O STF e a combinação de leis penais

7 de novembro de 2013

O plenário do STF rejeitou hoje, 7/11/2013, por maioria, a possibilidade de combinação de leis no caso de tráfico de drogas. No mesmo sentido, o STJ aprovou a Súmula 501: “É cabível a aplicação retroativa da Lei 11.343/2006, desde que o resultado da incidência das suas disposições, na íntegra, seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei n. 6.368/1976, sendo vedada a combinação de leis”.

A decisão é a mais correta?

Temos que não.

Como é sabido, no caso de sucessão de leis, pode ocorrer de a nova lei ser em parte favorável e em parte desfavorável ao réu, hipótese que tem como exemplo recente a revogação da Lei nº 6.368/76 pela Lei nº 11.343/2006, relativamente ao tráfico ilícito de droga. Com efeito, apesar de a nova lei ter aumentado a pena cominada ao crime, de 3 a 12 anos de reclusão, para 5 a 15 anos de reclusão, passou a admitir uma causa de redução de pena, que não existia na lei revogada, de 1/6 a 2/3, para o réu primário, sem antecedentes criminais e sem envolvimento com organização criminosa.

Discute-se, então, se seria possível que o réu que praticou crime na vigência da Lei 6.368/76 (revogada) poderia ficar sujeito àquela pena inicial (3 a 12 anos) com a redução de pena da nova lei, por lhe ser mais favorável, havendo posicionamento da doutrina e jurisprudência em ambos os sentidos, isto é, contrário e a favor da combinação.1 Aqueles que se posicionam contrariamente alegam que a combinação implicaria criação de uma terceira lei (lex tertia) e o juiz estaria assim usurpando função própria do legislador em afronta aos princípios de legalidade e divisão de poderes.

Pensamos que a assim chamada combinação é, em verdade, um caso de retroatividade parcial da lei, já que a nova lei sempre pode ser total ou parcialmente favorável ao réu, podendo inclusive ser benéfica na parte penal e prejudicial na parte processual ou vice-versa.

Pois bem, se a lei posterior for inteiramente favorável ao réu, é evidente que retroagirá de forma integral; mas, se o for em parte, então o caso é de retroatividade parcial da nova lei. Parece claro que, se deve retroagir quando for integralmente favorável, tal deverá ocorrer, com maior razão, quando o for apenas em parte, em respeito ao princípio constitucional da retroatividade da lex mitior, pouco importando o quanto de benefício encerre; afinal, se a lei deve retroagir no seu todo quando mais branda, o mesmo há de ocorrer quando somente o for em parte. Ademais, o Código (art. 2º, parágrafo único) prevê a retroatividade quando a lei posterior favorecer o agente de qualquer modo, isto é, incondicionalmente, sempre que a nova lei acarretar alguma espécie de atenuação do castigo.

E se não for admitida a retroatividade parcial da lei nova, negar-se-á vigência ao princípio constitucional da retroatividade da lei mais favorável.2

Ademais, aqueles que se opõem a assim chamada combinação de leis partem de uma perspectiva hermenêutica a ser superada, pois pressupõem que a interpretação depende do direito, e não o contrário, que é o direito que depende da interpretação, afinal, a interpretação é a forma mesma de realização do direito.

Não existe, portanto, direito fora ou além da interpretação. Porque a interpretação é o alfa e o ômega, o começo e fim, a vida e morte do direito.

Admitir a mencionada combinação é, pois, dar à lei interpretação conforme a Constituição.

 

 

1 . Admitindo a combinação, Frederico Marques, Francisco de Assis Toledo, Damásio de Jesus, Cezar Roberto Bitencourt, Juarez Cirino dos Santos, Andrei Schmidt, entre outros. Contrariamente, Nélson Hungria, Aníbal Bruno, Heleno Cláudio Fragoso etc.

 

2 . No sentido do texto, Ney Moura Teles assinala que, se a Constituição Federal manda a lei penal mais benéfica retroagir sempre, o que se pode afirmar é que apenas o dispositivo benéfico retroage, irretroativo o mais severo, uma vez que a pretensão da lei maior é que retroaja a norma mais benéfica, e não o texto legal integral, a não ser que fosse ele integralmente mais favorável. Se num texto há vários dispositivos, uns benéficos, outros prejudiciais, é claro que só aqueles retroagem. Ao combinarem os dispositivos de duas leis, o juiz não cria uma terceira lei, mas apenas obedece ao preceito constitucional, maior, que não manda a lei retroagir por inteiro, mas determina a retroatividade de todo e qualquer dispositivo legal que vier favorecer o réu. Direito Penal. Parte Geral. S. Paulo: Atlas, 2006.

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3 Comentários

  1. Boa noite caro professor!

    No caso em tela, com a aplicação da redução de 2/3 para o crime de tráfico de drogas, não estaríamos igualando a pena mínima deste crime ao de um mero furto qualificado pela escalada? Desta forma, não estaríamos criando uma nova incongruência no sistema? Ademais, ocorre que no Brasil a regra é a redução de 2/3. Vejo que este parágrafo veio para ser uma exceção, todavia transformou-se em regra.

  2. Caro Paulo,

    Essa é a posição que consta do meu execução criminal (7ª ed. 2014 – gostaria de lhe entregar um exemplar).

    Embora não se tenha declarado repercussão geral, parece que o STF seguiu o STJ, visto que em data pouco anterior decidiu editar a Súmula n. 501, que impede a retroatividade parcial da Lei n. 11.343/2006 e a manutenção de parte da vigência da Lei n. 6.368/1976.

    E, por favor, permita-me tratar rapidamente do comentário de Pedro Fraga, pois sempre digo que a nossa legislação criminal é repleta de problemas, por violação à necessária proporcionalidade, v.g., a lesão gravíssima (CP, art. 129, § 2º) tem pena mínima cominada menor do que a do furto (CP, art. 155, § 5º). Ora, se todas as causas de diminuição do art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 são objetivas, a redução só pode ser feita no máximo (mais benéfico), pois não há como racionalmente o Juiz variar bons antecedentes, primariedade e não participar de organização criminosa, requisitos para a diminuição.

    É apenas mais uma incoerência legal, mas que deve ser enfrentada sob a perspectiva da legalidade estrita!

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