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Do Dolo-Estado Mental ao Dolo-Imputação

Por José Osterno Campos de Araújo, procurador regional da República, professor do UniCEUB.

I – Com Welzel e com Puppe

É preciso tirar o dolo da cabeça do agente para colocá-lo na cabeça de quem imputa ao agente a atuação dolosa.

Em vez de estado mental, a se verificar1 na interioridade psíquica do agente, dolo é imputação que terceiro faz – o promotor, na denúncia; o juiz, na sentença – ao agente, a qual se deve pautar, afirma Puppe2, na natureza e intensidade do perigo conscientemente criado pelo agente ao bem jurídico-penal.

Não é adequado, no processo de determinação do dolo, tomar-se o “quis” ou o “assumiu o risco”, da redação do artigo 18 do Código Penal, como ponto de partida; mas, antes, como ponto de chegada.

Por isso, não se deve de antemão perguntar ao perseguido criminalmente: “você quis o resultado?” ou “você assumiu o risco de produzi-lo?3; impondo-se, em verdade, ao aplicador do direito, no momento próprio4 e em face dos dados fáticos de que dispõe, o questionamento: “ele (o agente) quis o resultado?” ou “ele assumiu o risco de produzi-lo?”.

Na primeira hipótese, evita-se o flanco aberto à arte fingidora do bom ator; e, na segunda, põe-se com exclusividade nas mãos do direito e de seus aplicadores5 a decisão pela presença, ou não, do dolo, na situação fática que lhes apresenta a persecução penal.

Para Dan-Cohen, citado por Nicolás Oxman6, é possível, no direito Penal, distinguir dois tipos de normas7: (a) as regras de conduta – dirigidas aos cidadãos – como comandos que selecionam e criminalizam comportamentos proibidos ou ordenados pelo direito; e (b) as regras de decisão – cujos destinatários são os juízes – que se apresentam como sistema de imputação e de atribuição da responsabilidade penal.

Nicolás Oxman8 complementa: é no plano das regras de imputação o lugar onde se materializa o entendimento acerca do âmbito interno daquele que pratica a conduta.

Nem na culpabilidade, com Welzel, nem na cabeça do agente, com Puppe; dolo, como a verdade, não se encontra, se constrói9.

II – Duas Perguntas (à época) sem resposta

A primeira: se o réu, em seu interrogatório, dissesse que viu uma imensa e ameaçadora bola de fogo vindo em sua direção – em verdade, um homem – e, para se salvar, desferiu-lhe sucessivos golpes de faca, “matando-a” (a bola de fogo, para ele; de fato, um homem); poder-se-ia imputar dolo de homicídio à sua conduta?

Foi a pergunta do amigo Paulo Queiroz, colega de Ministério Público e magistério.

Tenho de confessar: no momento, não tive resposta.

A segunda (pergunta de um professor e julgador): você acha que ele (em rumoroso caso policial que estampou os jornais) foi indiferente ao bem jurídico – vida – da vítima?

A resposta, além de qualquer dúvida razoável, somente se ele (quem praticou a conduta) afirmasse de forma fidedigna.

III – O Livro de Marcus Du Sautoy

III.1 – O que não podemos saber

O que não podemos saber: viagem aos limites do conhecimento” é o título do livro do professor de matemática da Universidade de Oxford, Marcus Du Sautoy.

Sobre “O que sabemos”, Du Sautoy afirma: “Todas as semanas, os títulos dos jornais anunciam novas descobertas que aperfeiçoarão a nossa compreensão do Universo, novas tecnologias que transformarão o nosso ambiente, novos avanços na medicina que prolongarão a nossa vida”; e “Sabemos tanta coisa. Os avanços científicos são verdadeiramente inebriantes”; acrescentando, em seguida: “para qualquer cientista, o verdadeiro desafio não é o de permanecer no seio do jardim seguro do que é conhecido, mas antes aventurar-se no território ainda não palmilhado do desconhecido10.

Já sobre “O que não sabemos”, o professor de Oxford alerta: “Os desconhecidos de que temos conhecimento superam os conhecidos que conhecemos. E são esses desconhecidos que fazem andar a ciência11.

