A doutrina sói distinguir penas e medidas de segurança, recorrendo aos seguintes critérios1 : 1)a pena pressupõe culpabilidade, as medidas de segurança, periculosidade, por isso que “a ausência de culpabilidade não impede a aplicação de medida de segurança, pois ela é substituída pelo juízo de periculosidade”2 ; também por isso, a culpabilidade seria pressuposto da pena, e não elemento ou requisito do crime, uma vez que, para a aplicação da medida de segurança, bastariam a tipicidade e a ilicitude da conduta (=crime); 2)as penas têm natureza retributiva-preventiva; as medidas de segurança são preventivas; 3)as penas são proporcionais à gravidade da infração; a proporcionalidade das medidas de segurança fundamenta-se na periculosidade do sujeito; 3)as penas são por tempo determinado, as medidas de segurança, indeterminado; 4) as penas são aplicáveis aos imputáveis, as medidas de segurança aos inimputáveis.
Será isso correto? Temos que não.
Desde logo, não é exato dizer que, quanto aos inimputáveis, o juízo de culpabilidade é substituído pelo juízo de periculosidade. Sim, porque em favor do inimputável militam, também, além das excludentes de tipicidade e ilicitude, todas as causas de exclusão de culpabilidade, bem como causas extintivas de punibilidade (prescrição, decadência), conforme prevê o art. 96, parágrafo único, do Código. Ora, se isso é certo, segue-se que a só periculosidade não é bastante, evidentemente, para ensejar a aplicação de medida de segurança, pois hão de concorrer, para tanto, todos os pressupostos da punibilidade, já que são inadmissíveis medidas pré-delituais. Se, no entanto, os inimputáveis ficam sujeitos, não à pena, mas à medida de segurança, é porque assim recomenda o princípio da proporcionalidade (adequação), pois sentido algum faria enclausurá-los numa penitenciária.
Afinal, se o juiz constatar que o réu inimputável agiu sob coação moral irresistível, obedeceu à ordem não manifestamente ilegal, incorreu em erro de proibição inevitável etc., hipóteses perfeitamente possíveis, será de todo ilegal a aplicação de medida de segurança, impondo-se a absolvição pura e simples (CPP, art. 386, III e V), visto que, se, nas mesmas circunstâncias, se puder invocá-las em favor do imputável, o mesmo deverá ocorrer, com maior força de razões, quanto ao inimputável, porquanto num sistema democrático de direito as garantais devem ser proporcionais ao grau de vulnerabilidade de quem delas necessitam, os mais débeis.
Tampouco cabe dizer que as penas têm natureza retributiva-preventiva, as medidas de segurança, só preventiva. Primeiro, porque, pelo que já se disse, tanto as penas quanto as medidas de segurança pressupõem fato típico, ilícito, culpável e punível, de modo que, desse ponto de vista, as medidas de segurança constituem, também, uma retribuição a uma infração penal punível. Segundo, porque, no essencial, as medidas de segurança buscam os mesmos fins assinalados à pena: prevenir reações públicas ou privadas arbitrárias contra o criminoso inimputável (prevenção geral negativa) e prevenir a reiteração de crimes3 (prevenção especial). Finalidade da intervenção jurídico-penal é, pois, em ambos os casos, a proteção subsidiária de bens jurídicos relevantes.
No que tange à indeterminação do prazo máximo das medidas de segurança, herança do positivismo criminológico, cabe redargüir que, em homenagem aos princípios da igualdade, proporcionalidade, humanidade e não-perpetuação das penas, não se justifica, numa perspectiva garantista, que tais sanções, diferentemente das penas, possam durar indefinidamente, enquanto “não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação da periculosidade” (CP, art. 97, §1°), razão pela qual jamais deverão exceder ao tempo de pena que seria cabível na espécie. Ademais, devem ser minimamente aflitivas para o criminoso inimputável, pois encerram, ordinariamente, dupla violência: hospital e cárcere.
Conclusivamente, distinção ontológica alguma há entre penas e medidas de segurança, pois ambas perseguem, essencialmente, os mesmos fins e pressupõem o concurso de idênticos pressupostos de punibilidade: fato típico, ilícito, culpável e punível. A distinção reside, portanto, unicamente, nas conseqüências: os imputáveis estão sujeitos à pena, os inimputáveis, à medida de segurança, atendendo-se a critério de pura conveniência político-criminal, adequação da resposta penal.
Notas de rodapé convertidas1. Conforme Damásio de Jesus, Direito Penal, p. 545, Saraiva, S. Paulo, 2003. De modo similar, Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal, p. 681, Saraiva, S. Paulo, 2004. A despeito disso, Cezar Bitencourt reconhece que a medida de segurança pressupõe “prática de fato típico punível”, pois “é indispensável que o sujeito tenha praticado um ilícito típico. Assim, deixará de existir esse primeiro requisito se houver, por exemplo, excludentes de criminalidade, excludente de culpabilidade (erro de proibição invencível, coação moral irresistível e obediência a ordem hierárquica, embriaguez completa fortuita ou por força maior), – com exceção da inimputabilidade -, ou ainda se não houver prova do crime ou da autoria etc. Resumindo: a presença de excludentes de criminalidade ou de culpabilidade e a ausência de prova impedem a aplicação de medida de segurança”, idem, p. 682. Também nesse sentido, Flávio Augusto Monteiro de Barros, para quem, “a ausência de culpabilidade não impede a aplicação da medida de segurança, pois o juízo de culpabilidade é substituído pelo de periculosidade. Poder-se-ia obtemperar que esse tratamento díspar viola o princípio da isonomia. Ledo engano, pois a ausência de imputabilidade torna inadmissível o questionamento da culpabilidade”, Direito Penal – Parte Geral, p. 479, Saraiva, S. Paulo, 2003.2. Damásio, idem.
3. Como assinala Fragoso, a propósito (ainda) da medida de segurança aplicável ao imputável, “pena e medida de segurança têm o mesmo fundamento. Ambos servem à proteção de bens jurídicos e se destinam a prevenir a prática de crimes. Na execução, ambas tendem à reintrodução do agente na sociedade, sem que venha a cometer novos crimes. É certo que a pena, em sua natureza jurídica, é, em essência, retributiva, porque é perda de bens jurídicos imposta ao transgressor. Mas a medida de segurança detentiva para imputáveis, que o condenado recebe e sofre como uma pena, também é perda de bens jurídicos, tendo natureza aflitiva, por vezes, mais grave do que a pena”, Lições de Direito Penal, p. 387, Forense, Rio, 1994. Também no sentido de que a medida de segurança persegue fins de prevenção geral (positiva) e especial, Figueiredo Dias, Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas, RT, S. Paulo, 1999. Para uma crítica à prevenção (geral ou especial), no que toca à medidas de segurança, Gamil Föppel, A função da Pena na visão de Claus Roxin, Forense, Rio de Janeiro, 2004.