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DOLO E LOUCURA

 

1)Introdução

Conheci o professor Alfredo de Oliveira numa palestra que fiz em Maceió ano passado (2010). Antes de inciá-la, tive uma breve e interessante conversa com o experiente professor e membro do Ministério Público, na qual contava-me suas inquietações relativas à dogmática jurídico-penal.

Dizia que, embora a doutrina ensine que o crime, do ponto de vista analítico, é um fato típico (subsunção do fato ao tipo incriminador), ilícito (infração ao direito como um todo) e culpável (juízo de reprovação incidente sobre o autor de um fato típico e ilícito), havendo, entre tais categorias, uma relação de sucessão e prejudicialidade, os inimputáveis em razão da menoridade ficavam fora do direito penal. Subvertia-se, assim, a aquela ordem doutrinária, visto que, verificada a menoridade, nem sequer se cogitava de tipicidade e ilicitude da conduta. Afinal, o menor infrator está sujeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que trabalha com outros critérios de responsabilização e penalização. Consequentemente, não faria sentido dizer que a imputabilidade seria o último requisito do crime, mas o primeiro (talvez), já que, se inimputável o agente, sequer incidia o direito penal.

Narrava, ainda (e isso me impressionou mais), um caso em que um sujeito acusado de matar uma criança dava, mais ou menos, a seguinte versão do ocorrido: “Eu vi uma grande bola de fogo. Lutei contra ela e venci.”. Tratava-se de um portador de transtorno mental grave, passível de medida de segurança. A pergunta principal que a situação suscitava era: há dolo em semelhante caso?

Como não respondi na oportunidade, tentarei fazê-lo agora nessa justa homenagem que lhe prestamos todos, alunos e amigos.

Saber se houve ou não dolo é fundamental porque, caso contrário, teremos de concluir (talvez) pela ausência de tipicidade do fato e consequente impossibilidade de qualquer sanção penal(pena ou medida de segurança), visto que que, desde que o sistema finalista triunfou, dolo e culpa passaram a ser apurados no âmbito da própria tipicidade.

O problema talvez não tivesse sentido no sistema naturalista (causalista), já que dolo e culpa não eram problema de tipicidade, mas de culpabilidade, razão pela qual, faltando a imputabilidade, em virtude da doença mental, o agente seria submetido à medida de segurança, desde que o fato imputado fosse típico e ilícito, objetivamente analisados.

Estamos de acordo, inicialmente, que uma tal conduta não pode, em princípio, ficar sem nenhum tipo de resposta do Estado, visando a prevenir novas ações lesivas.

Significa dizer que, antes de mais nada, o dolo é o resultado de uma decisão político-criminal no sentido da necessidade de intervir penalmente sobre ações dessa natureza.

Pois bem, se considerarmos que o dolo, entendido como consciência e vontade de realização dos elementos do tipo (Welzel), reside no psiquismo do agente e deve ser apurado a partir de uma sondagem da sua mente, ter-se-á de concluir que o autor não agiu dolosamente, visto que, do seu ponto de vista, ele cometeu uma ação inocente. Faltar-lhe-iam, pois, a representação e a vontade no sentido da realização do tipo de homicídio: matar alguém.1

O dolo não reside ou não pode residir, portanto, na mente no autor, mas na mente de quem decide sobre o destino do autor; logo, o dolo é, essencialmente, uma interpretação sobre a ação do agente. Apesar disso, não é irrelevante, obviamente, a própria interpretação do autor, em relação ao fato por ele praticado.

Dizer que o dolo não é um estado mental do sujeito, mas uma imputação a esse título, significa, mais concretamente, o seguinte: a) que compete a um terceiro (notadamente o juiz), e não ao imputado, decidir se este agiu ou não dolosamente; b)que se trata, essencialmente, de uma valoração a partir da prova produzida nos respectivos autos; c)que esse juízo de valor poderá eventualmente contrariar a própria versão do imputado, por mais verossímil, sobretudo nos crimes contra a honra (calúnia etc.); d)que para a apuração do dolo é essencial a consideração do contexto em que os fatos se passaram; e) que o dolo não preexiste à interpretação, mas é dela resultado (não é previamente dado, mas construído), motivo pelo qual juízes e tribunais não raro divergem sobre o assunto, ora afirmando, ora negando a existência de dolo; f)que o dolo é um conceito – logo, uma metáfora –, razão pela qual pode designar e compreender casos bastante díspares; g)por encerrar uma imputação, é possível falar (em tese) de dolo mesmo em relação a adolescentes, ébrios e portadores de deficiência mental.

