o fato principal; d) ser verossímil; e) ter compatibilidade e concordância com as demais provas do processo.
A Súmula 630 do STJ é aplicável, mutatis mutandis, também aqui: A incidência da atenuante da confissão espontânea no crime de tráfico ilícito de entorpecentes exige o reconhecimento da traficância pelo acusado, não bastando a mera admissão da posse ou propriedade para uso próprio.
Por fim, o atendimento dos requisitos supra não necessariamente implicará proposta de acordo, já que a lei exige, ainda, que ele “seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”. Haverá situações excepcionais especialmente graves que poderão justificar, fundamentadamente, a não proposição do ANPP.
3)Obrigações do investigado
A lei prevê diversas obrigações para a celebração do acordo. O rol não é taxativo, mas exemplificativo, já que o MP poderá propor outras não previstas expressamente em lei, desde que proporcionais e compatíveis com a infração penal (art. 28-A, V). Tais condições podem ser aplicadas de forma isolada ou cumulativamente, conforme o princípio da proporcionalidade/individualização do acordo.
A primeira obrigação é a reparação do dano ou a restituição da coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo, podendo ser total ou parcial. Nem sempre a reparação ou a restituição é possível, visto que o autor pode não dispor de recursos financeiros para tanto ou a coisa pode ter sido destruída, perdida ou transferida a outrem. Apesar disso, o acordo poderá ser firmado, mesmo porque a reparação/restituição não é uma obrigação essencial, mas acidental, que pode ou não figurar entre os deveres do contratante.
A reparação/restituição poderá feita pelo autor do crime ou por terceiro em seu favor (pais, parentes etc.) ou por quem retenha a coisa objeto do crime, de boa ou má-fé.
A segunda condição é a renúncia voluntária de bens e direitos indicados pelo MP, como instrumentos, produtos ou proveito do crime (v.g., bens móveis ou imóveis adquiridos com o crime). A renúncia cumpre aqui o papel do confisco legal que recairia sobre os bens em caso de condenação.
A lei prevê ainda as seguintes condições: a)prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); b) pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito.
São hipóteses que já figuram como penas restritivas de direito (CP, art. 43), agora aplicadas mediante acordo, e de forma atenuada, a revelar, inclusive, quão defasados estão os arts. 43 e 44 do CP, cujos casos de substituição por penas alternativas poderiam ser consideravelmente ampliados. As medidas cautelares diversas previstas no art. 319 do CPP, por exemplo, poderiam figurar como penas restritivas de direito. Já é tempo de se transformar a prisão em pena alternativa.
4)Vedações legais
O acordo está vedado para os seguintes casos (§2º): a)se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei; b)se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; c)ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; d)nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.
Quando cabível a transação penal, não será possível o ANPP. Se cabíveis o acordo e a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), ficará a critério do MP propor o que for mais adequado, segundo as circunstâncias do caso, podendo o investigado manifestar preferência por um ou outro benefício, conforme seus interesses. Nos casos controversos, prevalecerá o benefício mais favorável ao investigado. De todo modo, mesmo no caso de descumprimento do ANPP, é possível a suspensão condicional.
A lei proíbe o acordo para o investigado reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas.
Temos que, embora não o diga, a reincidência a que se refere a lei é a reincidência em crime doloso, não a reincidência em delitos culposos, que não impedirá o ANPP. Idem, se o novo crime for doloso e o anterior for culposo ou o contrário. Tampouco a reincidência em contravenção obstará o acordo. Em suma, somente a reincidência em crime doloso grave impedirá a proposição do benefício. O conceito de reincidência é dado pelos arts. 63 e 64 do CP.
Incide aqui, ainda, analogicamente, o disposto no art. 44, §3º, do CP: Se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime.
A reincidência não é, pois, uma vedação legal absoluta, mas relativa.
O que dissemos sobre a reincidência vale, mutatis mutandis, para a conduta criminal habitual, reiterada ou profissional. Além disso, haverá hipóteses em que, apesar da habitualidade etc., o acordo será cabível, seja porque as condutas anteriores são insignificantes, como previsto na própria lei, seja porque o acordo de não persecução é socialmente recomendável.
A lei proíbe, ainda, o ANPP para o agente que foi beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo. A proibição é de todo incompreensível, sobretudo para quem cumpriu rigorosamente o acordo antes firmado (transação penal etc.). Quanto àquele que descumpriu o acordo, a lei já prevê sanção para tanto, razão pela qual, também aqui, carece de fundamento o impedimento legal.
