Embora direito penal e processo penal sejam disciplinas autônomas e inconfundíveis, visto que, simplificadamente, o direito penal define os crimes e comina as penas, enquanto o processo penal estabelece o modo como se dará a apuração dos delitos e a aplicação das penas, nem sempre é fácil fixar os limites de um e outro.
É que, se, como afirmamos, a interpretação constitui a própria realização do direito, e não a constatação de um direito preexistente, razão pela qual o direito não existe a priori, mas a posteriori, segue-se, então, que essa realização se dá por meio do processo penal, que cria as condições de legitimação/deslegitimação da jurisdição penal. Como dizia Calmon de Passos, “não há um direito independente do processo de sua enunciação, o que equivale a dizer-se que o direito pensado e o processo do seu enunciar fazem um.”1
O processo penal é, em suma, o modo constitucionalmente legítimo de realização do direito penal.
A função essencial do processo é criar, portanto, as condições de realização de um direito justo ou ao menos conforme as garantias de um direito penal democrático.2Como observa Roxin, trata-se de um processo estruturado dialeticamente, que envolve interesses contrapostos da acusação e da defesa, e que visa a fins complexos: a condenação do culpado, a proteção do inocente, a legalidade do procedimento e a estabilidade jurídica da decisão.3
Justamente por isso, os princípios que informam o direito penal (irretroatividade, inclusive) hão de igualmente valer para o processo penal, indistintamente. Também por isso, os constrangimentos previstos na legislação processual jamais poderão exceder àqueles que podem resultar da própria condenação, sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade e conversão do processo em pena antecipada. Assim, não cabe, por exemplo, a prisão provisória do réu se a infração penal a que responde não comina pena privativa da liberdade ou admite a substituição por pena restritiva de direito (CPP, art. 283).
Ademais, o princípio in dubio pro reo, tradicionalmente associado à valoração da prova no processo penal, é também aplicável ao direito penal, porque constitui uma dimensão do princípio da presunção de inocência. Consequentemente, existindo fundada dúvida, por exemplo, sobre se se trata de crime doloso ou culposo, de atos preparatórios ou executórios, se existe ou não nexo causal, se ocorreu ou não prescrição etc., haverá de prevalecer a tese mais favorável ao réu.
Embora o direito penal e o processo formem um todo indissociável, não é (como regra) função do processo penal (democrático) prevenir, em caráter geral ou especial, novos delitos, porque tal finalidade pressupõe um agente declarado culpado de crime segundo o devido processo constitucional. Enfim, não é possível, em princípio, falar de prevenção (positiva ou negativa, geral ou individual) relativamente a alguém que a lei tem como presumido inocente.4
Exceção a isso é a prisão preventiva para evitar a reiteração de crimes (garantia da ordem pública), dado o perigo concreto de que tal ocorra. Com efeito, o que de fato em está em causa, relativamente à prisão provisória de membros de organizações criminosas, delinquentes habituais, multirreincidentes etc., é a segurança dos indivíduos e a proteção social, típica finalidade político-criminal que pressupõe sentença penal condenatória.5
O mesmo deve ser dito, mutatis mutandis, das medidas cautelares pessoais e reais decretadas para proteger a vítima ameaçada, fazer cessar a atividade criminosa, evitar novos crimes ou exercer algum controle sobre o réu fora da prisão (CPP, art. 319). Assim também ocorre com certas formas de composição previstas em lei, a exemplo da transação penal, suspensão condicional do processo etc.
Por fim, também a execução penal, última etapa de realização do direito penal, há de reger-se pelos princípios constitucionais do direito e processo penal, pois o direito, apesar de dividido em ramos, pretende ser um só. Assim, modificações legislativas criadas em desfavor do condenado não podem atingir as condenações por crimes cometidos anteriormente à sua entrada em vigor, sob pena de violação ao princípio da irretroatividade da lei mais severa (v. g., uma lei que abolisse o livramento condicional deveria ser aplicada somente aos crimes cometidos posteriormente à sua vigência).
Em conclusão, e contrariamente à doutrina e à jurisprudência ainda hoje majoritárias, temos que os princípios que informam o direito penal hão de também valer para o direito processual penal e execução penal, de modo a conferir-lhes tratamento unitário e conforme a Constituição.
É que, apesar da distinção, direito penal, processo penal e execução penal constituem momentos de um mesmo fenômeno, que é o exercício do poder punitivo estatal, destinados a legitimar/deslegitimar uma forma especial, real e simbólica de violência: a pena.
1 Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Revista de processo, n° 102. São Paulo: RT, 2001, ano 26, abril-junho de 2001.
2 De acordo com Pontes de Miranda, “a finalidade preponderante, hoje, do processo é realizar o Direito, o direito objetivo, e não só, menos ainda precipuamente, os direitos subjetivos (…). O processo não é mais que do que o corretivo da imperfeita realização automática do direito objetivo. Daí dizerem alguns autores que é meramente instrumental. Tratado das ações, tomo I. Campinas, SP: Bookseller, 1998, p. 245/246.
3 Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2000, p.4.
4 De modo diverso, Jürgen Wolter e Georg Freund. El sistema integral del Derecho penal – delito, determinación de la pena y processo penal. Barcelona: Marcial Pons, 2004. Para uma crítica a esses autores, Fernando Díaz Cantón. Vicisitudes de la cuestión de la autonomia o dependencia entre el Derecho penal y el Derecho procesal penal. In Estudios sobre Justicia Penal – Homenaje al professor Julio B.J.Maier. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2005.
5 Parte da doutrina tem que a prisão preventiva para garantia da ordem pública é inconstitucional, por violação ao princípio da presunção de inocência. Ferrajoli propõe inclusive, a abolição pura e simples de toda e qualquer prisão provisória (Derecho y razón. Madrid: Editorial Trotta, 1995, p. 559/561). Não estamos de acordo com isso. É que, para reconhecer essa ideia extrema, teríamos de partir, lógica e coerentemente, de uma premissa igualmente extrema, isto é, que o princípio da presunção de inocência é absoluto e não comporta uma tal exceção. Ocorre que, se essa tese estiver correta, teríamos de concluir, logicamente, que toda e qualquer medida cautelar pessoal ou real, e não só a prisão preventiva para evitar a reiteração de delitos e semelhantes, seria inconstitucional, já que sempre implicaria um juízo provisório de culpa e, pois, uma relativização (indevida) do princípio da não culpabilidade. Ademais, se a prisão preventiva, nesse caso específico, tem ou não natureza cautelar, isso depende do conceito de cautelaridade de que se parte. Finalmente, se entendermos que casos tão extremos não legitimam a prisão provisória, é improvável que as demais hipóteses legais (conveniência da instrução criminal etc.) possam fazê-lo. Não obstante isso, é certo que na prática é frequente o abuso da prisão preventiva a pretexto de garantir a ordem pública.