A referência aos tais “desconhecidos que conhecemos” vem no molde de perguntas: “Será o nosso universo infinito? Haverá um número infinito de outros universos paralelos ao nosso? E se houver, possuirão diferentes leis da física? Será que houve outros universos antes de o nosso ter surgido a partir do Big Bang? Será que o tempo existia antes do Big Bang? Será que o tempo existe de todo, ou derivará de conceitos fundamentais?”.

E o que dizer da compreensão do nosso corpo humano” – segue perguntando – “algo de tão complexo que faz a física quântica parecer-se com um exercício de liceu?12.

Informa ainda: “Alguns cientistas estão convencidos de que a actual taxa de progresso científico nos conduzirá a um momento em que poderemos descobrir uma teoria de tudo. Chegaram mesmo a baptizá-la: TdT”, para assim arrematar: “Haverá, por outras palavras, questões que, pela sua própria natureza, nunca poderão ter resposta, independentemente dos progressos registados no conhecimento?”; representarão essas tais questões irrespondíveis “o horizonte além do qual não conseguimos ver?13.

III.2 – O que sabemos

Conforme dito por Du Sautoy, “os títulos dos jornais”, não raro, “anunciam novas descobertas14.

A possibilidade de o ser humano ultrapassar os limites do conhecimento científico vem estampada nas seguintes manchetes de jornais:

a) China planeja lua artificial para iluminar cidades. “A China planeja lançar uma lua artificial até 2020 para substituir a iluminação urbana e reduzir os custos de energia elétrica nas cidades, informa a imprensa estatal” (Folha de S. Paulo, 23.10.2018, p. B8);

b) Pacientes paraplégicos voltam a andar após terapia experimental. “Combinando estimulação elétrica do sistema nervoso e fisioterapia, uma equipe liderada por cientistas suíços conseguiu devolver boa parte da capacidade de caminhar a três pacientes paraplégicos que tinham sofrido lesões na medula espinhal” (Folha de S. Paulo, 02.11.2018, p. B4);

c) Robô eleva adesão a cirurgia de próstata. “Segundo os médicos, os robôs ajudam na adesão do paciente ao tratamento: por serem mais precisos, reduzem o tempo de internação e os efeitos colaterais, como disfunção erétil e incontinência urinária” (O Estado de S. Paulo, 18.11.2018, p. A16);

d) Restos de cigarro ajudam a desvendar caso de estupro. “Uma guimba de cigarro jogada (…) no canteiro da Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam), em Jacarepaguá, é considerada peça-chave (…) num crime de estupro. O descuido pode comprovar que (…) abusou sexualmente de uma vizinha” (O Globo, 25.09.2018, p. 13);

e) Roupas com tecnologia que aliviam dor crônica. “O resultado é uma roupa que parece comum, mas que é capaz de atuar como coadjuvante em um tratamento médico, de forma segura e eficaz” (O Estado de S. Paulo, 30.09.2018, p. C5);

f) Robôs advogados analisam processos, fazem petições e aceleram contratos. “Treinada sua inteligência, o software passa a funcionar como guia para quem o usa. Na hora de elaborar um documento, vai fazendo perguntas sobre o assunto e, quando tem as informações necessárias, entrega o arquivo pronto” (Folha de S. Paulo, 11.11.2018, p. A24).

Com Du Sautoy, pode-se, pois, afirmar que estados mentais do ser humano, sobre se enquadrarem no âmbito das chamadas “grandes questões em aberto”, situam-se ainda no remoto “horizonte além do qual não conseguimos ver”15.

Não à toa, Eduardo Wolf lembra que James “Baldwin abre Terra Estranha com uma epígrafe de Henry James sobre o ‘abismal mistério’ do que pensam, sentem e desejam as pessoas’16.

IV – Três casos (de dolo?)

Primeiro caso – A aposta de risco (Norberto Spolansky, Alejandro Carrió e Luis García): “X, que se jacta permanentemente de sua sorte, aposta com seus amigos. A aposta consiste em que pilotará sua motocicleta em uma avenida, na madrugada, com os olhos vendados e nada ocorrerá. Assim faz e em uma rua atropela um pedestre, causando-lhe graves lesões. Atuou “X” dolosamente? Seria diferente, se a aposta fosse a de pilotar a moto com os olhos vendados e a 180 km por hora?17.

