PARECER DE SAMANTHA CHANTAL DOBROWOLSKI
Tribunal Regional Federal da 3ª Região – Segunda Turma
Apelação Criminal nº
Apelante:
Apelado:
Relator:
PRR3ª REGIÃO-MANIFESTAÇÃO-21300/2014
P A R E C E R
Apelação Criminal. Art. 273, § 1º-B, I, do Código Penal. Produtos farmacêuticos sujeitos a controle especial. Inconstitucionalidade da norma. Aplicação da pena do art. 33 da Lei 11.343/06. Materialidade e autoria delitivas comprovadas. Dolo evidenciado. Razoabilidade quanto à aplicação do preceito secundário previsto ao tráfico de entorpecentes (exceto quanto à pena de multa e circunstâncias judiciais e legais), diante da inconstitucionalidade da pena privativa de liberdade abstratamente cominada no tipo penal do art. 273 do CP (prequestionamento da matéria, tendo em vista que já rejeitada a arguição de inconstitucionalidade pelo Órgão Especial desta C. Corte Regional). Princípio da insignificância. Descabimento. Pena-base fixada no mínimo legal. Impossibilidade de aplicação aquém do piso. Inteligência do art. 59, inciso II, do CP. Parecer pelo total desprovimento do recurso do réu.
Colenda Turma,
Doutos Julgadores,
A foi denunciado pela prática, em tese, da conduta descrita no artigo 273, § 1º-B, I, do Código Penal.
Consta na denúncia de fls. 02/03 que(…) o denunciado foi surpreendido ao importar medicamentos sem registro, que a lei exige, pelo órgão de vigilância sanitária competente. A, que retornava de Foz do Iguaçu – divisa com o Paraguai –, viajava em ônibus quando foi abordado por policiais militares rodoviários, os quais procederam à revista pessoal, logrando encontrar com o réu diversos medicamentos – a saber: 100 (cem) comprimidos de “Rheumazin Forte”; 850 (oitocentos e cinquenta) comprimidos de “Cytotec”; 400 (quatrocentos) comprimidos de “Pramil”; 160 (cento e sessenta) comprimidos de “Viagra”; 40 (quarenta) comprimidos de “Eroxil”; e 200 (duzentos) comprimidos de “Cialis”.
Conforme consta do laudo de exame em substâncias (fls. 45/46), “verificou-se que os produtos descritos nos itens I-A, I-B, I-C e 1-E não possuem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), não podendo, portanto, ser importados ou comercializados em território nacional” (Laudo de exame em substâncias nº 0308/07-INC, fls. 45 – grifou-se). Trata-se dos seguintes medicamentos: “Rheumazin Forte” (item I-A), de origem paraguaia; “Cytotec” (item I-B), de origem italiana; “Pramil” (item I-C), de origem paraguaia; e “Eroxil” (item I-E).
Também consta da inicial que o medicamento “Cytotec” é comumente utilizado como abortífero, embora indicado como antiulceroso.
A denúncia foi recebida em 27 de fevereiro de 2007 (fls. 62).
A defesa prévia encontra-se juntada às fls. 180/181.
Foi proferida decisão concessiva de liberdade provisória às fls. 174/176.
Procedeu-se à oitiva das testemunhas de acusação (fls. 266 e 267), testemunha de defesa (fls. 306) e do réu (fls. 142).
Foram apresentadas alegações finais da acusação (fls. 340/349) e da defesa (fls. 394/403).
O MPF aditou a denúncia (fls. 413/416), imputando ao acusado também a prática do delito previsto no § 1º, do art. 273, do CP, qual seja, importar medicamentos falsificados (Cialis e Viagra).
Às fls. 421/426 encontra-se juntada a resposta à nova imputação, tendo reiterado, na oportunidade, os termos das alegações finais de fls. 394/403.
O aditamento à denúncia foi recebido em 22/03/2010 (fls. 429/429v).
Diante do não comparecimento do réu à audiência de instrução e julgamento, foi decretada sua prisão preventiva, bem como determinada a suspensão do processo e do prazo prescricional (fls. 474/474v).
O Juízo de primeiro grau, às fls. 508, deferiu o pedido de revogação de prisão preventiva efetivado pelo réu (fls. 496/497).
Interrogatório do réu às fls. 542 (mídia audiovisual às fls. 543).