Aliás, se tivermos que o dolo é algo a ser buscado na mente do indivíduo, dificilmente se poderá condenar alguém por um crime doloso. Primeiro, porque a confissão de crime é rara; segundo, porque a confissão de dolo não implica, necessariamente, o reconhecimento jurídico-penal da existência de dolo, por demandar uma interpretação por parte de quem decide a esse respeito (o juiz etc.); terceiro, porque, como qualquer outro conceito jurídico, o dolo não é, a rigor, um estado mental do sujeito, mas uma imputação a esse título (doloso); quarto, porque o dolo não é um fato, uma coisa, mas um construto, que não preexiste à interpretação, mas é dela resultado; quinto, porque o dolo é uma metáfora, pois, com todo conceito, surge da postulação de identidade de coisas não idênticas, daí existir uma rica classificação (direto, de primeiro e segundo grau, eventual, preterdolo etc.).

Note-se, mais, que o dolo é um conceito que remete a tipos que pouco ou nada têm em comum. Justamente por isso, o dolo que se exige para o homicídio não é o mesmo que se requer para a lesão seguida de morte, nem é o mesmo do furto, da calúnia etc., razão pela qual sua apuração constitui, também por isso, essencialmente, um problema de especialistas, e não de quem sofre a imputação.

Mas não é só o dolo que é uma atribuição. Também a doença mental e a consequente inimputabilidade encerram uma imputação a esse título. Porque, rigorosamente, não existem fenômenos psiquiátricos, mas apenas uma interpretação psiquiátrica dos fenômenos (Nietzsche).

Com efeito, uma leitura superficial do CID 10 mostrará que quase tudo pode ser subsumido no conceito de transtorno mental. De acordo com a classificação de “Transtornos Mentais e de Comportamento da CID10” (Organização Mundial de Saúde – OMS), a inimputabilidade, total ou parcial, pode resultar, dentre outros, dos seguintes transtornos: demência na doença de Alzheimer, demência vascular, transtornos mentais decorrentes de lesão e disfunção cerebrais, transtornos mentais decorrentes de uso de substância psicoativa, esquizofrenia, transtornos do humor (afetivos), transtorno afetivo bipolar, transtorno depressivo recorrente, transtornos neuróticos relacionados ao estresse, transtornos alimentares, transtornos mentais e de comportamentos associados ao puerpério, transtornos específicos de personalidade (transtorno de personalidade paranoide, esquizoide, antissocial), retardo mental (leve, moderado, grave, profundo) etc. Como transtornos de hábitos e impulsos, são citados: o jogo patológico, o comportamento incendiário patológico (piromania), roubo patológico (cleptomania); como transtornos de identidade sexual e preferência sexual: transexualismo, fetichismo, travestismo, exibicionismo, voyeurismo, pedofilia, sadomasoquismo etc.

Enfim, uma coisa é o transtorno mental e outra é a inimputabilidade, razão pela qual o primeiro não implica forçosamente o segundo. Também por isso, o portador de transtorno mental, sobretudo quando adequadamente tratado, pode levar uma vida absolutamente normal e ser plenamente imputável e agir dolosamente.

