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Ne bis in idem

1)SIGNIFICADO E IMPLICAÇÕES

Não é possível punir-se, mais de uma vez, uma mesma conduta (ação ou omissão) por um mesmo fundamento jurídico, sob pena de violação ao princípio ne bis in idem, que tem tríplice dimensão: penal, processual e executória, a impedir que o réu ou indiciado possa ser investigado, processado, condenado ou punido pelo mesmo fato1. 1O princípio está previsto no artigo 14, 7, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos: “Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país”. E no Pacto de São José da Costa Rica, cujo artigo. 8°, 4, diz: “O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”.

 

Trata-se de proibição que resulta diretamente dos princípios da proporcionalidade e legalidade, a evitar múltipla valoração e punição do mesmo fato com idêntico fundamento jurídico. Consequentemente, é vedada a multiplicidade de penas para o mesmo sujeito, por uma mesma ação ou omissão, se tiverem um mesmo fundamento.1

Não há bis in idem, porém, em princípio, quando o fato é punível simultânea ou sucessivamente em âmbitos jurídicos distintos, visto que diversa é a fundamentação jurídica.2 Assim, por exemplo, o peculato (CP, art. 312) é legitimamente punível civil, administrativa e penalmente (respectivamente, reparação do dano, perda do cargo e prisão).

Nem importam em dupla valoração e punição do fato as hipóteses legais de concurso de crimes, formal, material e continuado (CP, arts. 69 a 71).

Discute-se se a circunstância agravante da reincidência ofende o princípio em questão. Parece-nos que sim, uma vez que, ao se punir mais gravemente um crime, tomando-se por fundamento um delito anterior, está-se, em verdade, a valorar e castigar, por mais uma vez, a infração anteriormente praticada, em relação à qual o autor já foi sentenciado, chegando-se, por vezes, a absurdos, como, por exemplo, estabelecer o juiz, depois de fixar a pena-base em vinte anos de prisão por latrocínio, aumentá-la de metade em razão da reincidência (mais dez anos). Nota: o crime anterior (um furto) fora apenado em dois anos de prisão. A rigor, portanto, o condenado estará a cumprir a mesma pena por mais cinco vezes.

Apesar disso, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a agravante da reincidência é constitucional e, pois, legítima.

De todo modo, temos que o acréscimo de pena que resulta da reincidência não poderá acarretar aumento igual ou superior, mas sempre inferior (proporcionalmente), à pena (ou penas) aplicada na sentença anterior que a gerou, sob pena de o acréscimo exceder à própria pena antes imposta, desproporcionalmente. Por conseguinte, no exemplo antes mencionado o aumento de pena deveria ser inferior a dois anos de prisão.

Zaffaroni e Nilo Batista propõem, para fins de individualização da pena (especialmente), que o juiz considere eventuais lesões, doenças ou prejuízos patrimoniais por ação ou omissão dos agentes do Estado durante a investigação ou repressão do delito cometido. Trata-se, dizem, de uma efetiva dor punitiva que deve ser considerada para afastar ou atenuar dupla punição.3

Dizem, ainda, que, nos casos de comunidades indígenas e semelhantes que dispõem de um sistema próprio de decisão e punição de conflitos, que as sanções aplicadas por esses povos sejam tomadas em consideração, quer para fins de isenção de pena, quer para atenuá-la.

Releva notar, por fim, que, com base nesse princípio, o direito anglo-saxônico não admite o recurso interposto pelo Ministério Público contra uma decisão que lhe seja desfavorável1.1Cf. Germano Marques da Silva. Direito processual penal português, v. 1. Lisboa: Universidade Católica, 2017, p.107.

2)Erros frequentes na aplicação da pena

Talvez por ser a aplicação da pena tema ordinariamente relegado a plano secundário, frequentes são os erros quando da sua fixação, consistentes sobretudo em reconsiderar elementos inerentes à estrutura do crime (tipicidade, ilicitude e culpabilidade), tomando como circunstâncias judiciais os próprios pressupostos da condenação, incorrendo-se em bis in idem.

Quanto à tipicidade, não é incomum que, ao dosar a pena, o juiz tome como critério de aferição da culpa dados ou circunstâncias que já fazem parte da própria figura típica. Assim, por exemplo, ao condenar funcionário público por crime contra a Administração Pública (v. g., peculato, corrupção passiva), afirmar que “o réu praticou ação das mais reprováveis, visto que violou a confiança inerente ao exercício da função pública”, como se o fato de ser servidor público já não tivesse orientado a decisão político-criminal do legislador de autonomizar/criminalizar tais condutas, punindo-as de forma mais dura precisamente em razão dos deveres inerentes ao cargo/função.

