1)Introdução
A SV 24 diz: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º,incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo”.
De acordo com a referida súmula, editada em 2009: 1)os crimes contra a ordem tributária são crimes materiais, não formais, cuja consumação se dá com a constituição definitiva do crédito; 2)a ação penal só pode ser proposta quando houver a constituição definitiva do crédito; 3)o prazo prescricional fica suspenso enquanto não for concluído o processo administrativo fiscal; 4)o termo inicial da prescrição é a data da constituição definitiva do crédito, não o dia em que foi praticada a conduta típica prevista na lei.
Pergunta-se, então: a súmula poderia ser aplicada retroativamente a 2009, com relação ao termo inicial da prescrição (item 4), em prejuízo do réu?
No caso concreto, os fatos são de 2002, a constituição definitiva do crédito se deu em 6/6/2015, e denúncia foi recebida em 9/1/2018. Se considerarmos como termo inicial 2002 e como marco interruptivo o recebimento da denúncia em 2018, terá ocorrido prescrição em 12 anos, com base na pena máxima cominada ao delito. Não haveria prescrição se tomarmos como base a data da constituição definitiva do crédito em 2015.
Temos que houve, sim, prescrição.
Com efeito, de acordo com a SV 24, a consumação do crime se dá com a constituição definitiva do crédito, que ocorreu em 6/6/2015, e cujo processo suspende o prazo prescricional, o que afastaria a alegação de prescrição. Há aqui, contudo, uma singularidade que impede a incidência da referida SV 24: os fatos são anteriores à sua edição e também ao precedente que lhe serve de paradigma (a decisão proferida no habeas corpus n° 81.611, de 10/12/2003).
Com efeito, a SV 24 foi editada em 2009, razão pela qual não pode retroagir em desfavor do réu, uma vez que nem mesmo a lei penal poderia retroagir (CF, art. 5°, XL1), sob pena de violação ao princípio da irretroatividade da lei mais severa.
É certo que a jurisprudência é pacífica no sentido de que a Súmula pode retroagir e atingir fatos anteriores a 2009 porque é mera consolidação de precedentes, conforme se vê abaixo:
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO CRIMINAL COM AGRAVO. SÚMULA VINCULANTE 24. AUSÊNCIA DE OFENSA AO ART. 5°, XL E LVII, DA CF. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL. NÃO OCORRÊNCIA. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I – O Supremo Tribunal Federal tem admitido a aplicação da Súmula Vinculante 24 a fatos anteriores a sua edição, porquanto o respectivo enunciado apenas sintetiza a jurisprudência dominante desta Corte e, dessa forma, não pode ser considerada como retroação de norma mais gravosa ao réu. II – Ambas as Turmas desta Corte possuem entendimento de que os “recursos excepcionais (recurso extraordinário e recurso especial), quando declarados inadmissíveis, não obstam a formação da coisa julgada, inclusive da coisa julgada penal, retroagindo a data do trânsito em julgado, em virtude do juízo negativo de admissibilidade, ao momento em que esgotado o prazo legal de interposição das espécies recursais não admitidas” (ARE 969.022-AgR/MT, Rel. Min. Celso de Mello). III – Agravo regimental a que se nega provimento.
(ARE 1053709 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 16/03/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-059 DIVULG 26-03-2018 PUBLIC 27-03-2018)
Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. 2. Penal e Processual Penal. Sonegação de contribuição previdenciária. Continuidade delitiva. Condenação. 3. Ausência de repercussão geral (Tema 660). 4. Prescrição retroativa. 4.1. A tese ventilada no extraordinário não foi discutida no acórdão contestado. Incidência das súmulas 282 e 356. 4.2. Inocorrência de aplicação regressiva in malam partem da Súmula Vinculante 24. Consolidação da jurisprudência do STF que, há muito, tem entendido que ‘a consumação do crime tipificado no art. 1º da Lei 8.137/90 somente se verifica com a constituição do crédito fiscal, começando a correr, a partir daí, a prescrição’ (HC n. 85.051/MG, rel. min. Carlos Velloso). 5. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. 6. Agravo regimental a que se nega provimento.