2)Medida de segurança: conceito e pressupostos

Como é sabido, o Direito Penal responde às infrações de que cuida por meio de penas e medidas de segurança. As penas, que constituem a resposta penal por excelência, estão destinadas aos imputáveis, isto é, às pessoas com capacidade de discernimento e autodeterminação; com capacidade de culpabilidade, enfim. Já as medidas de segurança destinam-se aos maiores de dezoito anos declarados inimputáveis por não serem capazes de compreenderem o caráter ilícito do fato em virtude de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado (CP, art. 26, caput).2

Tratando-se de semi-imputável, é dizer, indivíduo não inteiramente imputável, com capacidade diminuída de entendimento, por força de perturbação da saúde mental ou similar (CP, art. 26, parágrafo único), o juiz poderá, segundo seja mais conveniente e socialmente recomendável, aplicar-lhe pena ou medida de segurança (sistema vicariante); todavia, não poderá aplicá-las cumulativamente (sistema duplo binário).

As medidas de segurança são, portanto, sanções penais destinadas aos autores de um injusto penal punível, embora não culpável em razão da inimputabilidade do agente. Ou seja, tais medidas, para serem aplicadas, exigem o concurso simultâneo de todos os requisitos e pressupostos do crime, com exceção da imputabilidade do autor, unicamente.3

Em homenagem aos princípios e garantias constitucionais, em especial o princípio da igualdade, em nenhuma hipótese será cabível a medida se na mesma situação não couber a aplicação da pena por qualquer motivo. Assim, por exemplo, se o fato for atípico (v. g., ausência de nexo causal ou de culpa) ou lícito (v. g., praticado em legítima defesa ou em estado de necessidade) ou não culpável (v. g., cometido sob coação moral irresistível, erro de proibição inevitável, embriaguez involuntária completa) ou se tiver sido atingido por causa de extinção da punibilidade (prescrição, decadência etc.).

Por conseguinte, todos os pressupostos jurídico-penais exigidos para a imposição de uma pena hão de igualmente valer para as medidas de segurança, com exceção apenas da imputabilidade, pois, se assim não for, conferir-se-á ao inimputável um tratamento injusto, desigual e ofensivo aos princípios penais, os quais devem ser aplicados com maior razão a tais pessoas, dado o maior grau de vulnerabilidade em que normalmente se encontram (a lei penal como a lei do mais débil).

Por consequência, a afirmação – ainda corrente na doutrina – de que a pena pressupõe culpabilidade enquanto a medida de segurança pressupõe perigosidade, não é de todo exata. Por isso afirma Figueiredo Dias que o fundamento da aplicação da medida de segurança criminal não é a perigosidade do agente, mas apenas aquela revelada através da prática, pelo agente, de um fato ilícito típico.4

Mas exagera quando assinala, também de acordo com a doutrina, que a diferença essencial entre a pena e a medida de segurança reside “na circunstância de ser pressuposto irrenunciável da aplicação de qualquer pena a estrita observância do princípio da culpabilidade, princípio que não exerce papel de nenhuma espécie no âmbito das medidas de segurança”.5

Com efeito, se, à exceção da imputabilidade, todos os pressupostos da punibilidade são exigidos para a aplicação da medida de segurança, inclusive a ausência de causas de exculpação, força é convir que a ideia de culpabilidade não lhe é absolutamente estranha, visto que também em relação ao inimputável deve ser verificado se lhe era exigível, concreta e razoavelmente, uma conduta conforme o direito (culpabilidade). Não sendo o agente culpável, embora inimputável, em virtude, por exemplo, de coação moral irresistível, medida de segurança alguma lhe poderá ser aplicada.

Mas a posição que ora defendemos não é o que a doutrina propõe, pois mesmo um autor de formação crítica como Juarez Cirino dos Santos entende que, se o inimputável, em razão de doença mental ou perturbação da saúde mental, é incapaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento, tampouco poderá ter conhecimento da proibição ou de poder determinar-se pelo conhecimento da proibição, razão pela qual não pode, logicamente, invocar erro de proibição. Pela mesma razão, não poderia alegar qualquer outra excludente de culpabilidade, pois a inexigibilidade de conduta diversa pressuporia a exigibilidade de conduta conforme o direito, o que não é possível em se tratando de inimputável.6