O MPF e o réu apresentaram alegações finais, respectivamente, às fls. 548/551 e 569/570.
Após regular processamento do feito, foi proferida a sentença de fls. 572/575v, pela qual o Juízo Federal da 1ª Vara da Justiça Federal de Tupã/SP, julgando parcialmente procedente a pretensão punitiva formulada na denúncia, condenou o acusado, pela prática do delito previsto no artigo 273, § 1º-B, I, do CP, à pena privativa de liberdade de 05 (cinco) anos de reclusão, em regime inicial semiaberto, e ao pagamento de 30 (trinta) dias-multa, cada qual fixado em 1/6 (um sexto) do salário mínimo.
O Juízo de primeiro grau, julgando desproporcional a pena mínima cominada no preceito secundário no tipo penal do art. 273, § 1º-B, do CP, aplicou a sanção prevista para o crime de tráfico de entorpecentes (art. 33 da Lei 11.343/06).
A pena-base foi fixada no mínimo legal, ou seja, em 05 (cinco) anos de reclusão e 30 (trinta) dias-multa,. Tal pena prosperou a definitiva ante a ausência, na segunda fase da dosimetria, de atenuantes ou agravantes, bem como devido à inexistência, na terceira fase, de causas especiais de aumento ou diminuição de pena.
A sentença foi publicada em 28 de setembro de 2012 (fls. 576).
Irresignado, o acusado interpôs tempestivamente recurso de apelação às fls. 583 e 584, o qual foi recebido às fls. 587.
Nas razões de recurso de fls. 618/621, a defesa do apelante pleiteia a sua absolvição, em decorrência da pequena quantidade de medicamentos apreendidos na posse do acusado. Afirma que, por não ter sido a ação dotada de periculosidade social, e, ainda, diante do reduzido grau de reprovabilidade da conduta, deve ser aplicado o princípio da insignificância. alegando que o quantum da pena é excessivo,
Não houve recurso por parte da acusação.
Contrarrazões do MPF às fls. 635/641.
É o relatório do necessário.
– II –
Inicialmente, insta salientar que a materialidade e a autoria delitivas estão sobejamente comprovadas nos autos, pelos seguintes documentos e depoimentos: (i) Auto de Prisão em Flagrante (fls. 05/06); (ii) depoimentos das testemunhas de acusação (fls. 266 e 267) e da testemunha de defesa (fls. 306); (iii) interrogatório do réu (fls. 140/142, 542 e mídia de fls. 543); (iv) Auto de Apresentação e Apreensão juntado às fls. 11/12; e (v) Laudos de Exame em Substância nº 0308/07-INC (fls. 122/137) e nº 682/07-INC (fls. 190/195).
Com efeito, foi flagrado por policiais rodoviários, em São José dos Campos, em ônibus da empresa “Viação Planalto”, oriundo de Foz do Iguaçu, divisa com o Paraguai, e com destino a Goiânia/GO, na posse de 100 (cem) comprimidos de “Rheumazin Forte”; 850 (oitocentos e cinquenta) comprimidos de “Cytotec”; 400 (quatrocentos) comprimidos de “Pramil”; 160 (cento e sessenta) comprimidos de “Viagra”; 40 (quarenta) comprimidos de “Eroxil”; e 200 (duzentos) comprimidos de “Cialis”.
De acordo com o Laudo de Exame em Substância (Laudo nº 0308/07-INC – fls. 122/137) e o Laudo de Exame em Substância (Laudo nº 680/07-INC – fls. 190/195) – complementar ao primeiro – o medicamentos CIALIS, descrito no item I-F, assim como o medicamento VIAGRA, descrito no item I-D, são falsificados (fls. 132 e 194). Quanto aos demais (CYTOTEC, PRAMIL e EROXIL), trata-se de medicamentos que não possuem registro no órgão de vigilância sanitária.
A respeito do CYTOTEC, descrito no item I-B e cujo fabricante é a empresa Continental Pharma, estabelecida na Itália, foi determinada sua apreensão em todo território brasileiro, como medida de interesse sanitário, pela Resolução-RE 1232, de 30.07.03, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, pois não há registro do medicamento e autorização de funcionamento da empresa na referida Agência.