Por fim, o acordo está vedado para os crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor. A previsão legal é de pouca importância, porque na maioria dos casos tratar-se-á de crime praticado com violência ou grave ameaça à pessoa, que, só por isso, já não permitiria o ANPP.
5)Procedimento, momento de sua proposição, rescisão, concurso de agentes etc.
O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor, cuja homologação será realizada em audiência na qual o juiz deverá verificar a sua legalidade e voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor. O acordo não é incompatível com a prisão em flagrante etc.
O advogado é indispensável à formalização do acordo.
A lei não diz em que momento será proposto o acordo. Temos que sua proposição poderá ser feita a qualquer tempo desde que o MP disponha de elementos de prova para tanto. Poderá fazê-lo, inclusive, na audiência de custódia, tal como previsto no art. 18, §7°, da Resolução n°181/2017, com a redação dada pela Resolução n°183/2018, daquele Conselho. Obviamente, não há necessidade de se aguardar a conclusão das investigações. No caso de inquérito policial, o indiciamento não é necessário para tanto.
À semelhança do que se passa na colaboração premiada, temos que as partes podem se retratar até a homologação judicial ao acordo, podendo, inclusive, proceder à revisão das cláusulas contratuais.
Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo, determinará a revisão do acordo. Ou indeferirá desde logo a homologação quando não for o caso de ANPP, seja porque lhe falta justa causa (fato atípico, insuficiência de prova, prescrição etc.), seja porque o crime não o admite, em virtude da pena cominada etc.
O juiz recusará homologação à proposta também quando não for realizada a adequação a que se refere o 28-A, §5º. Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia. Da decisão que recusar a homologação, cabe recurso em sentido estrito (CPP, art. 581, XXV).
De acordo com Vladimir Aras, o art. 28-A, §8º, da Lei (Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia), é inconstitucional5:
Se o juiz se valer da faculdade prevista no §8º do art. 28-A do CPP e recusar a homologação do ANPP, deve ele devolver os autos ao Ministério Público para que adote uma de duas posturas: promover novas investigações, se necessário; ou propor a ação penal.
Este artigo é flagrantemente inconstitucional, uma vez que o juiz não pode preordenar a atuação do Ministério Público para a propositura da ação penal. Admitir a eficácia do §8º do art. 28-A do CPP seria dizer que o juiz pode ordenar ao Ministério Público que denuncie. No entanto, o art. 129, I, da Constituição atribui essa decisão (de acusar ou de não acusar) apenas ao Parquet.
Assim, o §8º do art. 28-A do CPP deve ser lido em conformidade com o texto constitucional e com o sistema do CPP, orientado pelo princípio acusatório (art. 129, I, CF, e art. 3º-A)233. Desta maneira, cabe ao juiz rejeitar a homologação e devolver os autos ao Ministério Público para que proceda como entender de direito.
Homologado o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal. A homologação judicial do acordo suspende o prazo prescricional.
A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento.
Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para efeito de rescisão e posterior oferecimento de denúncia. Como a validade do acordo exige decisão judicial, temos que a sua rescisão não pode dar-se unilateralmente, exigindo-se, também aqui, decisão judicial que assegure o contraditório. Com a rescisão, a prescrição volta a correr.
O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo. Está claro que o descumprimento do acordo não impedirá, necessariamente, a proposta de suspensão condicional.
A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no art. 28-A, §2º, III.
Cumprido o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.
No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 do Código.
Quando houver concurso de agentes (CP, art. 29), o acordo poderá ser firmado com todos os coautores e partícipes do crime ou somente com alguns deles. O ANPP poderá, portanto, tramitar simultaneamente com a ação penal.
III)Arquivamento do inquérito policial na Lei n° 13.964/2019
A lei dá nova redação ao art. 28 do CPP, para adequá-lo ao sistema acusatório, abolindo o controle judicial sobre a decisão de arquivamento do inquérito policial relativo à ação penal pública. O inquérito tramitará diretamente entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público. O controle judicial sobre o inquérito foi reforçado com a introdução do juiz das garantias, mas só ocorrerá nos casos de reserva de jurisdição.