Não estamos de acordo com isso, evidentemente. Em primeiro lugar, porque, como demonstra Quintero Olivares ,7 uma rígida separação entre inimputáveis e imputáveis constitui uma ficção desacreditada pela psiquiatria mais recente e pela própria realidade; segundo, porque alienação mental e inimputabilidade não são equivalentes, havendo diversos graus de inimputabilidade conforme a respectiva causa; terceiro, porque a loucura e, pois, a inimputabilidade, são socialmente construídas, variando no tempo e no espaço os comportamentos assim etiquetados, tanto que os laudos psiquiátricos não raro se contradizem, razão pela qual se poderia dizer, à maneira de Nietzsche, que a rigor não existem fenômenos psiquiátricos, mas apenas uma interpretação psiquiátrica dos fenômenos;8 quarto, porque, ainda que assim não fosse, o inimputável poderia alegar excludentes de culpabilidade sempre que se achasse numa situação em que o imputável pudesse fazê-lo, por força do princípio da isonomia inclusive; quinto, porque tal entendimento implicaria tratar o inimputável não como sujeito de direito (como é comum, aliás), mas como objeto da intervenção jurídico-penal. Imagine-se, por exemplo, que A e B, ambos residentes na zona rural dos confins do Brasil, estando a pescar ou a caçar num domingo, como é comum naquela região, sejam presos por porte ilegal de arma e crime ambiental. A, plenamente imputável, é absolvido invocando erro de proibição inevitável; mas B, inimputável, apesar de se encontrar na mesma situação, seria submetido à medida de segurança, implicando grave restrição à liberdade do agente. Parece claro ainda que, se A pode alegar erro de proibição, B, mais vulnerável, poderá fazê-lo com maior razão, mesmo que por analogia, sob pena de se consagrar uma injustiça manifesta.

Além do mais, sempre que o agente atua amparado por uma excludente de culpabilidade, a medida de segurança já não se justifica finalisticamente, isto é, quer do ponto de vista da prevenção geral, quer do ponto de vista da prevenção especial, pois o inculpável não representa assim perigo social algum.

Se tal se aplica ao erro de proibição, também é aplicável a outras excludentes de culpabilidade, perfeitamente possíveis. Enfim: o inimputável pode invocar excludentes de culpabilidade pelas mesmas razões que poderia invocar excludentes de tipicidade (v. g., ausência de dolo) e de ilicitude (v. g., legítima defesa), até porque a distinção entre excludentes de tipicidade, de ilicitude e de culpabilidade não preexiste à interpretação, mas é dela resultado. Não é por outra razão que juízes e tribunais não raro divergem sobre o assunto, ora decidindo num sentido, ora noutro.

Uma última observação: se a culpabilidade é requisito do crime, e não simples pressuposto da pena, o alienado mental e o menor de dezoito anos cometeriam crime, já que são inculpáveis?

Ora, se o conceito analítico de crime é um desdobramento do conceito formal, segue-se que o menor não comete crime, mas ato infracional, conforme consta da própria lei (Lei nº 8.069/90); logo, não está sujeito à pena, mas à medida socioeducativa, que consistirá em internação nos casos mais graves. Já o alienado mental comete crime, sim, desde que a conduta por ele praticada seja típica, ilícita e culpável, porque, se for atípica ou lícita ou inculpável, por qualquer motivo que não a própria inimputabilidade (v. g., coação moral irresistível ou erro de proibição inevitável), nenhuma sanção poderá sofrer. Se, diversamente do imputável, ele não fica sujeito à pena, mas à medida de segurança, é porque a imposição de uma pena (em sentido estrito) seria um castigo inútil. Mais: a distinção entre pena e medida de segurança é puramente formal; materialmente, a medida de segurança pode ser mais lesiva à liberdade inclusive.

Apesar de a lei prever a possibilidade de se poder aplicar a medida de segurança também ao contraventor inimputável (LCP, art. 13), parece-nos que tal é, em princípio, incompatível com o requisito da periculosidade necessária à sua aplicação.9 O mesmo pode ser dito quanto aos delitos culposos e de menor potencial ofensivo.

