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Efeitos civis da sentença penal

1)Introdução

Embora as responsabilidades civil e penal sejam autônomas e apuradas segundo critérios próprios, casos há em que a sentença penal (condenatória ou absolutória) tem repercussão para além do processo penal (civil, administrativo etc.), impedindo (em parte) a rediscussão da matéria objeto da sentença. Diz-se, então, que a decisão penal faz coisa julgada no cível, tornando indiscutível a matéria já decidida no âmbito penal.

Como regra, fazer coisa julgada no cível nada significa, porém, quanto ao suposto direito do ofendido ou de seus representantes legais à efetiva reparação do dano, cujo pedido pode ser acolhido ou rejeitado no juízo cível, nos termos da legislação aplicável. Mais claramente: quando se diz que a sentença penal absolutória que reconhece a legítima defesa (real) faz coisa julgada no cível isso significa apenas que não se poderá discutir, naquele juízo, a incidência (ou não) dessa causa de justificação, visto que esse tema já foi resolvido no juízo criminal competente. Apesar disso, o juízo cível poderá deferir pedido de reparação do dano se e quando entender cabível com base na legislação pertinente1.

Em resumo: fazer coisa julgada no cível significa impor uma restrição temática à jurisdição do juízo não penal (cível, administrativo etc.). É uma limitação imposta pela jurisdição penal à jurisdição civil.

Além disso, como existem crimes sem vítima ou sem vítima determinada (tráfico de drogas e afins etc.), a sentença penal não necessariamente dará lugar à reparação do dano. Afinal, somente as infrações penais (crimes e contravenções) que causam dano a uma vítima ou vítimas determinadas ensejam indenização civil.

Dada a relativa independência das instâncias civil e penal, a ação reparatória em virtude de crime (actio civilis ex delicto) pode, em princípio, ser proposta a qualquer tempo e independentemente de processo criminal: antes, durante ou depois da ação penal, podendo o juízo cível, inclusive, suspendê-la até o julgamento definitivo pelo juízo criminal (CPP, art. 64, parágrafo único)

Na verdade, o tema da responsabilidade civil é tão complexo que o legislador penal nada deveria dizer no particular, remetendo a matéria para o direito civil.

2)A sentença condenatória como título executivo judicial

A sentença penal condenatória faz coisa julgada no cível; constitui, pois, título executivo judicial (CPC, art. 515, VI; CP, art. 91, I), razão pela qual, uma vez transitada em julgado, já não caberá discussão sobre o cometimento do crime e sua autoria. Como título executivo judicial a sentença será submetida apenas à execução forçada na forma da lei. Ou, como diz o 63 do CPP, transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.

Normalmente haverá necessidade de liquidação da decisão (total ou parcial), a fim de apurar-se o valor exato da indenização (CPP, art. 63, parágrafo único).

A sentença atingirá somente quem foi de fato condenado, não aquele que, embora processado, foi absolvido, tampouco quem nem sequer foi investigado ou denunciado. A sentença penal não vale, portanto, contra o responsável civil que não figurou na ação penal (CC, art. 932), que deverá ser demandado em ação civil própria (actio civilis ex delicto), como a empresa transportadora que não foi ré no processo criminal, mas cujo motorista foi condenado penalmente por homicídio culposo.

Também por isso, a sentença absolutória imprópria – que aplica medida de segurança ao inimputável nos termos do art. 26 do CP – não constitui título judicial (segundo doutrina majoritária2). Faz coisa julgada, contudo, a decisão que condenar o réu semi-imputável na forma do art. 26, parágrafo único, do CP.

Se, antes ou durante a execução civil, for proferida decisão judicial em habeas corpus ou revisão criminal anulando a sentença, faltará justa causa para o processo de execução, que, se já iniciado, deverá ser extinto.

3)Efeitos civis da sentença penal absolutória

Como regra, a sentença penal absolutória (definitiva ou sumária) não faz coisa julgada no cível. Significa dizer que, salvo casos excepcionais, a sentença penal não produzirá efeito extrapenal algum, ou seja, é irrelevante para fins não penais. Assim, por exemplo, a sentença que absolver o réu por insuficiência de prova não trará restrição alguma ao juízo cível, nem impedirá a vítima ou seus sucessores de postular indenização naquele juízo.