A abolição do controle judicial tem as seguintes implicações: 1)o arquivamento do inquérito será feito pelo próprio Ministério Público, sem mediação judicial; 2)também o desarquivamento do inquérito caberá ao MP, sem intervenção judicial, com exceção dos arquivamentos resultantes de decisão judicial proferida em habeas corpus etc., a depender do fundamento jurídico; 3)o controle da legalidade do ato caberá ao próprio MP, cuja instância de revisão (2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF e Procurador-Geral de Justiça do Estado ou DF) homologará ou não a decisão de arquivamento; se não homologar, determinará a realização de novas diligências ou designará procurador ou promotor para oferecer denúncia; 4)o inquérito policial tramitará diretamente entre a Polícia e o MP; 5)o juiz das garantias só será provocado nos casos previstos em lei (art. 3°-B do CPP), aí incluída a prorrogação de prazo do inquérito quando o investigado estiver preso (art. 3º-B, VIII);
A decisão de arquivamento do inquérito será comunicada à vítima, ao investigado e à autoridade policial, para a adoção das providências que julgarem cabíveis. Também o juiz das garantias deverá ser comunicado quando tiver sido provocado na forma da lei.
Se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica.
Nas ações penais relativas a crimes praticados em detrimento da União, Estados e Municípios, a revisão do arquivamento do inquérito policial poderá ser provocada pela chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial.
Quanto ao inquérito policial relativo a crime de ação penal privada, cuja iniciativa é do querelante, não do MP, temos que foi revogado o art. 19 do CPP (Nos crimes em que não couber ação pública, os autos do inquérito serão remetidos ao juízo competente, onde aguardarão a iniciativa do ofendido ou de seu representante legal, ou serão entregues ao requerente, se o pedir, mediante traslado), seja por ser incompatível com o espírito da reforma, seja porque tal não figura entre as competências do juiz das garantias (CPP, art. 3º-B). Nesse caso, o inquérito policial, uma vez concluído, ficará na própria polícia à disposição do interessado. Nele não intervirá o MP. Nem se remeterá ao juízo.
IV)A nova progressão de regime – Lei n° 13.964/2019
1)Introdução
A lei dá nova redação ao art. 112 da LEP, para estabelecer novos critérios para a progressão de regime, considerando a primariedade, a reincidência, o emprego ou não de violência à pessoa, o caráter hediondo, o resultado morte etc., cujos percentuais variam de 16% a 70%.
Os novos parâmetros vão retroagir ou não conforme sejam mais ou menos favoráveis ao condenado, segundo as circunstâncias do caso concreto (princípio da irretroatividade da lei penal).
Nos termos da Súmula 715 do STF, a progressão levará em conta o total das penas somadas, não a pena unificada em 30 anos, que, com a nova lei, passou a ser 40 anos (CP, art. 75), alteração que só é aplicável aos crimes cometidos após a sua entrada em vigor, consumados ou tentados.
2)Crimes não hediondos
Para os crimes não hediondos, os novos percentuais ficaram assim: 1)nos crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa (v.g, furto), a progressão de regime dependerá do cumprimento de 16% da pena, para o réu primário, e de 20% para o reincidente; 2)nos delitos cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa (v.g., roubo), a progressão de regime dependerá do cumprimento de 25% da pena, para o réu primário, e de 30%, para o apenado reincidente em crime cometido com violência ou grave ameaça à pessoa.
A lei não refere a hipótese de o réu ser reincidente em crime cometido com e sem violência (p.ex., tendo cumprido pena por furto, é condenado por roubo ou o contrário). Existem ao menos quatro soluções possíveis: a)exigir-se o cumprimento de 20% da pena, percentual previsto para o reincidente em crime sem violência à pessoa; b)exigir-se o cumprimento de 25%, percentual previsto para o réu primário condenado por crime com violência; c)exigir-se o cumprimento de 30% da pena, percentual previsto para o reincidente em crime violento; d)combinar as letras a e b.
Nesse caso, deverá prevalecer o critério mais favorável ao réu, o que exclui, de logo, a letra c, cuja aplicação está prevista para o reincidente específico em crime violento. Embora a hipótese a seja a mais favorável, fato é que há crime violento a ser considerado, razão pela qual o mais razoável seria aplicar a letra b. O mais correto, porém, parece ser adotar a solução da letra d (combinação das letras a e b), verificando-se se o novo crime é ou não violento. Assim, se o réu já punido por furto vem a ser condenado por roubo, deverá cumprir 25% da nova pena para progredir de regime, visto que esse já seria o percentual mínimo a ser cumprido pelo só fato de ter cometido crime violento. No entanto, se o novo delito que gerou a reincidência não é violento, o mais razoável é exigir-se o cumprimento de 20%, percentual previsto para o reincidente em crime sem violência ou grave ameaça à pessoa.
Como é óbvio, em relação à primeira condenação, o réu era primário, devendo cumprir o mínimo legal previsto, conforme se trate de crime com ou sem violência. Daí porque, em caso de soma ou unificação de penas, deve ser feita a distinção e a verificação de cada delito no caso concreto.