Além disso, ao considerar os motivos do crime aptos a agravar a pena, frequentemente são tomadas em consideração motivações inerentes à própria infração penal e, pois, já valoradas por ocasião da tipificação, como, v. g., a “libido exacerbada” ou a “falta de pudor” nos crimes sexuais; a “ganância”, a “ambição” ou o “ganho ou lucro fácil” nos crimes patrimoniais ou tráfico de droga (obviamente que “lucro fácil” não passa de um clichê, de um preconceito, pois criminosos em geral correm sérios riscos, de vida, inclusive); o desprezo à pessoa humana nos crimes contra a vida etc. Também é comum elevar à condição de circunstância judicial aspectos penalmente irrelevantes, ferindo o princípio da legalidade, tais como: a não confissão, o não arrependimento, a fuga do distrito da culpa, a inadequação da conduta etc. Por vezes, ao valorar negativamente as consequências do crime, recorre-se aos resultados próprios da conduta criminosa, como, em caso de homicídio, dizer-se que “as consequências do crime foram danosas, pois uma vida foi ceifada”, como se fosse possível homicídio consumado sem a morte da vítima.

Erro frequente também ocorre na avaliação da culpabilidade. Sinteticamente, pode-se dizer que a culpabilidade é um juízo de reprovação sobre o autor do injusto penal em razão da possibilidade de se lhe exigir, concreta e razoavelmente, um comportamento conforme o direito, de sorte que culpabilidade é exigibilidade e inculpabilidade é inexigibilidade. Acontece que a culpabilidade tem uma dupla função, pois tanto é requisito do fato punível quanto é critério de apuração da pena justa. No primeiro caso, faz-se um juízo (qualitativo) de constatação (o réu é culpável, logo, o condeno); no segundo, um juízo (quantitativo) de aferição do grau de culpa (que é mínima, média ou máxima). E se culpabilidade é exigibilidade e se há diferentes graus de exigência (maior ou menor), não há problema algum em tomá-la em conta novamente, não como pressuposto da condenação, mas como circunstância judicial, de sorte que, quanto maior for a culpabilidade (maior exigibilidade), maior a pena cabível; quanto menor, menor o castigo. Trata-se, enfim, de concretizar o princípio da proporcionalidade – que informa todo o ordenamento jurídico –, segundo o qual de quem se pode exigir mais se deve castigar mais; de quem se pode exigir menos se deve castigar menos.

Imagine-se, por exemplo, que A, B e C tomem parte num crime de extorsão mediante sequestro. A, arrependido, vem a facilitar a fuga da vítima dias depois, enquanto B se limita a atender ligações telefônicas, observar a vítima e alimentá-la, diferentemente de C, que tudo arquiteta, comanda a operação e trata a todos com violência e subordinação. Parece evidente que, não obstante a culpabilidade de todos (juízo de constatação, a ensejar a condenação), ela (a culpabilidade como juízo de aferição, a ensejar penas distintas) não é a mesma para todos, uma vez que o grau de reprovabilidade de A (que merece pena menor) não é o mesmo de B (que merece pena intermediária), que não é o mesmo de C (que merece pena maior), devendo o castigo ser distribuído desigualmente. Eventualmente as condutas de A e B poderão ser consideradas inclusive como participação de menor importância (CP, art. 29, §1°), a autorizar a redução da pena.

Essa maior ou menor reprovabilidade constitutiva da culpabilidade pode ser aferida a partir de diferentes critérios: motivos, circunstâncias, consequências, comportamento da vítima etc.; razão pela qual ela compreende (também) todos aqueles elementos que o legislador já houve por bem autonomizar. Se isso não tiver ocorrido, a culpabilidade passa a ser um critério (subsidiário) de verificação daqueles dados que podiam eventualmente ser previstos pelo legislador, mas não o foram, reprovando para mais ou para menos a infração penal.

Pois bem, no particular o equívoco na aplicação da pena consiste em tomar novamente em conta a culpabilidade, não como critério de valoração do grau de culpa (juízo quantitativo), mas como pressuposto da condenação (juízo qualitativo). Não é infrequente, por exemplo, afirmar-se que “o réu é culpável, pois tinha plena consciência da ilicitude do fato”, “sabia exatamente o que fazia”, ou, ainda, “agiu livremente”. Ora, não fosse o réu culpável por quaisquer desses motivos e seria o caso de absolvê-lo ou diminuir-lhe a pena, seja por erro de proibição (inevitável ou evitável), seja por coação física ou moral (irresistível ou resistível). É que, conforme vimos, são elementos da culpabilidade: a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.

Por fim, é recorrente a valoração de circunstâncias próprias de um direito próprio do autor, se bem que com algum apoio no Código, que prevê como circunstância judicial a “personalidade do agente”. No particular, não é raro assinalar que “o réu tem personalidade agressiva”, “personalidade voltada para o crime” etc., esquecendo-se, primeiro, que nada disso autoriza a condenação de quem quer que seja, razão pela qual tampouco pode justificar a majoração da pena, castigando-se pela via indireta o que não o é pela via direta; segundo, porque, a permitir que o Estado possa coagir os cidadãos a não serem agressivos, malvados etc., estar-se-ia a confundir direito e moral, punindo o autor não exatamente pelo que fez, mas pelo que é.