Casos há, porém, em que a sentença penal absolutória resolve (parcialmente, em geral) também a questão cível, produzindo efeitos extrapenais. Esses casos excepcionais são os seguintes: 1)a sentença que reconhece, categoricamente, a não ocorrência do fato; 2)a sentença que reconhece, categoricamente, que o acusado não é o autor, coautor ou partícipe do crime; 3)a sentença que reconhecer ter sido o fato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Os itens 1 e 2 tratam de casos raríssimos de absolvição, visto que dificilmente um juiz ou tribunal afirmará, na sentença ou acórdão, de modo peremptório, que o fato não aconteceu ou que, tendo acontecido, o réu não foi o seu autor. A tese mais comum é a absolvição por insuficiência de prova ou com base no in dubio pro reo. Afinal, é muito raro se dispor de prova tão contundente de inocência.

De todo modo, se a decisão disser, de modo categórico, que o crime não ocorreu (v.g., a suposta vítima do homicídio está viva e residindo em outro país) ou que não foi o acusado o autor da infração penal, mas um homônimo, tal fará coisa julgada no cível, impedindo a rediscussão da matéria.

Incide aqui o artigo 935 do Código Civil: A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

Também fará coisa julgada no cível a sentença absolutória que reconhecer excludentes de ilicitude, já que são casos em que o agente atua conforme a lei, não apenas conforme a lei penal. Logo, como a ilicitude é a relação de contrariedade entre a conduta (ação ou omissão) e o ordenamento jurídico como um todo, segue-se que a sentença que admitir a excludente produzirá efeitos extrapenais.

Incide aqui o artigo 65 do CPP: Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Fazer coisa julgada no cível significa aqui apenas que já não caberá discutir, no juízo cível, se o autor agiu ou não amparado por causas de justificação, visto que tal questão já foi resolvida no juízo criminal competente. Não significa, entretanto, que a vítima ou seu representante legal não tenha efetivo direito à reparação do dano.

Com efeito, como a responsabilidade civil é fundada em critérios distintos e mais flexíveis que a criminal, admitindo-se, inclusive, a responsabilidade civil objetiva, por ato de terceiro e mesmo por ato lícito ou, ainda, apesar do reconhecimento de excludentes legais de ilicitude, nada impedirá a discussão do direito à reparação do dano no juízo cível. Em síntese, a decisão penal cria apenas um indício (precário) de não responsabilização civil. Nada mais.

Ou seja, com ou sem o reconhecimento da legítima defesa ou do estado de necessidade no juízo penal, por exemplo, o juízo cível poderá acolher ou rejeitar pedido de reparação do dano. O que o juízo cível não poderá fazer é questionar ou contrariar a decisão penal quanto ao acerto ou desacerto relativamente ao reconhecimento da excludente legal de ilicitude. A jurisdição penal impõe aqui um limite temático.

Em suma, saber se a vítima ou seus representantes legais têm ou não direito à reparação do dano não é um problema do direito penal, mas do direito civil (e de outros ramos do direito), que trabalha com critérios distintos de responsabilização.

Nesse sentido escreve Fernando da Costa Tourinho Filho3:

A excludente de ilicitude e a ação civil. O dispositivo em exame (art. 65 do CPP) não significa que a sentença penal que reconheça uma dessas excludentes de ilicitude impeça a propositura da ação civil. Houve excesso na linguagem. O legislador disse mais do que queria. Observa-se, por exemplo, que, no caso de estado de necessidade, ocorrendo a hipótese prevista no art. 188, II, do CC, aplicar-se-á a regra do art. 929 do mesmo Código. Basileu Garcia, com acerto, afirmava que o contido no art. 65 do CPP não tinha nem tem outro efeito que o de denunciar a impossibilidade de reabrir-se, no cível, a discussão sobre a intercorrência dessas justificativas no caso concreto. Mas o legislador processual não dispôs – nem era de sua missão fazê-lo – acerca de caber ou não caber ressarcimento em havendo algumas daquelas justificativas (Curso de direito penal, v.1, t.2,p.578). Assim também Frederico Marques (Instituições de direito processual civil, v.3. p.306). Por isso mesmo trasladou ele, do CPP para o seu anteprojeto do CPP, o art. 65, com essa roupagem, que devia ter sido a desejada pelo legislador de 1941:

Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhece ter sido o ato praticado em legítima defesa, estado de necessidade, excludente de crime, exercício regular de direito ou estrito cumprimento de dever legal. Os efeitos civis de qualquer uma dessas excludentes penais ficam subordinados ao que dispuser a legislação de direito privado”.