3)Crime hediondos e equiparados etc.
Nos crimes hediondos e equiparados, os novos parâmetros para a progressão são os seguintes: a)40%, para o réu primário e 60% para o reincidente em crime hediondo ou equiparado; b)50%, para o réu primário e 70% para o reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional em ambos os casos.
Quando se tratar de reincidência em crime hediondo e não hediondo (v.g., tráfico de drogas simples e privilegiado) ou de reincidência em crime hediondo com e sem morte (v.g., tráfico de droga e latrocínio), deverá ser feita a distinção no caso concreto, de modo a prevalecer o critério mais favorável ao apenado. Assim, por exemplo, no caso de reincidência em tráfico de drogas simples e privilegiado, não há reincidência específica em crime equiparado a hediondo, mas reincidência genérica, razão pela qual prevalecerão os critérios previstos para os delitos comuns, com as várias distinções que devem ser feitas concretamente (crime com ou sem violência, com ou sem morte, réu primário ou reincidente etc.).
Também aqui é aplicável, mutatis mutandis, a solução proposta para a reincidência envolvendo crimes cometidos com e sem violência.
O tráfico de droga privilegiado, previsto no art. 33, §4°, da Lei 11.343/2006, deixou de ser considerado crime equiparado a hediondo (art. 112, §5º).
A lei exige ainda o percentual de 50% para: a)condenado por exercer o comando, individual ou coletivo, de organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou equiparado; b)condenado pela prática do crime de constituição de milícia privada.
Além disso: a)as lideranças de organizações criminosas armadas ou que tenham armas à disposição deverão iniciar o cumprimento da pena em estabelecimentos penais de segurança máxima (art. 2°, §8°, da Lei n° 12.850/2013); b)o condenado expressamente em sentença por integrar organização criminosa ou por crime praticado por meio de organização criminosa não poderá progredir de regime de cumprimento de pena ou obter livramento condicional ou outros benefícios prisionais se houver elementos probatórios que indiquem a manutenção do vínculo associativo (art. 2°,§9º).
Em todos os casos, o apenado só terá direito à progressão de regime se ostentar boa conduta carcerária, comprovada pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.
A decisão do juiz que determinar a progressão de regime será sempre motivada e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor, procedimento que também será adotado na concessão de livramento condicional, indulto e comutação de penas, respeitados os prazos previstos nas normas vigentes.
O cometimento de falta grave durante a execução da pena privativa de liberdade interrompe o prazo para a obtenção da progressão no regime de cumprimento da pena, caso em que o reinício da contagem do requisito objetivo terá como base a pena remanescente.
V) O juiz das garantias
1)Introdução
Nota: Diversos artigos da Lei n° 13.964/2019, aí incluídos os que tratam do juiz de garantias, estão suspensos por força da decisão cautelar, de 22/01/2020, proferida nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) nºs 6298, 6299, 6300 e 6305, sendo relator o Ministro Luiz Fux.
A lei faz modificações relevantíssimas no processo penal ao adotar o sistema acusatório, o juiz de garantias e prestigiar o princípio da oralidade, que são temas conexos, pois um juiz de garantias só faz sentido num sistema de tipo acusatório-garantista6, que, por sua vez, requer imediatidade e oralidade dos atos processuais.
Doravante haverá, pois, dois juízes: um que, em linhas gerais, decidirá os incidentes da investigação na forma da lei, se e quando provocado, e outro que presidirá a instrução e o julgamento do processo.
Presume-se que o juiz que profere atos decisórios na fase de investigação não é suficientemente imparcial para presidir o processo e proferir sentença, razão pela qual ficará impedido de atuar no processo. Considera-se, enfim, que quem decretou prisões e deferiu ou indeferiu pedidos de revogação, que determinou interceptações telefônicas ou busca e apreensão etc., já terá formado seu juízo sobre a culpabilidade do investigado na fase pré-processual, por isso deve ficar impedido de atuar durante a instrução e julgamento do processo. Do contrário, o processo seria mera repetição do inquérito policial cujo investigado já estaria pré-julgado. Seria uma espécie de jogo de cartas marcadas.
