O problema da reincidência

6 de agosto de 2022

A reincidência é um problema.

Do ponto de vista político-criminal é um fator importantíssimo de encarceramento; e do ponto de vista da dogmática penal é um caso clássico de bis in idem, cuja aplicação produz múltiplas penalizações, isto é, mais bis in idem.

Com efeito, a reincidência tem repercussão sobre diversos temas penais, processuais penais e executórios, tais como: 1)prisão cautelar; 2)acordo de não persecução penal (CPP, art. 28-A); 3)princípio da insignificância; 4)dosimetria da pena; 5)substituição da prisão por pena restritiva de direito; 6)aplicabilidade de causas de diminuição de pena (v.g., furto privilegiado); 7)fixação do regime inicial de cumprimento da pena; 8)progressão de regime; 9)livramento condicional; 10)indulto; 11)comutação; 12)prescrição.

Numa caso de tráfico de drogas, a sentença poderá, por exemplo, com base no mesmo fundamento jurídico-penal da reincidência: a)afastar o princípio da insignificância; b)impedir o acordo de não persecução penal; c)decretar a prisão preventiva; d)agravar a pena com base nos maus antecedentes (CP, art. 59), quando houver mais de uma condenação; e)aumentar a pena-base (CP, art. 61, I); f)vedar o tráfico privilegiado (art. 33, §4°, da Lei n° 11.343/2.006); g)negar a substituição por pena restritiva de direito (CP, art. 44, II); h)impor o regime fechado de execução.

Nessa hipótese, a reincidência implicaria oito penalizações sucessivas num único caso. E outras poderiam ser imaginadas.

E mesmo após a sua extinção formal (CP, art. 64, I), ela continua a ser utilizada com outros nomes: maus antecedentes, reiteração criminosa, habitualidade etc.

Além disso, produz efeitos mais gravosos nos casos de multirreincidência, reincidência específica etc.

Tudo isso não é bis in idem puro e simples?

É evidente que sim, porque, ao se agravar a pena de um crime com base noutro, o que se está a fazer é punir novamente o crime já sentenciado e cuja pena foi ou será cumprida (possivelmente). O efetivo cumprimento da sentença não é indispensável à sua caracterização, pois poderá haver reincidência mesmo que tenha havido prescrição da pretensão executória, fuga do condenado etc.

E, como vimos no exemplo do tráfico, tudo que se segue ao reconhecimento da reincidência são múltiplas penalizações incompatíveis com o princípio que veda a dupla punição (ne bis in idem).

Além disso, trata-se de uma agravante que nada tem a ver com a culpabilidade pelo delito praticado.

Com efeito, diferentemente das agravantes dos arts. 61 e 62 do CP (motivo fútil ou torpe, traição, emboscada etc.), que traduzem uma especial reprovabilidade da conduta atual de que trata a sentença, a agravante da reincidência fundamenta-se num crime passado sem relação com a nova condenação.

Mais: a censurabilidade do autor da infração penal (crime ou contravenção) não é maior ou menor pelo só fato da reincidência. Autores e partícipes de um crime de homicídio são puníveis independentemente de serem primários ou reincidentes. E são mais ou menos culpáveis de acordo com as circunstâncias concretas do caso. O primário poderá ter agido muito mais reprovavelmente, inclusive, podendo o reincidente fazer jus, por exemplo, à causa de diminuição de pena do art. 29, §1°, do CP (participação de menor importância).

A culpabilidade deve ser aferida, portanto, segundo o fato (direito penal do fato), não segundo o autor do fato (direito penal do autor). Pune-se o agente pelo que fez, não pelo que é (reincidente, perigoso etc.).

Por fim, é possível ser autor dos mais graves crimes (um massacre, por exemplo) e, não obstante, ser primário. É que só há reincidência quando o agente comete novo crime depois de transitar em julgado a sentença que o tenha condenado por crime anterior (CP, art. 63). E ele poderá ser reincidente em contravenção ou em crimes leves ou de menor potencial ofensivo (v.g., crimes contra a honra).

A reincidência/primariedade não é, por conseguinte, garantia de maior ou menor periculosidade do autor.

O problema da reincidência é a própria reincidência. Que pode e deve ser abolida.

 

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