Segundo caso – O navio velho e com defeitos (W. K. Clifford): “Um armador preparava-se para enviar para o mar um navio com emigrantes. Sabia que o navio estava velho e tinha defeitos de construção; que conhecera já muitos mares e climas e teve de ser reparado muito mais de uma vez. Alguém sugeriu ao armador que o navio talvez não estivesse em condições de navegar. Estas dúvidas pesavam-lhe na consciência e deixavam-no infeliz; pensou que talvez devesse mandar inspecionar e renovar completamente o navio, embora isto ficasse provavelmente bastante caro. Antes de o navio zarpar, contudo, o armador conseguiu deixar para trás estes pensamentos melancólicos. Disse para consigo que o navio enfrentara com êxito tantas viagens e resistira a tantas tempestades que não havia razão para supor que não regressaria ileso também desta viagem. O armador confiaria na providência, que seguramente não deixaria de proteger todas aquelas infelizes famílias que abandonavam a pátria em busca de uma vida melhor noutras paragens. Silenciaria todas as dúvidas mesquinhas acerca da honestidade dos construtores e dos empreiteiros. Assim, alcançou uma certeza sincera e confortável de que o seu navio era completamente seguro e estava em condições de navegar; viu-o partir com despreocupação e desejos caridosos de que os exilados fossem bem-sucedidos no novo e estranho lar que os esperava; e recebeu o dinheiro do seguro quando o navio se afundou em pleno mar sem deixar rasto18.

Terceiro e último caso – O advogado experiente e o falso (Ingeborg Puppe): “um advogado (…) trouxe ao processo um documento entregue por seu cliente, apesar de dispor de pontos de apoio claros para saber que se tratava de uma falsificação19.

Pode-se, então, afirmar o dolo nas condutas do apostador “X”; do armador e sua crença; e do advogado experiente?

V – Da subjetivização à objetivização do dolo

Em relacionamento amoroso, casal – Jonas e Marta – se entrega cotidianamente à prática sexual heterodoxa de Jonas envolver o pescoço de Marta com um lenço e, a seu pedido – que se sente extremamente excitada com a situação – apertar o lenço, quando a parceira está na iminência do orgasmo, o que faz Marta alcançar a completa satisfação sexual.

A prática se repete e, a cada encontro, mais e mais se aperta o lenço. Um dia, por isso, a parceira morre sufocada.

É a cena (do crime?).

Em juízo, Jonas declara: que amava Marta; que, por isso, concordou com a prática arriscada; que se desesperou, quando a viu imóvel; que tentou em vão a respiração boca a boca; que então acionou o socorro médico; e que daria a própria vida para trazê-la de volta.

A impossibilidade de verificação in loco – na interioridade psíquica de Jonas – para se descobrir o que verdadeiramente pensou, sentiu e quis o parceiro sexual, ao atuar para a completa satisfação de sua parceira – de par com a equivocada consideração da relevância dessa verificação para a tipificação do fato – pode muito bem, à vista dos aparentes declarado amor, incontido desespero e sentimentos de pesar de Jonas, em seguida à morte de Marta, conduzir o aplicador do direito a decidir inadvertidamente por negar o dolo e afirmar a culpa, uma vez desconhecido de todos o fato de Jonas, poucos dias antes do fatídico encontro sexual, haver descoberto, e silenciado, que Marta o houvera traído com outro homem, havendo, em verdade, aproveitado a oportunidade para matá-la.

É suspensa a sessão.

Dois especialistas são chamados a opinar.

Enrique Octavio Baeza Pérez declara: “Empíricamente la voluntad es indemostrable por tratarse de um aspecto psicológico, ya que sólo el sujeto puede saber lo que realmente quiere, porque no se trata de elementos de carácter objetivo, sino espiritual, y éstos no se pueden demostrar cientificamente.

No podemos demostrar la actitud del sujeto activo ni antes ni después de los hechos producidos, porque carecemos de los médios científicos adecuados para probarlo. La voluntad como elemento del dolo no es un hecho ‘fácilmente demostrable y observable como cualquier outro dato perceptible por los sentidos’. La característica de los elementos subjetivos consiste ‘precisamente em que nadie, salvo la própria persona de cuya subjetividade se trata, puede saber com certeza cuál es su exacto contenido’.