Especificamente sobre a substância MISOPROSTOL, que integra o medicamento CYTOTEC, os peritos assim se posicionaram no Laudo de Exame em Substâncias (Laudo nº 0308/07-INC, fls. 122/137):
– I –
“O misoprostol encontra-se relacionado na LISTA DAS OUTRAS SUBSTÂNCIAS SUJEITAS A CONTROLE ESPECIAL – LISTA C1 (Sujeitas a Receita de Controle Especial em duas vias), da Resolução RDC nº 202 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, de 01.11.06, em conformidade com a Portaria nº 344-SVS/MS, de 12.05.98, republicada no DOU de 01.02.99.
A Resolução supracitada também contém o seguinte adendo na LISTA-C1 sobre o misoprostol:
‘4) só será permitida a compra e uso do medicamento contendo a substância MISOPROSTOL em estabelecimentos hospitalares devidamente cadastrados junto a Autoridade Sanitária para este fim.’
Devido a seus efeitos, o misoprostol tem sido usado indevidamente para induzir aborto em gestantes, havendo relato de alguns casos fatais pelo uso impróprio. Quanto aos demais produtos questionados, não foi encontrado na literatura qualquer relato de que tenha efeito abortivo.” (fls. 130/131) (grifou-se)
Quanto à autoria delitiva do réu, esta também restou comprovada nos autos, por meio das declarações prestadas pelo próprio acusado, tanto em sede policial (fls. 08/09), como, posteriormente, em juízo (mídia digital às fls. 543). Nestas ocasiões, o réu sustentou que viajou de Goiânia/GO para Foz do Iguaçu/PR, para localizar uma pessoa originária de Goiânia/GO que lhe devia dinheiro – cerca de R$ 1.800,00 (mil e oitocentos reais) e que estaria em Foz do Iguaçu, pois ficou sabendo que ele foi visto nessa cidade em local próximo ao Hotel Alvorada. Alegou que, chegando lá, não localizou a referida pessoa. Afirmou que tomou um ônibus em Foz do Iguaçu/PR para Cascavel/PR, e que, nesta última cidade, enquanto aguardava atendimento no guichê da empresa “Viação Planalto”, foi abordado por um homem que lhe ofereceu pagar suas passagens, e mais R$ 500,00 (quinhentos reais), a fim de que transportasse uma mercadoria de Cascavel/PR para Goiânia/GO, tratando-se do mesmo homem que lhe entregou os remédios a serem transportados. Alegou, ainda, que a referida pessoa lhe disse que os medicamentos não possuíam nota fiscal, sugerindo-lhe que utilizasse o “meião” para transportar os comprimidos.
O intuito doloso restou suficientemente demonstrado nos autos, visto que se utilizou de vestimenta adequada para o fim de ocultar os medicamentos, ante uma possível abordagem policial.
A versão sustentada, de que teria se deslocado de Goiânia/GO para Foz do Iguaçu/PR tão somente para localizar um devedor, não se coaduna com as provas dos autos, conforme ponderou o Juízo “a quo”:
“A versão de defesa do réu não convence. A alegação de ter se deslocado de Goiânia/GO para Foz do Iguaçu/PR (mais de 1.300 Km), a fim de localizar pessoa (de Goiânia), de nome Pedro (sem precisar qualificação), nas proximidades de hotel (Hotel Alvorada), para receber certa quantia (R$ 1.800,00), sem precisar e comprovar detalhes da empreitada, ônus que lhe cabia, fere a ingenuidade, mesmo porque o réu não possui profissão definida, vivendo do comércio de mercadorias (fl. 306), já tendo sido preso em outras ocasiões por descaminho, inclusive pelo crime ora em análise.
Da mesma forma inaceitável a versão de que os medicamentos foram repassados por terceira pessoa, em território nacional. Como poderia o réu aceitar o mero transporte solicitado por indivíduo absolutamente desconhecido, que o interpelou na rodoviária da cidade de Cascavel/PR, comprometendo-se a levar medicamentos até Goiânia/GO? Tal versão é inaceitável, considerando sobretudo a circunstância de o réu se dedicar ao comércio de mercadorias adquiridas no Paraguai (segundo depoimento judicial, onde esteve pelo menos por oito vezes, para adquirir brinquedos), com inarredável conhecimento dos meandros e dos cuidados necessários para o exercício da atividade, que não poderia ceder a rápido e ocasional pedido de terceiro absolutamente desconhecido.