De acordo com o art. 23 do Código Penal, excluem a ilicitude: a)o estado de necessidade; b)a legítima defesa; c)o estrito cumprimento de dever legal; d)o exercício regular de direito.

Esse dispositivo só é aplicável às excludentes reais, não às putativas. Nada impedirá, por isso, a discussão da matéria no cível quando a sentença reconhecer que houve erro de tipo permissivo (descriminantes putativas), isto é, legítima defesa putativa etc., pois, nessas hipóteses, o agente atuará contrariamente ao direito, mas a lei penal considera que o fato não é punível. O erro de tipo permissivo não é uma excludente de ilicitude, mas de tipicidade ou de culpabilidade (para alguns autores). O reconhecimento dessas duas espécies de excludentes de crime não tem repercussão cível alguma.

Assim, quem, ao encontrar em lugar escuro e ermo um criminoso que há tempos o ameaçava de morte, supondo equivocadamente que ele iria matá-lo naquele dia, atira contra ele, matando-o, é absolvido pelo tribunal do júri alegando legítima defesa putativa, poderá ser acionado civilmente para efeito de reparação do dano. Idem, se o réu for absolvido com base na coação moral irresistível, no erro de proibição inevitável ou na obediência a ordem não manifestamente ilegal etc., que são excludentes de culpabilidade, não de ilicitude.

Também não há coisa julgada no cível quando houver o reconhecimento de excesso na legítima defesa e outras excludentes de ilicitude ou aberratio ictus. Dá-se o excesso quando a vítima, na legítima defesa, por exemplo, vai além do necessário à proteção do direito, hipótese em que responderá a título doloso ou culposo. E haverá aberratio ictus ou erro na execução quando o ofendido, ao proteger legítimo interesse, atingir terceiro inocente, lesionando-o.

Releva notar, ainda, que a doutrina atual diverge sobre a exata posição sistemática de algumas dessas excludentes. Há quem defenda, por exemplo, que o exercício regular de direito e o estrito cumprimento do dever legal não são excludentes de ilicitude, mas de tipicidade. Além disso, a doutrina admite causas supralegais de justificação, isto é, não previstas em lei4.

Por fim, há certos institutos que em geral afetam os efeitos penais, mas não os efeitos civis da sentença penal condenatória, tais como: a)abolição do crime (abolitio criminis), seja por lei, seja por decisão judicial; b)a anistia, a graça e o indulto. De acordo com a Súmula 631 do STJ, o indulto extingue os efeitos primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais.

Quando houver prescrição da pretensão punitiva (retroativa ou superveniente), que desconstitui a condenação, a sentença já não valerá como título executivo. No entanto, a eventual decretação da prescrição da pretensão executória não afetará a execução da res judicata penal.

A sentença concessiva de perdão judicial, que tem natureza declaratória, não faz coisa julgada no cível (Súmula 18 do STJ5), segundo a doutrina majoritária.

1Como escrevem Cristiano Chaves de Farias e outros, a decisão penal obriga o juízo cível a aceitar tais premissas (legítima defesa etc.), porém os efeitos, a elas conferidas, serão os da lei civil, que impõe, em certos casos, apesar da licitude do ato, o dever de reparar os danos. Novo tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2015, p. 116. De acordo com José de Aguiar Dias, “a sentença penal, fundada em dirimente ou justificativa, não influi no juízo civil senão quando estabeleça a culpa do ofendido, que, nesse caso, sofre as consequências do seu procedimento. Não é, portanto, o ato do autor do dano em si que, coberto por dirimente ou justificativa, desautoriza a obrigação de reparar: é culpa do ofendido que, conjugada àquela, determina a irresponsabilidade”. Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 1.103/1.104.

2Como já foi dito, temos que há aí, em verdade, uma condenação imprópria, já que, com exceção da inimputabilidade, todos os pressupostos da pena devem estar presentes. Por isso, seria razoável admitir-se que também ela faz coisa julgada no cível.

3Código de processo penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 232.

4Ver Paulo Queiroz. Direito penal, parte geral. Salvador: editorajuspodivm, 2018.

5A sentença concessiva do perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório.

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