Por ejemplo: cuando afirmamos que um sujeto activo ‘actúo com dolo, se está, en realidade, presumiendo que, dadas las circunstancias y datos que concurrían en el caso concreto, el sujeto sabía lo que hacía y queria hacerlo; pero lo que el sujeto realmente sabe o quiere, nadie puede conocerlo, sino todo lo más deducirlo20.

Ingeborg Puppe, após afirmar que para a determinação do dolo “um juízo de valor ou uma adscrição também só terão um sentido claro se se referirem a determinados fatos, que são o objeto do juízo e a base da adscrição”; e que “Segundo a atual discussão alemã, há desacordo unicamente no que se refere a quais devem ser estes fatos”, põe em claro os tais desacordos entre os critérios utilizados para se dar – ou não – pelo dolo no caso concreto, a saber: a) para uma primeira corrente, dita voluntarista, é permitida a utilização, como base fática da determinação da atuação dolosa, de “tudo o que houver contra ou a favor” do imputado: “seu comportamento em relação à vítima antes e depois do fato, sua atitude para com ela, seu caráter em geral. A representação da intensidade do perigo pelo autor é apenas mais um dentre estes vários fatores de imputação, podendo-se afirmar a imputação do resultado à vontade ainda que este perigo seja reduzido, ou negá-la, ainda que esse perigo seja intenso”; e b) para uma segunda corrente, chamada de cognitiva, admite-se apenas uma base para a determinação do dolo, ou seja, “é a representação do autor, de que ele cria, por meio de sua ação, um perigo tamanhamente intenso e manifesto para a vítima, que uma pessoa razoável em seu lugar não agiria desta maneira, sem assumir o risco do resultado, aceitá-lo, nele assentir. Não se adscreve ao autor normativamente um fenômeno psíquico, mas seu agir e pensar são avaliados segundo um parâmetro geral de uma razoabilidade ao agir21.

Puppe, na sequência, ao optar pelo molde de determinação do dolo da segunda corrente, fundamenta sua opção: “a teoria cognitiva do dolo vincula o juiz a critérios claros e garante com isso mais segurança jurídica e igualdade (…). Ela previne o perigo de que o juiz valore não o fato, mas o autor (…)” e tem “a vantagem de que os seus pressupostos do dolo são, ao menos em princípio, comprováveis em juízo22.

Chega o momento da decisão.

Jonas é condenado por homicídio doloso, visto haver conscientemente criado para a vida de Marta um perigo manifesto e intenso, idôneo a causar a morte, afigurando-se desimportantes, para o deslinde do caso, haver Jonas expressado – verdadeira ou falsamente – sentimento de desagrado em relação à morte de Marta, no momento da prática do fato ou, posteriormente, no curso da persecução penal.

Encerrada a sessão, alguém (da assistência) grita: “Não se deve brincar com a vida”.

VI – As respostas faltantes

a) Resposta (tardia) a Paulo Queiroz – conforme o dito popular, das duas, uma: a.1) O réu está falando a verdade (a sua verdade), e realmente viu uma bola de fogo, em vez de um homem. Visão que só pode derivar de delírio ou alucinação. Assim, deve-se afirmar o dolo, para posteriormente negar-se a imputabilidade, com consequente aplicação de medida de segurança, sob pena de a negação do dolo impossibilitar a segregação, mediante medida de segurança, de alguém perigoso à sociedade, já que a negação do dolo ensejaria a negação da própria tipicidade; ou a.2) o réu está mentindo, com intenção de fugir à responsabilidade penal, e verdadeiramente viu um homem e não uma bola de fogo, imensa e ameaçadora.

É a solução (a minha solução) jurídica.

b) Resposta ao professor e julgador – a consciência da criação de perigo manifesto e intenso, capaz de causar a morte, dirá se ele agiu com dolo. A circunstância de haver atuado, ou não, com indiferença ao bem jurídico é desinfluente aspecto interno, inverificável in loco na mente humana.

c) Nos casos das condutas do apostador “X”; do armador e sua crença; e do experiente advogado, impõe-se a mesma resposta, isto porque também os três – apostador, armador e advogado – ao agirem, criaram conscientemente um perigo real e intenso aos bens jurídicos, apto a causar o resultado proibido.