Existe, a propósito, precedente do Supremo Tribunal Federal (HC n° 94.641-1/BA) anulando processo penal em virtude de parcialidade/impedimento do juiz que também oficiou em procedimento de investigação de paternidade que serviu de base para a denúncia, resultando na condenação do réu por crime de atentado violento ao puder contra a própria filha. O voto vencedor, proferido pelo Ministro Joaquim Barbosa, consignou: “Entendo que há nulidade grave. O juiz, durante dias, intimou várias testemunhas, colheu depoimentos, fez um breve relatório e enviou para o Ministério Público. Presidiu toda a instrução e proferiu sentença. Ele atuou como autoridade policial”. No mesmo sentido, foi o substancioso voto do Ministro Cezar Peluso, que merece ser lido.
Há ainda diversos precedentes no mesmo sentido de tribunais internacionais, especialmente da Corte Europeia de Direitos Humanos.
Embora previsto para a primeira instância, temos que o instituto é também aplicável às ações penais originárias de competência dos tribunais, de modo a impedir, nas ações penais originárias, o desembargador ou ministro-relator que tiver proferido decisões reservadas ao juiz das garantias7. Sim, porque, do contrário, ofender-se-ia o sistema acusatório com a configuração legal atual e se violaria o princípio da isonomia, dado que os réus processados perante os tribunais teriam tratamento desigual e menos garantista. Tampouco há vedação legal no particular. Mais: se o instituto não for aplicado aos tribunais, os acusados com foro por prerrogativa de função serão duplamente punidos, já que carecerão de um juiz das garantias e do duplo grau de jurisdição. Aliás, também por isso é justo abolir o foro por prerrogativa de função.
O instituto é aplicável ao tribunal do júri: o juiz que tiver praticado atos decisórios durante a investigação ficará impedido para a sua instrução e julgamento.
Durante as investigações atuará, portanto, se e quando provocado, o juiz de garantias; no processo, o juiz da instrução e julgamento. As competências de um e outro são excludentes: o juiz de garantias ficará impedido para atuar no processo e o juiz da instrução não poderá praticar atos daquele. Estão em parte revogados os arts. 75, parágrafo único, e 83 do CPP8, que previam a atuação de um único juiz, o qual ficava prevento para o processo sempre que decidisse durante a investigação. Afinal, o juiz das garantias não fica prevento, mas impedido para atuar na instrução e julgamento do processo.
O termo “juiz das garantias” não é dos melhores e mais parece um pleonasmo, visto que também o juiz da instrução tem como função precípua garantir o devido processo legal. Nesse sentido, todos são juízes de garantias ou garantidores da lei e do justo processo.
É instituído o sistema acusatório nos seguintes termos: O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação (CPP, art. 3°-A).
O que é característico desse sistema é a separação, em órgãos distintos e independentes, das funções de acusar, defender e julgar. Como regra, a acusação cabe ao Ministério Público, e, excepcionalmente, ao querelante, isto é, ao próprio ofendido ou seu representante legal. Apesar disso, o MP, cuja atuação é regida pelo princípio da legalidade penal, só pode acusar se tiver justa causa para tanto. Além disso, nada impede que postule a absolvição ou recorra em favor do réu. Afinal, o compromisso fundamental do MP é com a defesa da ordem jurídica e do regime democrático (CF, art. 127), aí incluída a defesa das garantias do réu, inclusive, razão pela qual não lhe é dado acusar arbitrariamente, mas justamente e sem excessos.
Por sua vez, no sistema acusatório o juiz não pode usurpar as funções da acusação, por isso não lhe cabe, na fase investigatória, determinar a produção de prova, nem requisitar inquérito policial ou decretar prisão ou medida cautelar de ofício. O juiz já não poderá, portanto, converter a prisão em flagrante em prisão temporária ou preventiva, exceto se houver requerimento do MP ou representação da autoridade policial. Está revogado o art. 5°, II, primeira parte do CPP9, que permitia a requisição de inquérito policial pelo juiz. O juiz que tiver conhecimento de infração penal deverá oficiar aos órgãos competentes para a adoção das providências cabíveis.
Como a lei veda a inciativa probatório do juiz de garantias, está revogado o art. 156, I, do CPP10, que previa a possibilidade de o magistrado determinar a produção antecipada de prova de ofício na fase pré-processual. Apesar disso, o juiz da instrução e julgamento poderá determinar a produção de prova de ofício em casos excepcionais e subsidiariamente às partes. O que lhe é vedado é “a substituição da atuação probatória do órgão de acusação” (art. 3°-A).
É importante notar, porém, que o princípio da legalidade penal constitui essencialmente uma garantia de proteção do investigado ou acusado contra os excessos do poder punitivo, razão pela qual nada impedirá o juiz de, eventualmente, ordenar, mesmo de ofício, determinadas diligências ou proferir certas decisões em favor do indivíduo (v.g., instaurar incidente de sanidade mental, revogar prisão etc.).