(ARE 897714 AgR, Relator(a):Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 25/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-177 DIVULG 08-09-2015 PUBLIC 09-09-2015)
No entanto, quando da consumação do delito aqui considerado (2002), não havia ainda entendimento consolidado do STF relativamente ao termo inicial da prescrição nos crimes contra a ordem tributária. E mais importante: a jurisprudência dominante era no sentido de que tais crimes eram formais, não materiais, como veio a definir a SV 24; logo, a consumação dava-se com sonegação mesma do tributo, não com a constituição definitiva do crédito, como acabou prevalecendo.
2)Breve histórico da Súmula Vinculante nº 24
Durante muito tempo o STF entendeu que os crimes contra ordem tributária consumavam-se com a realização de uma das condutas típicas previstas na Lei n° 8.1137/90, razão pela qual o Ministério Público poderia propor a ação penal a qualquer momento, com ou sem constituição definitiva do crédito, em razão da independência das instâncias penal e administrativa.
É que o se vê claramente dos julgados proferidos após a entrada em vigor da Lei 8.137/90 até o julgamento do HC 81.611/DF (em 2003), que serviu de paradigma para a SV 24.
Inicialmente, cabe citar o julgamento da ADI 1.571, de 20/3/97, em que o STF indeferiu a medida cautelar por entender que o art. 83 da Lei 9.430/96 não condicionava a atuação do MPF à representação da autoridade administrativa e ao lançamento do crédito tributário:
EMENTA: – Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei nº 9430, de 27.12.1996, art. 83. 3. Argüição de inconstitucionalidade da norma impugnada por ofensa ao art. 129, I, da Constituição, ao condicionar a notitia criminis contra a ordem tributária “a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário”, do que resultaria limitar o exercício da função institucional do Ministério Público para promover a ação penal pública pela prática de crimes contra a ordem tributária. 4. Lei nº 8137/1990, arts. 1º e 2º. 5. Dispondo o art. 83, da Lei nº 9430/1996, sobre a representação fiscal, há de ser compreendido nos limites da competência do Poder Executivo, o que significa dizer, no caso, rege atos da administração fazendária, prevendo o momento em que as autoridades competentes dessa área da Administração Federal deverão encaminhar ao Ministério Público Federal os expedientes contendo notitia criminis, acerca de delitos contra a ordem tributária, previstos nos arts. 1º e 2º, da Lei nº 8137/1990. 6. Não cabe entender que a norma do art. 83, da Lei nº 9430/1996, coarcte a ação do Ministério Público Federal, tal como prevista no art. 129, I, da Constituição, no que concerne à propositura da ação penal, pois, tomando o MPF, pelos mais diversificados meios de sua ação, conhecimento de atos criminosos na ordem tributária, não fica impedido de agir, desde logo, utilizando-se, para isso, dos meios de prova a que tiver acesso. 7. O art. 83, da Lei nº 9430/1996, não define condição de procedibilidade para a instauração da ação penal pública, pelo Ministério Público. 8. Relevância dos fundamentos do pedido não caracterizada, o que é bastante ao indeferimento da cautelar. 9. Medida cautelar indeferida.
Existem ainda diversos julgados baseados no acórdão da ADI 1571, confirmando a orientação dos tribunais superiores:
CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. REPRESENTAÇÃO FISCAL. SUSPENSÃO DO CURSO DA AÇÃO PENAL: DECISÃO DEFINITIVA DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO FISCAL. Lei 8.137, de 1990, artigos 1º, 2º e 14; Lei 8383, de 1991, artigo 98; Lei 9249, de 1995, art. 34; Lei 9430, de 1996, art. 83 e seu parágrafo único. I – A representação fiscal a que se refere o art. 83, da Lei 9.430/96, estabeleceu limites para os órgãos da administração fazendária, ao determinar que a remessa ao Ministério Público dos expedientes alusivos aos crimes contra a ordem tributária, definidos nos arts. 1º e 2º, da Lei 8.137/90, somente será feita após a conclusão do processo administrativo fiscal. Todavia, não restringiu o citado dispositivo legal a ação do Ministério Público (C.F., art. 129, I). II. – Precedente do STF: ADIn 1571-DF (medida cautelar), Rel. Min. Néri da Silveira, Plenário, 20.03.97. III. – No caso, não há falar em extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo e acessório: Lei 8.137/90, art. 14, revogado pela Lei 8.383/91, art. 98. Lei 9.249/95, art. 34; Lei 9.430/96, art. 83, parág. único. IV. – H.C. indeferido.