Em realidade, o réu de forma consciente e deliberada, deslocou-se de Goiânia/GO até o vizinho Paraguai, introduzindo em território nacional medicamentos, tal qual revela o conjunto probatório, notadamente as inaceitáveis versões de defesa apresentadas, o seu histórico de antecedentes penais de mesma índole (fls. 407/408) e a origem estrangeira dos fármacos – rheumazin forte (Paraguai), cytotec (Itália), pramil (Paraguai) e eroxil (Paraguai) – fls. 122/137.” (fls. 573v – grifou-se)
Quanto ao pedido de aplicação do princípio da insignificância ao crime previsto no artigo 273, § 1º-B, inciso I, do Código Penal, este também não deve prosperar.
A tutela jurídica incide sobre a saúde pública, e a quantidade e potencialidade lesiva dos medicamentos portados pelo réu não pode ser considerada irrelevante no caso em epígrafe. Conforme demonstrado nos autos, o réu importou do Paraguai grande quantidade de medicamentos – a saber: 100 (cem) comprimidos de “Rheumazin Forte”; 850 (oitocentos e cinquenta) comprimidos de “Cytotec”; 400 (quatrocentos) comprimidos de “Pramil”; 160 (cento e sessenta) comprimidos de “Viagra”; 40 (quarenta) comprimidos de “Eroxil”; e 200 (duzentos) comprimidos de “Cialis”. Nesta diretriz, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
HABEAS CORPUS. PENAL. PACIENTE CONDENADO PELO CRIME DE FURTO SIMPLES. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. REPROVABILIDADE E OFENSIVIDADE DA CONDUTA DO AGENTE. REITERAÇÃO CRIMINOSA. REINCIDÊNCIA. ORDEM DENEGADA. I – A aplicação do princípio da insignificância, de modo a tornar a ação atípica, exige a satisfação, de forma concomitante, de certos requisitos, quais sejam, conduta minimamente ofensiva, ausência de periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e lesão jurídica inexpressiva. (…) V – Habeas corpus denegado. (STF, HC 115319/MG, HC – HABEAS CORPUS, Min. Relator Ricardo Lewandowski, Órgão julgador: segunda turma, publicação: 17/06/2013) (grifou-se)
No presente caso, nenhum dos requisitos encontra-se presente.
Sendo assim, comprovadas a materialidade e autoria delitivas, bem como o dolo do acusado, e, ainda, estando demonstrada a tipicidade formal e material, a manutenção da condenação do réu pela prática do delito previsto no art. 273, § 1º-B, I, do Código Penal é medida que se impõe.
Passa-se, a seguir, ao exame da (in)constitucionalidade do preceito secundário do art. 273, § 1º-B, I, do CP, e, posteriormente, à análise das razões recursais atinentes à dosimetria da pena.
As modificações trazidas pela lei nº. 9.677/98 ao art. 273 do Código Penal carecem de constitucionalidade, tendo em vista a afronta ao princípio da proporcionalidade.
Estabelecia a antiga redação do tipo penal:
“Alteração de substância alimentícia ou medicinal
Art. 273. Alterar substância alimentícia ou medicinal:
I – modificando-lhe a qualidade ou reduzindo-lhe o valor nutritivo ou terapêutico;
II – suprimindo, total ou parcialmente, qualquer elemento de sua composição normal, ou substituindo-o por outro de qualidade inferior:
Pena – reclusão, de um a três anos, e multa, de um a cinco contos de réis.
§ 1° Na mesma pena incorre quem vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, entrega a consumo a substância alterada nos termos deste artigo.” (grifou-se)
A novel legislação determinou a seguinte redação:
“Art. 273 – Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais:
Pena – reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.
§ 1º – Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado.
§ 1º-A – Incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico.
§ 1º-B – Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições:
I – sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente;
II – em desacordo com a fórmula constante do registro previsto no inciso anterior;
III – sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização;
IV – com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade;
V – de procedência ignorada;VI – adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente.”
Como se vê, a mudança legislativa acarretou a adição de novas condutas típicas. Contudo, salta aos olhos a exasperação da pena em abstrato do tipo penal em análise, que passou de 01 (um) a 03 (três) anos, para 10 (dez) a 15 (quinze) anos, cuja aplicação para determinados casos, como o presente, se mostra absurda.