Justo por isso, a lei proíbe a “substituição da atuação probatória do órgão da acusação”, não simplesmente a “substituição da atuação probatória”.
Como veremos a seu tempo, são muitas as implicações do sistema acusatório sobre o processo penal.
O sistema acusatório tem importantes implicações também sobre a execução penal11. Parece-nos, inclusive, que estão parcialmente revogados os arts. 105 e 147 da LEP, que preveem a execução de ofício da sentença. Dizemos parcialmente porque só há incompatibilidade da reforma com relação aos condenados soltos, cuja iniciativa da execução há de competir somente ao Ministério Público, não ao juiz.
Já quanto aos condenados que cumprem pena ou medida de segurança provisoriamente, temos que a iniciativa do juiz é legítima, porque, do contrário, haveria uma omissão prejudicial ao sentenciado, que implicaria violação de direitos básicos, como direito à progressão de regime, ao livramento condicional etc.
A propósito, o art. 469 do Código de Processo Penal Português dispõe: Compete ao Ministério Público promover a execução das penas e das medidas de segurança e, bem assim, a execução por indemnização e mais quantias devidas ao Estado ou a pessoas que lhe incumba representar judicialmente.
2)Retroatividade da lei
O juiz de garantias implica novas regras de competência e tem aplicação imediata (CPP, art. 2°), devendo incidir sobre inquéritos e processos em curso. Além disso, é mais favorável ao investigado, devendo, também por isso, retroagir, isto é, incidir sobre infrações penais cometidas antes de sua entrada em vigor, consumados ou tentados.
Nesse sentido: 1)não incide sobre processos já sentenciados, com ou sem trânsito em julgado da sentença, já que tramitaram na forma da lei vigente; logo, são válidos; 2)nos processos já instaurados, sem instrução iniciada, o juiz que interveio durante a investigação ficará impedido para a instrução e o julgamento do processo; 3)nos processos com instrução já iniciada, o juiz que interveio durante a investigação ficará impedido para prosseguir no processo, apesar do princípio da identidade física do juiz. Os atos instrutórios que presidiu na forma da lei então vigente são válidos; 4)nos processos com instrução já concluída que aguardam julgamento, outro juiz proferirá a sentença, se o atual tiver atuado durante a investigação, apesar do princípio da identidade física do juiz. Também aqui os atos instrutórios são válidos porque praticados conforme a lei do tempo; 5)o juiz que tiver proferido decisão no inquérito policial ou PIC (procedimento de investigação criminal) ficará impedido para a instrução e julgamento do processo que for instaurado.
3)Competência do juiz de garantias
De acordo com o art. 3º-B, o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do poder judiciário. As atribuições do juiz das garantias deveriam assim começar e terminar com as investigações que demandam a sua atuação (cláusula de reserva de jurisdição). Mas não é bem isso.
É que compete ao juiz das garantias, não ao juiz da instrução, decidir sobre o recebimento ou não da denúncia ou da queixa, nos termos do art. 399 do Código (art. 3°-B, XIV). A remissão ao art. 399 do CPP é importantíssima e é feita também pelo art. 3-C da Lei.
Com efeito, a remissão significa que o juiz continuará atuando mesmo após o recebimento da denúncia previsto no art. 396 do CPP, cabendo-lhe decidir, inclusive, sobre a absolvição sumária de que trata o art. 397 do CPP. Ou seja, o juiz de garantias, muito além do simples controle da legalidade do inquérito, decidirá sobre o mérito da acusação, recebendo ou rejeitando a denúncia, podendo a seguir até proclamar a absolvição sumária do acusado.
Em suma, a competência do juiz de garantias transcende, claramente, a previsão do art. 3°-B do CPP, qual seja, a de ser o responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do poder judiciário.
Aliás, é no mínimo curioso que um juiz criado para fazer o controle da legalidade da investigação criminal continue praticando atos mesmo após a sua conclusão, decidindo sobre o recebimento ou não de denúncia e absolvendo ou não o réu, sumariamente. De todo modo, foi essa a opção do legislador.
O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências do juiz de garantias ficará impedido de funcionar no processo (art. 3°-D). Esse artigo 3º-D faz remissão, em verdade, aos arts. 4° e 5° do CPP, que nada têm a ver com as atribuições do juiz de garantia. Trata-se, portanto, de manifesto equívoco. A remissão deveria ser feita ao art. 3-B. O correto seria, pois: O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências do art. 3-B deste Código ficará impedido de funcionar no processo.