(HC 75723, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 18/11/1997, DJ 06-02-1998 PP-00005 EMENT VOL-01897-03 PP-00440)
PROCESSO PENAL. CRIME DE SONEGAÇÃO FISCAL. AÇÃO PENAL – PRÉVIO ESGOTAMENTO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO (ART. 83 DA LEI 9430/96). DESNECESSIDADE.
– Aqui, como também no E. Supremo Tribunal Federal, tem-se proclamado que o preceito contido no art. 83, da Lei 9430/96 não provocou nenhuma repercussão no Processo Penal, no que se refere à desnecessidade de esgotamento da via administrativa para a propositura de eventual ação penal.
– Recurso desprovido.
(RHC 10.721/SP, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUINTA TURMA, julgado em 06/02/2001, DJ 28/05/2001, p. 164)
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME SOCIETÁRIO. SONEGAÇÃO FISCAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. INDIVIDUALIZAÇÃO DA CONDUTA DELITUOSA.
1. Como a denúncia narra fato tipificado criminalmente, existindo fortes indícios de autoria e não sendo o caso de extinção de punibilidade; não há falar-se em trancamento da ação penal, por ausência de justa causa.
2. Nos crimes societários complexos, desde que a denúncia narre o fato delituoso de forma clara, propiciando o pleno exercício da garantia constitucional da ampla defesa, é dispensável a descrição minuciosa e individualizada da conduta de cada acusado.
3. O exaurimento do procedimento administrativo-fiscal não se consubstancia em condição de procedibilidade para a instauração da ação penal. Ressalva da posição contrária do Relator.
4. Habeas Corpus conhecido. Pedido indeferido.
(HC 15.852/RS, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 07/06/2001, DJ 13/08/2001, p. 190)
Como se vê, os precedentes eram no sentido de que a consumação do crime ocorria com a realização da ação típica. Não se exigia, portanto, a conclusão do processo administrativo fiscal como condição de procedibilidade da ação penal.
Mais: no HC 77.002-8 (STF), de 21/11/2001, de relatoria do ministro Néri da Silveira, o qual denegava a ordem com fundamento na ADI 1571, apenas os ministros Nélson Jobim e Sepúlveda Pertence, que viria a ser o relator do habeas corpus paradigmático que resultou na SV 24, exigiam a constituição definitiva do crédito como condição de procedibilidade do processo criminal.
Alegavam que os delitos dos arts. 1º e 2º da Lei 8.137/90 eram materiais, não formais; também por isso, o termo inicial da prescrição era o lançamento definitivo do crédito, não a data da efetiva sonegação, já que era, segundo os dois votos divergentes, o dia da consumação o crime, conforme Informativos nº 228/STF e nº 249/STF:
Iniciado o julgamento de habeas corpus em que se pretende o trancamento da ação penal instaurada contra o paciente pela suposta prática de crime contra a ordem tributária, consistente em omitir informação à fiscalização tributária (Lei 8.137/90, art. 1º, I). Alega-se, na espécie, falta de interesse de agir do Ministério Público tendo em vista que, para a instauração da ação penal, era necessário o encerramento do procedimento administrativo, sustentando-se, ainda, a insuficiência de elementos probatórios da conduta imputada ao paciente. O Min. Néri da Silveira, relator, proferiu voto no sentido de indeferir o habeas corpus por entender que o prévio julgamento administrativo não é condição de procedibilidade da ação penal e que não cabe em habeas corpus discutir os fatos e provas para se ter como procedentes ou não as acusações. De outra parte, o Min. Nelson Jobim votou pelo deferimento do habeas corpus por falta de justa causa para a ação por entender que, na espécie, houve equívoco do fisco quanto à falta de prestação de rendimentos, e que, sendo o inciso I do art. 1º da Lei 8.137/90 crime de natureza material, seria necessário aguardar-se a solução do processo administrativo para que o Ministério Público pudesse ajuizar a ação penal. Após, o julgamento foi adiado pelo pedido de vista do Min. Sepúlveda Pertence.
