Como é sabido, a partir da Lei n° 12.015/2009, o estupro passou a compreender o antigo atentado violento ao pudor, visto que consiste, atualmente, em “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (CP, art. 213).
Apesar disso, o Superior Tribunal de Justiça inaugurou uma interpretação segundo a qual, se o agente cometer, num mesmo contexto, conjunção carnal e outro ato libidinoso, haverá concurso de crimes, e não crime único, sob o argumento de que o tipo penal seria misto cumulativo, isto é, um tipo que definiria mais de um crime. Nesse sentido1:
HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONTINUIDADE DELITIVA. REUNIÃO DOS DELITOS EM UM ÚNICO ARTIGO COM A EDIÇÃO DA LEI 12.015/09. POSSIBILIDADE DO RECONHECIMENTO DA CONTINUIDADE DELITIVA (ART. 71 DO CPB). CRIMES DA MESMA ESPÉCIE. RESSALVA DO PONTO DE VISTA DO RELATOR. SENTENÇA CONDENATÓRIA TRANSITADA EM JULGADO ANTES DA LEI 12.015/09. RETROATIVIDADE QUE DEVE SER APRECIADA PELO JUÍZO DA EXECUÇÃO. SÚMULA 611 DO STF. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA, DE OFÍCIO, APENAS PARA DETERMINAR A REMESSA DOS AUTOS AO JUÍZO DA EXECUÇÃO A FIM DE QUE APRECIE O PEDIDO DE APLICAÇÃO DA LEI MAIS BENÉFICA, COMO ENTENDER DE DIREITO. 1. Embora a Lei 12.015/09 tenha reunido em um único artigo as condutas delitivas anteriormente previstas em tipos autônomos (estupro e atentado violento ao pudor, respectivamente, antigos arts. 213 e 214 do CPB), a prática das duas condutas, ainda que no mesmo contexto fático, deve ser individualmente punida, somando-se as penas. 2. O art. 213 do CPB, após a alteração introduzida pela Lei 12.015/09, deve ser classificado como um tipo misto cumulativo, porquanto a prática de mais de uma conduta ali prevista, quando não representar ato libidinoso em progressão à prática de conjunção carnal, sem dúvida agrega maior desvalor ao fato. 3. A cópula anal ou a felação, realizadas no mesmo contexto fático que a conjunção carnal, não podem ser consideradas como um desdobramento de um só crime, pois constituem atos libidinosos autônomos e independentes da conjunção carnal, havendo, na verdade, violação a preceitos primários diversos. 4. Ainda que previstos no mesmo tipo penal, é nítida a ausência de homogeneidade na forma de execução entre a conjunção carnal e o outro ato libidinoso de penetração, porquanto os elementos subjetivos e descritivos dos delitos em comento são diversos. Dest'arte, considerando-se autônomas as condutas e a forma de execução, forçoso o afastamento da continuidade delitiva.
Não estamos de acordo com isso.2
Primeiro, porque já vimos que a conjunção carnal constitui uma das possíveis formas de ato de libidinagem, a qual, a rigor, não precisaria constar expressamente do tipo; segundo, porque, em verdade, se o agente praticar um ou outro ato ou ambos, realizará um só e mesmo tipo penal; terceiro, porque, ao contrário da legislação revogada, que tipificava autonomamente, em artigos diversos, o estupro e o atentado violento ao pudor, a reforma superou a distinção por considerá-la desnecessária; quarto, porque a própria classificação (crime misto cumulativo) de que se valem os precedentes carece de fundamento e não implica forçosamente concurso de crimes; quinto, porque interpretar cada ato libidinoso como constitutivo de um crime autônomo, relativamente a um só e mesmo tipo penal, importa em violação ao princípio ne bis in idem.
Finalmente, o estupro não é de modo algum um crime misto (alternativo ou cumulativo), visto que o tipo refere um único verbo (constranger), sendo que o ter e o praticar ou permitir que se pratique apenas o complementam.3
Aliás, do ponto de vista da estrutura típica, o estupro nada tem de especial em comparação com outros delitos de única ação, que, embora criminalizem um só verbo (constranger, ofender, subtrair etc.), podem ser distintamente praticados sem que isso importe em concurso de crimes. Assim, por exemplo, pratica um só crime de lesão corporal (CP, art. 129) o agente que, num mesmo contexto, ofende diversamente a integridade física de alguém (v.g., golpeando-o com instrumentos diversos e em partes distintas do corpo). O mesmo ocorre (crime único) com o autor de furto (CP, art. 155), que, numa única noite, entra numa casa e aí subtrai coisas diversas de modo também diverso (v.g., ora usando chave falsa, ora escalada, ora destreza).
A interpretação prevalecente no STJ mais parece, portanto, um esforço do tribunal no sentido de fazer prevalecer a jurisprudência que se consolidara anteriormente à reforma.
O mais razoável seria, por conseguinte, que, reconhecida a unidade de crime, o juiz, quando da individualização, procedesse à fixação de uma pena compatível com as circunstâncias do caso, aí incluídas a natureza e a quantidade de atos libidinosos praticados.
Advirta-se, porém, que o concurso de crimes (formal, material e continuado) é perfeitamente possível, desde que os atos sejam praticados em contextos distintos e autônomos.
1 HC n° 139.334-DF, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, de 20/05/2011.
2No sentido aqui proposto, Damásio de Jesus: “…Isso importa que a prática de mais de um ato libidinoso de relevo, como a conjunção carnal e o coito anal, cometidos no mesmo contexto fático em em face do mesmo sujeito ativo, caracterizam crime único (e não mais concurso material). Não aquiescemos com o ponto de vista que sustenta cuidar-se de o tipo penal insculpido no art. 213 de tipo misto cumulativo, ou seja, de uma disposição legal que contém dentro de si mais de um crime. Cuida-se, na verdade, de tipo misto alternativo, já que o constrangimento pode se dar para obrigá-la à intromissio penis in vaginam ou a ato lascivo diverso. É evidente, contudo, que a multiplicidade de atos libidinosos em tais condições deverá ser tomada em conta por ocasião da dosagem da pena, resultando no reconhecimento de circunstâncias judiciais desfavoráveis ao agente (nos termos do art. 59, caput, do CP).”
3 No mesmo sentido, Cleber Masson, cit., p.17/18