Em resumo, o magistrado que tiver atuado como juiz de garantias não poderá funcionar como juiz da instrução e julgamento, nem este poderá praticar atos daquele. As competências são excludentes.
A competência do juiz de garantias compreende todos os crimes, exceção feita às infrações penais de menor potencial ofensivo, isto é, contravenções e delitos punidos com pena igual ou inferior a 2 anos.
Como as competências do juiz de garantias não são exaustivas, mas exemplificativas, o impedimento de que trata o art. 3°-D atingirá diversas outras hipóteses de atuação do magistrado na fase da investigação.
No caso de existir mais de um juiz de garantias, a prática de qualquer dos atos de sua competência implicará prevenção. Logo, o juiz de garantias competente será o juiz prevento.
4)Competências em espécie
A lei enumera diversas competências do juiz de garantias. O rol não é taxativo, mas exemplificativo (art. 3º-B, XVIII). Assim, por exemplo, a audiência de custódia será presidida pelo juiz das garantias, embora a lei não a mencione expressamente.
Vejamos.
Os três primeiros incisos do art. 3°-B tratam do mesmo tema: o controle da legalidade da prisão provisória, especialmente da prisão em flagrante delito. Caberá ao juiz das garantias: receber a comunicação imediata da prisão e o auto de prisão em flagrante, bem como zelar pela observância dos direitos do preso, com ou sem provocação das partes. O sistema acusatório-garantista não significa que o juiz deva aguardar passivamente a provocação dos sujeitos processuais em tema de violação de direitos humanos, devendo determinar, por isso, a cessação de abusos de que tenha conhecimento. Poderá, por exemplo, determinar a imediata revogação de prisões ilegais ou abusivas, oficiar aos órgãos competentes para adoção das providências cabíveis etc., independentemente de inciativa dos interessados.
Isso inclui inclusive a proteção de que trata o art. 3°-F: O juiz das garantias deverá assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos da imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e penal.
Daí a importância da audiência de custódia prevista no art. 310 do CPP, também de competência do juiz das garantias: Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público.
Com a nova lei, o inquérito policial tramitará diretamente entre a polícia judiciária e o MP, sem mediação judicial. O juiz das garantias só será provocado nos casos de reserva de jurisdição. Justo por isso, a lei prevê que a instauração de qualquer investigação criminal (inquérito policial, PIC etc.) deverá ser comunicada ao juiz das garantias.
Compete ainda ao juiz de garantias decidir, na fase de investigação, sobre todo e qualquer requerimento de decretação, revogação, reforço, prorrogação ou substituição de prisão ou medida cautelar diversa, pessoal ou real, assegurado o contraditório, prévio ou diferido, conforme o caso. Exige-se, ainda, que, no caso de prorrogação de prisão cautelar (temporária e preventiva), audiência pública e oral.
O juiz de garantias decidirá também sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral, necessariamente se houver requerimento, já que não mais se admite produção de prova de ofício na fase de investigação.
Como o inquérito policial tramitará diretamente entre a polícia judiciária e o MP, pedidos de prorrogação de prazo já não serão submetidos ao juízo. Mas há uma exceção: quando o investigado estiver preso, o que exigirá necessariamente decisão judicial, caberá ao juiz das garantias decidir sobre a prorrogação de prazo.
Se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada (art. 3°-B, §2°).
Com ou sem provocação, o juiz determinará o trancamento do inquérito policial quando este carecer, manifestamente, de fundamento (v.g., fato atípico, prescrição etc.), podendo requisitar documentos, laudos, informações etc.
Decidirá também sobre os requerimentos de: a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação; b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico; c) busca e apreensão domiciliar; d) acesso a informações sigilosas; e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado.
Julgará ainda o habeas corpus antes do oferecimento da denúncia ou queixa. Essa previsão só faz sentido, contudo, quando se tratar de habeas corpus impetrado contra atos dos órgãos de investigação, especialmente da polícia judiciária.
Quando, porém, o MP ou o próprio juiz de garantias figurar como autoridade coatora, o habeas corpus deverá ser impetrado perante o tribunal.
Nos casos de suspeita de inimputabilidade ou semi-imputabilidade (CP, art. 26), o juiz das garantias determinará o incidente de sanidade mental, independentemente de requerimento, desde que haja fundadas razões para tanto (CPP, art. 149).
São também de competência do juiz de garantias: 1)decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código; 2) assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento; 3) deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia; 4)decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação.