(HC 77.002-RJ, rel. Min. Néri da Silveira, 16.5.2001.).
Retomado o julgamento de habeas corpus em que se pretende o trancamento da ação penal instaurada contra o paciente pela suposta prática de crime contra a ordem tributária, consistente em omitir informação à fiscalização tributária (Lei 8.137/90, art. 1º, I) – v. Informativo 228. Alega-se, na espécie, falta de interesse de agir do Ministério Público tendo em vista que, para a instauração da ação penal, era necessário o encerramento do procedimento administrativo, sustentando-se, ainda, a insuficiência de elementos probatórios da conduta imputada ao paciente. O Min. Sepúlveda Pertence proferiu voto-vista no sentido de que, nos crimes do art. 1º da Lei 8.137/90, que são materiais ou de resultado, a decisão definitiva do processo administrativo consubstancia uma condição objetiva de punibilidade, sem a qual a denúncia deve ser rejeitada, uma vez que a competência para constituir o crédito tributário é privativa da administração fiscal, cuja existência ou montante não se pode afirmar até que haja o efeito preclusivo da decisão final do processo administrativo. O Min. Sepúlveda Pertence salientou, ainda, que a circunstância de uma decisão administrativa ser condicionante da instauração de um processo judicial não ofende o princípio da separação e independência dos Poderes, haja vista que a punibilidade da conduta, quando não a tipicidade, está subordinada à decisão de autoridade diversa do juiz da ação penal (nos termos do voto proferido na Extradição 783 – questão de ordem; v. Informativo 241). Desse modo, o Min. Sepúlveda Pertence votou pelo deferimento da ordem, acompanhando a conclusão do voto do Min. Nelson Jobim. De outra parte, o Min. Néri da Silveira, relator, reiterou seu voto no sentido de indeferir o habeas corpus por entender que o prévio julgamento administrativo não é condição de procedibilidade da ação penal e que não cabe em habeas corpus discutir os fatos e provas para se ter como procedentes ou não as acusações. Após, o julgamento foi adiado pelo pedido de vista da Ministra Ellen Gracie.
HC 77.002-RJ, rel. Min. Néri da Silveira, 7.11.2001.
Em suma, em 2002 a matéria ainda não estava pacificada, além de prevalecer no STF o entendimento contrário à SV 24.
Sim, porque somente com o julgamento do HC 81.611, de 10/12/2003, foi firmado o entendimento de que o crime contra ordem tributária era material, não formal, e por isso consumava-se com o lançamento definitivo do crédito. Também por isso, o prazo prescricional ficava suspenso enquanto tramitasse o processo administrativo:
I.Crime material contra a ordem tributária (L.8137/90,art.1o): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo.
(HC 81.611, rel. min. Sepúlveda Pertence, P, j. 10-12-2003, DJ de 13-5-2005.).
Consequentemente, a alegação de que a SV 24 incide retroativamente à data da sua publicação, por ser mera consolidação de precedentes, não há de ser aplicado ao caso dos autos, já que, como demonstrado, a decisão paradigmática que lhe serviu de base é o habeas corpus de 2003. Os fatos aqui considerados são, porém, de 2002.
3)Irretroatividade de enunciado de Súmula
Se a lei penal não pode retroagir para prejudicar, parece evidente que tampouco enunciado de Súmula poderá fazê-lo, sob pena de violação ao princípio da irretroatividade da lei, que é uma das garantias fundamentais do Estado Democrático de Direito.
Ainda que seja possível a aplicação da SV 24 a casos anteriores à sua edição, é certo que essa retroatividade não pode se dar sem limites, devendo ser fixado um marco temporal preciso para tanto, sob pena de regressus ad infinitum.
Discute-se, é verdade, se o princípio da irretroatividade seria também aplicável à nova orientação da jurisprudência que dá às normas penais interpretação desfavorável ao réu, ou se é exclusividade da lei penal.