Ou pilotar motocicleta, em via púbica, com olhos vendados; liberar conscientemente a navegação de navio velho e com defeitos de fabricação; e juntar aos autos, mesmo a experiência advocatícia dizendo que não, documento falso são condutas normalmente praticadas por quem razoável, sensato e observador de normas jurídicas?

VII – Conclusão

VII.1 – Reforma interpretativa de Puppe

A reforma que Hans Welzel procedeu, quanto à localização do dolo, pode ser somada à reforma interpretativa do dolo, a cargo da professora Ingeborg Puppe.

A primeira – a reforma welzeliana – transportou o dolo da culpabilidade para a tipicidade; a segunda – a reforma puppeana – retira das mãos do agente a decisão quanto à afirmação do dolo em sua conduta, para colocá-la, com exclusividade, nas mãos do direito penal e de seus aplicadores.

É Puppe que traça parâmetros objetivos para que o direito penal afirme, à vista do caso concreto, se dolosa – ou não – uma conduta.

Nas palavras da professora de Bonn:

1) “A proposição ‘dolo é vontade’ é correta não em sentido descritivo-psicológico, mas sim em sentido normativo-atributivo23;

2) “O dolo, como juízo de imputação, deve ser determinado não de modo descritivo e sim normativo24;

3) “A razão de se imputar a um autor um resultado como consequência de sua vontade, de seu querer, não está no fato de que o autor realmente o tenha querido, mas sim de que o autor tenha querido um estado de coisas que está vinculado de um modo específico a este resultado25;

4) “Mero dado interno do autor” é “incapaz de ser verificado por métodos empíricos e inacessível à prova judicial26;

5) “A instância competente para decidir a respeito do significado jurídico do perigo reconhecido pelo autor não é ele próprio, mas sim o direito27;

6) “O dolo é a criação voluntária de um perigo doloso28;

7) “Um perigo será um perigo doloso, que fundamenta o dolo, quando ele representar, em si, um método idôneo para a provocação do resultado29;

8) “Uma vez que a teoria do perigo doloso exige a utilização de um método genericamente idôneo para provocar o resultado, não faz sentido para ela a distinção entre propósito, dolo direto e dolo eventual. (…) As três formas de dolo não designam diversos graus do injusto subjetivo ou da culpabilidade, e sequer têm influência na aplicação da pena. (…) A tripartição conceitual do dolo deve, portanto, ser abandonada30;

9) “Para a teoria normativa da vontade, que defendo, interessa apenas que o autor tenha conhecimento de um perigo intenso de que a vítima morra caso ele aja, ou caso ele alcance seu objetivo, perigo esse cuja intensidade deve ser tal que uma pessoa racional praticaria a ação apenas na hipótese de que ela estivesse de acordo com a morte da vítima. Se o autor tem conhecimento de um tal perigo, não poderá depois eximir-se, alegando que não estava de modo algum de acordo com a morte da vítima, mas que ignorou esta possibilidade, ou que esperava que apenas desta vez tudo acabasse bem31;

10) “Apenas quando o perigo é reduzido, pode o direito mostrar-se compreensivo com o autor que diga para si mesmo um ‘tudo vai acabar bem’32.

VII.2 – Alguém-que-não-pode

Em meu “Verdade Processual Penal: Limitações à Prova”, sob a rubrica ‘Verdade e razão humana’, afirmei:

No ato de conhecer, deve, então, o ser humano ter consciência de suas intrínsecas limitações.

Afinal, “que é o homem?”, pergunta Eric-Emmanuel Schmitt (2002, p. 14), pela boca de um Jesus adulto, para responder em seguida: “É simplesmente alguém-que-não-pode… Que-não-pode saber tudo. Que-não-pode fazer tudo. Que-não-pode não morrer”33.

Assim, mesmo que no futuro se logre fidedigno mecanismo de leitura e registro do que pensa, sente e deseja a mente humana – uma verdadeira “máquina da verdade” – nenhuma contribuição haveria ao processo de determinação do dolo, isto porque, para a fixação da atuação dolosa, importante é exclusivamente o que o agente faz, melhor dizendo, o que o agente fez (realização do tipo penal objetivo), e não o que pensou, sentiu ou desejou, em sua interioridade psíquica, ao fazer o que fez.