3)Lei de Reforma Psiquiátrica

A Lei de Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216/2001), expressamente aplicável às medidas de segurança, que as chama de internação compulsória (arts. 6º, III, e 9º), trouxe importantes modificações, a exigir uma releitura do Código Penal e da Lei de Execução Penal, havendo inclusive quem defenda a derrogação da LEP no particular e de parte do Código Penal e Processual Penal.10 Eis as mais importantes:

1. Finalidade preventiva especial. A lei considera como finalidade permanente do tratamento a reinserção social do paciente em seu meio (art. 4º, § 1º), reforçando assim a finalidade – já prevista na LEP – preventiva individual das medidas de segurança. Portanto, toda e qualquer disposição que tiver subjacente a ideia de castigo restará revogada.

2. Excepcionalidade da medida de segurança detentiva (internação). Exatamente por isso, a internação só poderá acontecer quando for absolutamente necessária, isto é, quando o tratamento ambulatorial não for comprovadamente o mais adequado. É que, de acordo com a lei, a internação só é indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes, devendo ser priorizados os meios de tratamento menos invasivos possíveis (arts. 4º e 2º, parágrafo único, VIII). Por isso que, independentemente da gravidade da infração penal cometida, preferir-se-á o tratamento menos lesivo à liberdade do paciente, razão pela qual, independentemente da pena cominada (se reclusão ou detenção), o tratamento ambulatorial (extra-hospitalar) passa a ser a regra, e a internação, a exceção, apesar de o Código dispor em sentido diverso.11 Também por isso é vedada a internação de pacientes em instituições com características asilares (art. 4º, § 3º).

3. Revogação dos prazos mínimos da medida de segurança. Parece certo também que a fixação de prazos mínimos restou revogada, pois são incompatíveis com o princípio da utilidade terapêutica do internamento (art. 4º, § 1º) ou com o princípio da desinternação progressiva dos pacientes cronificados (art. 5º). Além disso, a presunção de periculosidade do inimputável e o seu tratamento em função do tipo de delito que cometeu (se punido com reclusão ou detenção), baseado em prazos fixos e rígidos, são incompatíveis com as normas sanitárias que visam à reinserção social do paciente.12

4. Alta planejada e reabilitação psicossocial assistida. No caso de paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente (art. 5º).

5. O paciente tem direito ao melhor tratamento do sistema de saúde, de acordo com as suas necessidades, garantindo-se-lhe, entre outras coisas, livre acesso aos meios de comunicação disponíveis (art. 2º, parágrafo único).

4)Conclusões:

1)doença mental não se confunde com inimputabilidade, razão pela qual o doente mental pode ser plenamente imputável; 2)a inimputabilidade penal pressupõe incapacidade em virtude de doença mental contemporânea do crime cometido; 3)o inimputável, à semelhança do imputável, pode agir dolosa ou culposamente; 4)o dolo deve ser aferido a partir da valoração da prova produzida nos autos, aí incluída a própria versão do imputado; 5)o dolo não é, a rigor, um estado mental do sujeito, mas uma imputação a esse título (doloso); 6)o dolo não é retirado do psiquismo do agente; 7)apesar disso, não é irrelevante a própria versão do imputado, que deve ser levada em conta na valoração judicial da existência ou não de dolo; 8)os pressupostos de aplicação de uma medida de segurança são, em princípio, os mesmos de aplicação de uma pena (fato típico, ilícito e culpável); 9)nos casos extremos de inimputabilidade (como no exemplo citado inicialmente no presente texto), não existe dolo, por faltar a representação mínimo do fato típico; 10)apesar da ausência de dolo, é possível a aplicação de medida de segurança. Trata-se de uma situação absolutamente excepcional de aplicação de sanção penal sem dolo. O exemplo que inspirou o presente artigo demonstra os limites e imperfeições do sistema da teoria do delito, como de todo sistema.

1Nesse sentido de que o doente mental não age com dolo, Roque de Brito Alves. Direito Penal. Parte Geral. Recife: Editora do Autor, 2010, p. 241.