5)Encerramento da atuação do juiz de garantias etc.
O art. 3-C diz que a competência do juiz das garantias cessa com o recebimento da denúncia ou queixa, na forma do art. 399 do CPP, devendo o juiz da instrução resolver as questões pendentes. Assim, por exemplo, o pedido de revogação de prisão preventiva e outros tantos temas não decididos pelo juiz de garantias serão resolvidos pelo juiz da instrução.
Nem sempre as investigações são concluídas com o recebimento da denúncia, pois a denúncia ou a queixa podem vir acompanhadas de pedido de novas diligências (v.g, apurar a participação de outros crimes ou suspeitos). Nesse caso, o juiz das garantias resolverá, quando provocado, os incidentes relativos à investigação remanescente.
As decisões do juiz de garantias não vinculam o juiz da instrução, que poderá decidir diversamente, como, por exemplo, anular o processo se entender que a prova é ilícita, substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou decretar a validade ou a invalidade de certo ato. Quanto às medidas cautelares, a lei determina que ele proceda ao reexame no prazo máximo de dez dias.
VI)Legítima defesa
A lei dá nova redação ao art. 25 do CP, acrescentando-lhe um parágrafo único com a seguinte redação:
Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.
O acréscimo é absolutamente desnecessário, visto que: a)o parágrafo único faz remissão ao caput do art. 25 do CP e exige, para a “nova legítima defesa”, todos os requisitos já previstos no caput; logo, nada lhe acrescenta de fato; b)como os requisitos do parágrafo único são exatamente os mesmos do caput, é irrelevante a condição pessoal do autor, isto é, se é ou não policial; c)qualquer crime, não apenas o sequestro e a extorsão mediante sequestro, é passível de legítima defesa; d)a legítima defesa tanto pode ser invocada em favor do policial quanto da vítima mantida refém (legítima defesa própria ou de terceiro).
Em suma, a ideia inicial de facilitar a alegação de legítima defesa para agentes da segurança pública não prevaleceu. Nem faria sentido, já que a legítima defesa é um meio de proteção de bens jurídicos que só pode ser tolerada quando houver necessidade e moderação no seu uso, razão pela qual não pode servir de pretexto para violações sistemáticas ou criminosas de direitos humanos. O contrário é que seria razoável: exigir-se mais por parte de policiais, seja por ser um garantidor da segurança, não um vingador, seja por ser um especialista no uso de arma.
1No mesmo sentido, Aury Lopes Júnior e Alexandre Morais da Rosa. https://www.conjur.com.br/2020-jan-31/limite-penal-prisao-obrigatoria-juri-vez-inconstitucional.
2No mesmo sentido, Vladimir Aras. A lei anticrime comentada. São Paulo: JH Mizuno, 2020. Em sentido contrário, Rômulo de Andrade Moreira: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-acordo-de-nao-persecucao-penal, 2020.
3Em sentido contrário, Vladimir Aras. A lei anticrime comentada. São Paulo: JH Mizuno, 2020.
4A vontade de poder. São Paulo: Contraponto, 2008, p. 260, aforismo 481.
5Vladimir Aras. A lei anticrime comentada. São Paulo: JH Mizuno, 2020.
6Um sistema acusatório não é necessariamente garantista, mas um sistema garantista é necessariamente acusatório. No modelo garantista proposto por Ferrajoli, o sistema acusatório é apenas um dos axiomas do garantismo, mais precisamente o oitavo: Nullum indicium sine accusatione. Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale. Roma-Bari: 2011, p.69.
7No mesmo sentido, Rômulo de Andrade Moreira. https://emporiododireito.com.br/colunas/romulo-de-andrade-moreira, 2020.
8Art. 75. A precedência da distribuição fixará a competência quando, na mesma circunscrição judiciária, houver mais de um juiz igualmente competente.
Parágrafo único. A distribuição realizada para o efeito da concessão de fiança ou da decretação de prisão preventiva ou de qualquer diligência anterior à denúncia ou queixa prevenirá a da ação penal.
Art. 83.Verificar-se-á a competência por prevenção toda vez que, concorrendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou da queixa (arts. 70, § 3o, 71, 72, § 2o, e 78, II, c).
9Art. 5o Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:
I-de ofício;
II-mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.
10Art.156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I– ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.
11Ver Rômulo de Andrade Moreira. https://romulomoreira.jusbrasil.com.br/artigos/301008433/a-execucao-penal-no-processo-penal-brasileiro-e-a-sua-compatibilidade-com o sistema acusatório, acessado em 10/02/2020.