Tampouco cabe agravar a pena sob a alegação de que o condenado tem nível universitário ou similar, e, por isso, sua conduta seria particularmente reprovável, visto que: 1)importa em castigar alguém pelo que se é (direito penal do autor); 2)como ninguém é punível diretamente por um ato legal, tampouco pode sê-lo indiretamente; 3)frequentemente não existe relação alguma entre o delito praticado e a condição de universitário; 4)não está em discussão, no mais das vezes, o grau de consciência da reprovabilidade da conduta; e, por último, porque se trata de uma circunstância juridicamente irrelevante.

Amiúde, procura-se ainda dar à sentença caráter exemplificador, pretendendo emprestar-lhe efeitos universais, com fins de prevenção geral, principalmente em casos de tráfico de drogas, em que se alude a expressões como: “o tráfico é um mal que assola toda a humanidade e que precisa, por isso, ser exemplarmente punido, para que possamos dar um fim a isso”, aplicando-se, a partir de tal argumento, penas altas em demasia, que não retratam o caso concreto e transcendem o merecimento do autor, pois não se está a rigor a julgar o traficante, mas o tráfico. Não há aí individualização da pena, mas “desindividualização”, generalização.

No caso de tráfico droga e afins, os erros mais comuns consistem em considerar, como circunstâncias judiciais ou legais: a)o objetivo de lucro, como se o tráfico já não fosse um comércio criminoso; b) a paga ou promessa de recompensa, que é inerente à própria atividade de tráfico ilícito; c) a ofensa à saúde pública, que constitui a própria lesão ao bem jurídico e o resultado inerente ao tipo consumado; d) que o tráfico provoca malefícios a toda sociedade e às gerações futuras, aplicando-se uma pena de caráter exemplificador, que não retrata o caso concreto; e) o motivo torpe, geralmente o fim de lucro, também inerente ao tipo; f) a falta de fiscalização nas fronteiras, como se o condenado fosse de algum modo corresponsável pela segurança nos territórios por onde passou.

3)Modelo de sentença

Abaixo modelo de sentença com comentário (tráfico de droga) que comete tais erros.

Modelo de sentença

Comentários

(…)

Vistos etc.

(…)

Passo à individualização da pena e apreciação das circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal.

Modelo de sentença

Comentários

O réu é imputável, detinha consciência da ilicitude e lhe era exigível conduta diversa, razão pela qual sua culpabilidade é máxima.

A imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa são elementos constitutivos da culpabilidade; logo, são pressupostos da condenação. Consequentemente, considerá-los na fixação da pena importa em bis in idem.

A conduta social do réu não é boa, pois não trabalha e responde a vários inquéritos e processos.

Ninguém é obrigado a trabalhar. Ademais, o só fato de não trabalhar não implica má conduta social. A referência aos processo em andamento viola, nos termos da Súmula 444 do STJ, o princípio da presunção de inocência. Por conseguinte, se não importa em maus antecedentes, tampouco significa má conduta social.

O réu tem personalidade voltada para o crime, tanto é assim que responde a vários inquéritos e processos.

Aqui a decisão repete o argumento anterior, sendo criticável pelas mesmas razões já assinaladas. Além disso, o juiz não dispõe, ordinariamente, de elementos para avaliar a personalidade, quer positiva, quer negativamente.

Os motivos do crime, a cobiça e a ambição exageradas, são injustificáveis.

Novamente, bis in idem. Com efeito, se os motivos fossem justificáveis, incidiriam, possivelmente, causas de justificação (estado de necessidade etc.). Além disso, tais motivos são inerentes ao crime de tráfico de droga, por se tratar de um comércio proibido.

Os resultados do crime são gravíssimos, pois o tráfico produz um número indefinido de vítimas em todo o país e fomenta diversas outras práticas criminosas.

Aqui a sentença assume caráter exemplificador em desacordo com o princípio da individualização, uma vez que ignora o caso concreto e passa a fazer considerações genéricas que o transcendem. A sentença “desindividualiza”.

As circunstâncias do delito lhe são de todo desfavoráveis, pois o réu se valeu da ausência de fiscalização das fronteiras para praticar a infração penal.

No particular, decisão ofende o princípio da pessoalidade da pena, visto que imputa ao réu conduta do Estado que se omitiu no dever de fiscalizar suas fronteiras.

Assim, como necessário e suficiente à reprovação e prevenção do crime (CP, art. 59), fixo a pena-base em 8 (oito) anos de reclusão.

Os erros apontados impediriam a fixação de pena-base acima do mínimo legal (5 anos de reclusão).

1

. Berduzo Gómez de la Torre e outros, Lecciones, cit., p. 45.

2

Criticamente sobre esse aspecto, Keity Saboya. Ne bis in idem. Rio: Lumen juris, 2014.

3

. Direito Penal brasileiro I. Rio: Revan, 2003, p. 234-236.

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