Deve-se assentar, de início, que, embora o bem jurídico tutelado pelo tipo penal seja de suma importância – a saúde pública – nota-se que a mudança empreendida pelo legislador não foi bem sucedida.
Diversas condutas delitivas que violam outros bens jurídicos caros à sociedade possuem reprimendas em patamar muito inferior ao do tipo penal em questão, a saber: homicídio simples, art. 121, do CP (vida), estupro simples, art. 213, caput, do CP (dignidade sexual), extorsão mediante sequestro, art. 159, caput, do CP (liberdade individual). Pode-se inferir facilmente, com esta breve comparação, o grau de incompatibilidade lógica e teleológica deste dispositivo frente ao ordenamento jurídico pátrio.
Neste diapasão, vê-se que o art. 273 do Código Penal, com as mudanças advindas da Lei nº. 9.677/98, reveste-se de patente inconstitucionalidade por afronta ao princípio da proporcionalidade, já que as bases que alicerçaram a majoração da pena em abstrato do citado tipo penal são irreais, ou, ainda que existentes, em total descompasso com uma visão sistêmica de ordem jurídica.
Nesta linha de pensamento, correto o entendimento que defende a aplicação às condutas do tipo penal do artigo 273 do Código Penal, das penas determinadas pelo artigo 33, caput, da Lei nº. 11.343/061, a qual estabelece pena corporal de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos de reclusão, de modo a dirimir as violações causadas pelo decisum atacado em sede recursal. Para tanto, note-se a similaridade entre os bens jurídicos protegidos pelos dispositivos em apreço. Nesta linha de pensamento, correto o entendimento, observado em recentes decisões do C. STJ, que defende a aplicação às condutas do tipo penal do art. 273 do Código Penal, das penas determinadas pelo art. 33, caput, da Lei nº. 11.343/2006, que estabelece pena corporal de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos de reclusão. Confiram-se as mencionadas decisões do C. STJ que seguem essa mesma interpretação em casos similares ao presente:
..EMEN: HABEAS CORPUS. CRIME DE FALSIFICAÇÃO, CORRUPÇÃO, ADULTERAÇÃO OU ALTERAÇÃO DE PRODUTO DESTINADO A FINS TERAPÊUTICOS OU MEDICINAIS (ART. 273, § 1º-B, V, DO CP). MITIGAÇÃO DO PRECEITO SECUNDÁRIO. OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. CLÁUSULA DE RESERVA DE PLENÁRIO. OBSERVÂNCIA. ARGUIÇÃO DE INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. ACOLHIMENTO. SUBMISSÃO À APRECIAÇÃO DA CORTE ESPECIAL. SÚMULA VINCULANTE 10/STF. 1. A aplicação da pena prevista para o delito inscrito no art. 273, § 1º-B, do Código Penal mostra-se excessivamente desproporcional, contudo, para que que a Sexta Turma afaste a incidência do preceito secundário da norma, cumpre antes, em respeito à cláusula de reserva de plenário (art. 97 da CF) e tendo em consideração o disposto na Súmula Vinculante 10/STF, a declaração expressa da Corte Especial acerca da sua eventual inconstitucionalidade. 2. Acolhimento da arguição de inconstitucionalidade, com a devida remessa dos autos à Corte Especial, conforme a previsão dos arts. 97 da Constituição Federal, 480 e 481 do Código de Processo Civil e 200 do RISTJ, para que julgue o incidente. ..EMEN:
(HC 2012/0076490-1 (239.363), SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, STJ – SEXTA TURMA, DJE DATA:18/12/2012 ..DTPB:. – grifou-se)
“PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 126/STJ. AUSÊNCIA DE INTERPOSIÇÃO SIMULTÂNEA DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONTRARIEDADE AOS ARTS. 1º, 53, 59, II, E 273, § 1º e 1º-B, I e VI, DO CP. NÃO OCORRÊNCIA. MITIGAÇÃO DO PRECEITO SECUNDÁRIO DO ART. 273 DO CP. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. RECURSO ESPECIAL ADESIVO. OFENSA AO ART. 44 DO CP. OCORRÊNCIA. POSSIBILIDADE DE SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. RECURSO ESPECIAL DO PARQUET A QUE SE NEGA PROVIMENTO E APELO ADESIVO A QUE SE DÁ PROVIMENTO, PARA SUBSTITUIR A PENA DA RECORRENTE, ALTERANDO-SE, DE OFÍCIO, O REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA PARA O ABERTO. (…) 2. A Lei 9.677/98, ao alterar a pena prevista para os delitos descritos no artigo 273 do Código Penal, mostrou-se excessivamente desproporcional, cabendo, portanto, ao Judiciário promover o ajuste principiológico da norma. 3. Tratando-se de crime hediondo, de perigo abstrato, que tem como bem jurídico tutelado a saúde pública, mostra-se razoável a aplicação do preceito secundário do delito de tráfico de drogas ao crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais. 4. O Superior Tribunal de Justiça, por diversas vezes, já assentou a possibilidade de início do cumprimento da pena em regime aberto, bem como de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, àqueles que tenham praticado crime de tráfico ilícito de entorpecentes ou outro crime hediondo, antes da entrada em vigor das Leis 11.343/06 e 11.464/07. 5. Recurso Especial do Ministério Público não conhecido, dando-se provimento ao Apelo adesivo de Vilma Maria Segalin, para determinar ao Juízo da Vara das Execuções a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, concedendo-se, de ofício, o regime aberto para cumprimento da pena.” (STJ, Resp 915442/SC, Proc. nº 2007/0010944-9, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, 01/02/2011) (grifou-se)
Com efeito, o legislador está adstrito ao princípio da proporcionalidade, o qual é uma decorrência do princípio geral e maior da isonomia, que tem sede constitucional. Deles infere-se a obrigatoriedade de ser dispensado, pelo legislador, igual tratamento para situações idênticas, sobretudo em sede penal. Quando isto não ocorre, cabe ao Judiciário proceder à devida adequação, nos casos concretos, a fim de preservar os direitos e garantias constitucionalmente estabelecidos.
A este respeito, clara é a explicação do Professor Clemerson Merlin Clève, no artigo “Contribuições Previdenciária. Não-recolhimento. Art. 95, “d” da Lei 8.212/91. Inconstitucionalidade”, publicado na RT 736/503-532 (fev. de 1997), a saber:
“O excesso da norma penal apontada, a sua irracionalidade, a falta de justa medida decorre também da pena prevista para a conduta definida como criminosa. Deveras, ao crime previsto no art. 2, II, da Lei 8137/90, comina-se pena de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e multa, enquanto para aquele previsto no art. 95, “d”, da Lei 8212/91 comina-se pena de reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa. Não obstante, os tipos são os mesmos, distinguindo-se apenas na circunstância de que o segundo aplica-se unicamente a contribuições previdenciárias, enquanto o primeiro aplica-se aos demais tributos, inclusive as restantes contribuições. O bem tutelado pela segunda lei penal não é superior àquele tutelado pela primeira (aliás é, rigorosamente, o mesmo). Parece correto, portanto, afirmar que é descabida a previsão de penas distintas. Daí porque o fato de a segunda lei prever pena mais exasperada, implica quebra do princípio da proporcionalidade na dimensão da justa medida, da razoabilidade e da racionalidade. Aliás, a simples circunstância de prever pena injustificadamente (desde o prisma constitucional) diferenciada para o crime de não-recolhimento de contribuições previdenciárias demonstra o aproveitamento utilitário da lei penal pelo Estado como remédio (desmedido, reitere-se) para a séria crise pela qual passa o sistema previdenciário. Há, pois, no comportamento estatal, excesso, abuso, desvio de poder legislativo, desafiando, então, resposta judicial” (p. 525).