De acordo com Roxin, para quem a proibição de irretroatividade só é aplicável à lei, não à jurisprudência, “se o Tribunal interpreta uma norma de modo mais desfavorável para o acusado que o havia feito a jurisprudência anterior, este tem de suportá-lo, pois, conforme o seu sentido, a nova interpretação não é uma punição ou agravação retroativa, mas a realização de uma vontade da lei, que já existia desde sempre e que somente agora foi corretamente reconhecida”.2
Já Odone Sanguiné sustenta, com razão, que a posição mais correta consiste em solucionar essa questão da perspectiva constitucional, estendendo a proibição de retroatividade às alterações jurisprudenciais desfavoráveis ao réu, postura que se ampara, por um lado, na ideia de segurança jurídica como fundamento do princípio da irretroatividade e, ademais, na proposta de revisão do vetusto significado da separação dos poderes; por outro, na harmonização dessa doutrina com o princípio de determinação a fim de substituir a pretendida distinção absoluta entre a função da lei e a função da jurisprudência penal.3
Afinal, a lei e sua interpretação – escreve Sanguiné – se encontram em um vínculo necessário de complementação, de modo que a realidade jurídica do princípio da legalidade só será atendida quando, para determinado tipo penal, vigore a mesma interpretação que lhe era dada à época do cometimento do fato e que corresponda à verdadeira pretensão normativa.4
Com efeito, se a lei não pode retroagir para prejudicar o réu, tampouco as decisões judiciais, que a interpretam, poderão fazê-lo. É que a lei e a sua interpretação são inseparáveis, já que o direito não preexiste à interpretação, mas é dela resultado; logo, o princípio da irretroatividade da lei mais gravosa é plenamente aplicável ao precedente judicial que instaura uma nova orientação jurisprudencial contrária ao investigado ou acusado.
No sentido aqui proposto, são os seguintes precedentes desse TRF1 e do Supremo Tribunal Federal:
RECURSO NO SENTIDO ESTRITO. REDUÇÃO E OU SUPRESSÃO TRIBUTÁRIA OCORRIDA NO PERÍODO DE 1999 A 2002. PRETENSÃO À APLICAÇÃO A ESSES FATOS DE LEGISLAÇÃO PENAL MAIS GRAVOSA PARA O ACUSADO. IMPROCEDÊNCIA. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. Recurso no sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal (MPF) da decisão pela qual o Juízo, na ação penal proposta contra Vicente de Souza Lobo, pela prática do crime de redução de tributos federais, no período de 1999 a 2002, determinou, em virtude de parcelamento do crédito tributário, a suspensão do processo e do curso do prazo prescricional. Lei 8.137, de 1990, Art. 1º, I.
(…)
3. Crime contra a ordem tributária. Tempo do crime. (A) Nos termos do Art. 4º do CP, “[c]onsidera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.” Assim sendo, os crimes imputados ao recorrido ocorreram no período de 1999 a 2002, e, não, em 16/12/2014, quando houve a constituição definitiva do crédito tributário. (B) Nos termos da Súmula Vinculante 24 do STF (SV 24), “[n]ão se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.” A definição de crime consumado está na lei, e, não, na SV 24. “Diz-se o crime” “consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal”. CP, Art. 14, I. Não cabe ao Poder Judiciário a definição dos elementos legais dos tipos penais. “[N]ão há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. CR, Art. 5º, XXXIX; CP, Art. 1º. O Judiciário pode interpretar a lei, mas, não, criar um elemento a mais para a definição do crime. CR, Art. 2º. (C) Assim, a constituição definitiva do crédito tributário “tipifica o crime material contra a ordem tributária”. Em outras palavras, “a constituição definitiva do crédito tributário” constitui “condição objetiva de punibilidade”, e, não, elemento legal da definição dos crimes contra a ordem tributária. (STF, HC 85000; HC 122755; STJ, AgRg no AREsp 553.296/SP; RHC 28.621/CE; TRF 1ª Região, ACR 00325763520114013900; HC 00529612520154010000.) Os elementos da definição legal do crime contra a ordem tributária estão descritos no Art. 1º da Lei 8.137, e, não, na SV 24. (D) Do enunciado da SV 24 não decorre que o crime material contra a ordem tributária se considera praticado na