2O Código Penal de 1940 adotava o sistema duplo binário e, pois, admitia a aplicação de ambas as sanções; a reforma de 1984 aboliu, no entanto, este sistema, adotando o vicariante, negando a possibilidade de aplicação cumulativa ou sucessiva de pena e medida de segurança.

3Em termos semelhantes, Paulo César Busato e Sandro Monte Huapaya. Introdução ao Direito Penal. Fundamentos para um Sistema Penal Democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

4Questões fundamentais, cit., p. 145.

5Figueiredo Dias, Questões fundamentais, cit., p. 155.

6Direito Penal, cit., p. 643.

7Locos y Culpables. Pamplona: Aranzadi Editorial, 1999. Como assinala Quintero, de acordo com um conceito atual de enfermidade mental, não é possível afirmar que uma de suas características seja a impossibilidade de poder distinguir entre o bem e o mal, entre o permitido e o proibido, motivo pelo qual um indivíduo clinicamente enfermo mental pode ter uma capacidade intelectual suficiente para atingir a compreensão que os juristas consideram necessária para o conhecimento da ilicitude (cit., pp. 103-104). O referido autor propõe um sistema unitário de apuração da responsabilidade penal, unidade que significará tanto um processo uno, com todas as garantias penais e processuais inerentes ao devido processo legal, inclusive no que toca à individualização da sanção penal, quanto à reação preventiva-repressiva, em cuja execução é necessário adotar os meios adequados para a separação e classificação dos condenados de acordo com a sua saúde mental (cit., p. 161).

8De acordo com Thomas Szasz, estritamente falando, a doença ou a enfermidade só podem afetar o corpo, motivo pelo qual não pode haver nenhuma doença mental. A doença mental é uma metáfora, pois as mentes podem estar doentes apenas no sentido em que as brincadeiras estão doentes ou as economias estão doentes (O mito da doença mental. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 234). Ainda conforme o autor, “o que denominamos Psiquiatria contemporânea e dinâmica não é um progresso notável com relação às superstições e práticas das caças às bruxas, segundo a interpretação dos propagandistas da Psiquiatria contemporânea, nem um retrocesso com relação ao humanismo do Renascimento e ao espírito científico do Iluminismo, tal como pensam os românticos tradicionalistas. Na realidade, a Psiquiatria Institucional é uma continuação da inquisição. O que mudou foi apenas o vocabulário e o estilo social. O vocabulário se ajusta às expectativas intelectuais de nossa época: é um jargão pseudocientífico que parodia os conceitos da ciência. O estilo social se ajusta às expectativas políticas de nossa época: é um movimento social pseudoliberal que parodia os ideais de liberdade e racionalidade” (A fabricação da loucura. Um estudo comparativo entre a inquisição e o movimento de saúde mental. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, p. 56).

9Haroldo Caetano defende que a nova Parte Geral (Lei nº 7.209/84) revogou o art. 13 da LCP, pois ela só refere à aplicação de medida de segurança para as infrações (crimes) punidas com reclusão e detenção, motivo pelo qual estaria vedada nas contravenções, punidas que são com prisão simples (Execução Penal, cit., p. 297). Ocorre, porém, que o CP só define crimes, os quais, de acordo com o seu conceito legal, são punidos com reclusão ou detenção; não faria sentido, portanto, que também fizesse referência às contravenções e à prisão simples, objeto que é de lei especial. Não há falar, assim, de violação ao princípio da legalidade, ao menos com base em semelhante argumento. Além disso, em princípio a lei especial (LCP) prevalece sobre a lei geral (CP) e não o contrário: lex specialis derogat legi generali.

10Assim, Paulo Jacobina. “Direito Penal da Loucura: Medidas de Segurança e Reforma Psiquiátrica”. In Boletim dos Procuradores da República, nº 70, ano VI, maio/2006. O autor também defende a inconstitucionalidade das medidas de segurança.

11No sentido do texto, Haroldo Caetano. Execução Penal. Porto Alegre: Magister Editora, 2006, p. 295.

12No sentido do texto, Paulo Jacobina, cit.

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