Na forma posta por Puppe: “Algo que se considere bem desagradável pode ser querido, como um mal necessário34;

Ou – acrescento – como consequência da insensatez ou irrazoabilidade da decisão de agir.

1Averiguar, constatar, descobrir, encontrar, visualizar etc.

2PUPPE, Ingeborg. Dolo eventual e culpa consciente. Tradução: Luís Greco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 58, p. 118.

3Os juízes não perguntam mais ao autor se ele assumiu o risco do resultado, se a ele anuiu ou o aceitou. O que o autor responderia, bem assistido por seu advogado, eles já sabem”. (PUPPE, Ingeborg. Dolo eventual e culpa consciente. Tradução: Luís Greco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 58, p. 128).

4A formação da opinio delicti, para o promotor de justiça; a sentença final, para o juiz.

5A instância competente para decidir a respeito do significado jurídico do perigo reconhecido pelo autor não é ele próprio, mas sim o direito” (PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Tradução, introdução e notas: Luís Greco. Barueri, SP: Manole, 2004, p. 61-62).

6OXMAN, Nicolás. Sistemas de imputación subjetiva em derecho penal: el modelo angloamericano. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2016, p. 31.

7Nicolás Oxman informa que a literatura alemã, forrada em Binding, aceita ainda a dicotomia: normas primárias (mandatos e proibições) e normas secundárias (preceitos dirigidos aos encarregados da solução de conflitos no plano institucional), in OXMAN, Nicolás, op. cit. p. 33.

8OXMAN, Nicolás, op. cit. p. 33.

9Por óbvio, sobre base firme e de modo sensato e racional, ao final do processo de construção (da verdade ou do dolo), que, uma vez finalizado, poderá concluir acerca do fato: verdadeiro ou falso; doloso ou não.

10DU SAUTOY, Marcus. O que não podemos saber: viagem aos limites do conhecimento. Tradução de Jorge de Lima. 1. ed., Lisboa: Editorial Bizâncio, 2018, p. 11.

11Op. cit., p. 18.

12Op. cit., p. 18-19.

13Op. cit., p. 20.

14Op. cit., p. 11.

15Op. cit., p. 24.

16WOLF, Eduardo. Sina escrita na pele. Revista Veja, edição 2604 – ano 51 – n. 42, p. 102.

17SPOLANSKY, Norberto; CARRIÓ, Alejandro; GARCÍA, Luis. Casos y problemas de derecho penal. Jurisprudencia de la Corte Suprema de la Nación. Buenos Aires: Lerner Editores Asociados, 1986, p. 59.

18 CLIFFORD, W. K. A ética da crença, in Murcho, Desidério, org., A ética da crença. Lisboa: Editorial Bizâncio, 2010, p. 97-98.

19PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Tradução, introdução e notas: Luís Greco. Barueri, SP: Manole, 2004, p. 113.

20PÉREZ, Enrique Octavio Baeza. El dolo y su prueba em el proceso penal. México, D.F.: Ubijus Editorial, 2015, p. 103-104.

21PUPPE, Ingeborg. Dolo eventual e culpa consciente. Tradução: Luís Greco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 58, p. 131-132.

22PUPPE, Ingeborg. Dolo eventual e culpa consciente. Tradução: Luís Greco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 58, p. 131-132.

23PUPPE, Ingeborg. Dolo eventual e culpa consciente. Tradução: Luís Greco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 58, p. 130.

24Op. cit, p. 130.

25Op. cit, p. 130.

26PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Tradução, introdução e notas: Luís Greco. Barueri, SP: Manole, 2004, p. 51.

27PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Tradução, introdução e notas: luís Greco. Barueri, SP: Manole, 2004, p. 62.

28Op. cit, p. 123.

29Op. cit, p. 82.

30Op. cit, p. 142.

31PUPPE, Ingeborg. Dolo eventual e culpa consciente. Tradução: Luís Greco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 58, p. 118.

32Op. cit. p. 119.

33ARAÚJO, José Osterno Campos de Araújo. Verdade processual penal: limitações à prova. 1. ed (ano 2005), 5ª reimpr./Curitiba: Juruá, 2010, p. 44.

34PUPPE, Ingeborg. Dolo eventual e culpa consciente. Tradução: Luís Greco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 58, p. 115.

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