data da constituição definitiva do tributo. Entendimento diverso implicaria que a consumação do crime contra a ordem tributária dependeria do comportamento da vítima dele, e, não, do autor respectivo, algo sem paralelo na dogmática jurídica. A persecução penal pode depender do comportamento da vítima, como no caso dos crimes em relação aos quais a ação penal é privada ou condicionada à representação. No entanto, a consumação do crime, no tempo, depende da conduta do agente, nunca, da vítima. (E) Em consequência, a legislação penal posterior à data da prática da conduta que implicou a supressão e ou a redução de tributos federais somente é aplicável se for mais favorável ao réu. CP, Art. 1º e Art. 2º; CR, Art. 5º, XXXIX e XL. (F) No presente caso, a supressão e ou a redução de tributos federais, por parte do recorrido, ocorreu no período de 1999 a 2002. Em consequência, é aplicável à espécie o disposto no Art. 9º da Lei 10.684. CP, Art. 1º e Art. 2º; CR, Art. 5º, XXXIX e XL. Na data da comissão do delito, período de 1999 a 2002, a adesão do contribuinte ao parcelamento implicava a suspensão do processo e do curso do prazo prescricional, independentemente de ter sido procedida antes ou depois do recebimento da denúncia. (G) Consequente improcedência da pretensão do recorrente de aplicar às supressões e ou às reduções tributárias ocorridas no período de 1999 a 2002, o disposto no § 2º do Art. 83 da Lei 9.430, na redação da Lei 12.382, de 2011, por ser lei posterior ao fato mais gravosa para o acusado. TRF1, RSE 0012028-83.2015.4.01.3500/GO; STJ, REsp 1493306/ES; REsp 1647917/AM.
4. Recurso no sentido estrito não provido.
(RSE 0025868-92.2017.4.01.3500/GO, Desembargador Federal Convocado LEÃO APARECIDO ALVES, TRF1 – TERCEIRA TURMA. 30/10/2018.)
EMENTA Segundo agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. Repetição ou compensação do indébito de tributo declarado inconstitucional. Prazo prescricional. Termo inicial. Marcos jurígenos para contagem do prazo prescricional. Legislação infraconstitucional. Afronta reflexa. Segurança jurídica. Ausência de inércia. Regra de adaptação. Possibilidade de aplicação. 1. Os marcos jurígenos para a contagem do prazo prescricional do direito do contribuinte estão dispostos no Código Tributário Nacional. A jurisprudência da Corte, há muito, pacificou o entendimento de que a questão envolvendo o termo inicial para a contagem do prazo prescricional para a repetição de indébito referente a tributo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal é de natureza infraconstitucional, não ensejando a abertura da via extraordinária. 2. Estando um direito sujeito a exercício em determinado prazo, seja mediante requerimento administrativo ou, se necessário, ajuizamento de ação judicial, urge reconhecer-se eficácia à iniciativa tempestiva tomada por seu titular nesse sentido, pois isso é resguardado pela proteção à confiança. 3. Impossibilidade de aplicação retroativa de nova regra de contagem de prazo prescricional às pretensões já ajuizadas e em curso, por força do primado da segurança jurídica. 4. Agravo regimental provido para, conhecendo-se do agravo no recurso extraordinário, dar-se provimento ao apelo extremo, a fim de se restabelecer o acórdão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
(ARE 951533 AgR-segundo, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Relator(a) p/ Acórdão: Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 12/06/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-227 DIVULG 24-10-2018 PUBLIC 25-10-2018 REPUBLICAÇÃO: DJe-233 DIVULG 31-10-2018 PUBLIC 05-11-2018)
Reconhecida a irretroatividade da SV 24, cabe decretar a prescrição com base na pena máxima cominada, prescrição em 12 anos, visto que, entre a data dos fatos (2002) e o dia do recebimento da denúncia (2018), passaram-se mais de 12 anos, nos termos do art. 109, III, do CP.
1XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.
2. Derecho penal, parte general, cit., p. 165.
3. Irretroatividade e retroatividade das alterações da jurisprudência penal, Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 8, n. 31, p. 154, jul./set. 2000.
4. Irretroatividade…, Revista, cit., p. 162.