Desta forma, exsurge cristalina a inconstitucionalidade da pena mínima em abstrato estatuída no art. 273, § 1º-B do CP, porque, ao violar a proporcionalidade entre intensidade da sanção devida à lesão perpetrada, e a natureza do bem jurídico protegido, agravando irrazoavelmente a situação do agente que nela incide, em relação aos agentes que realizam tráfico internacional de entorpecentes, ela fere a própria igualdade constitucionalmente consagrada. Vale registrar, sobre este aspecto, o ensinamento de Carlos Roberto Siqueira Castro (O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Lei na Nova Constituição do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p.167/168), in verbis:
“(…) para que as norma criadora de distinções jurídicas não sejam arbitrárias é fundamental, além de objeto constitucionalmente válido, que subsista satisfatória compatibilidade entre a classificação normativa em si e o fim a que ela se destina. Ausente essa relação de identidade teleológica o ato-regra se apresentará “irrazoável”e “irracional”, destarte arbitrário e incondizente com o sistema constitucional por definição voltado à eliminação do arbítrio (…) o princípio da igualdade jurídica embute-se na cláusula due process of law, convergindo um e outra no sentido de estreitar o raio de discricionariedade do editor normativo, de modo a levantar barreiras às regras de direito irrazoáveis, iracionais ou simplesmente caprichosas. Daí asseverar, com justeza, San Tiago Dantas, pioneiro expositor entre nós do assunto presentemente discorrido: ‘Em todo caso, é certo que as duas cláusulas condiziam, e não raro se confundem. Uma lei que cria arbitrariamente para determinada pessoa ou grupo de pessoas tratamento mais rigoroso que o adotado para a comunidade não será ‘due process of law’e também infringirá a cláusula de igualdade’.” (p.167/168).
Este equívoco deve ser corrigido, portanto, reconhecendo-se inconstitucional a punição em tese prevista para o agente que incide no art. 273, § 1º-B, I, do CP, mais precisamente a reprimenda corporal mínima, a qual deve ser então ajustada e aplicada, inclusive por analogia, apenas nos termos e limites estabelecidos para o tipo do art. 33 da Lei 11.343/2006, de modo a se atribuir sanção proporcional à efetiva lesão causada, isto é, cinco a quinze anos e multa.
É certo que a utilização da analogia, como defendido, não pode ser feita sem o reconhecimento da inconstitucionalidade da pena mínima de dez anos prevista no tipo penal do art. 273, § 1º-B, I, do CP, sob pena de infringência ao enunciado nº 10 da Súmula Vinculante do E. STF.
Também não se desconhece que o Órgão Especial desta C. Corte Regional recentemente rejeitou a arguição de inconstitucionalidade do preceito secundário do tipo penal do art. 273 e seus parágrafos do Código Penal, nos autos nº 0000793-60.2009.4.03.6124, em julgamento realizado nos termos do art. 97 da Constituição Federal e 480 e seguintes do Código de Processo Civil, ficando, pois, inviabilizada submissão ao Órgão Especial de nova arguição de inconstitucionalidade, nos termos do art. 481, parágrafo único, do CPC.
Todavia, considerando que a questão ainda não está pacificada nas Cortes Superiores, tendo, inclusive, sido recentemente submetida arguição de inconstitucionalidade desta natureza à Corte Especial do C. Superior Tribunal de Justiça, nos autos do HC nº 239.363 (2012/0076490-1), resta ao Parquet prequestionar a matéria em comento neste momento processual, para fins de interposição de recurso aos Tribunais Superiores, momento em que se insistirá na declaração da invalidade da pena de dez anos cominada no preceito secundário do art. 273, § 1º-B, I, do CP, com a aplicação, por analogia, da pena mínima prevista no art. 33, caput, da Lei 11.343/06.
Nesta esteira, pugna o Parquet pela manifestação expressa desta E. Corte Regional sobre a arguição de inconstitucionalidade efetivada no presente parecer, para fins de prequestionamento.
Quanto à alegação da defesa de que a pena fixada na sentença se mostra excessiva, esta não merece ser acolhida, visto que a pena foi fixada no mínimo legal, não sendo admitida sua aplicação aquém do piso, por ser contra legem. Com efeito, o legislador, ao regular a fixação da pena, determinou, no art. 59 do CP, que “o juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: (…) II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos.” (grifou-se).
Nada há, portanto, a ser modificado quanto à dosimetria, visto que a sentença já estabeleceu a pena definitiva no patamar mínimo legal.
– III –
Diante do acima exposto, opina o Ministério Público Federal pelo desprovimento do recurso.
São Paulo, 11 de abril de 2014.
SAMANTHA CHANTAL DOBROWOLSKI
Procuradora Regional da República
1 Ou, se os fatos forem anteriores à vigência desta Lei, que se aplique as penas do art. 12 da Lei 6.368/76 (03 a 15 anos de reclusão).