Nos últimos anos a doutrina vem se ocupando das implicações e relações entre neurociência e direito (direito penal, especialmente), sobretudo no que se refere à voluntariedade e controlabilidade de nossas ações. Uma parte importante de neurocientistas chega a afirmar, inclusive, que a ideia de liberdade humana (ou livre arbítrio) é um artifício de todo inexistente, não porque não se possa provar, mas porque se pode provar que não existe.[1]
Com efeito, para Grischa Merkel e Gerhard Roth, “boa parte de nossas decisões conscientes estão previamente determinadas nas partes subcorticais do sistema neuronal, cuja atividade não está acompanhada substancialmente da consciência. Isso não significa, porém, que o desenvolvimento dos atos conscientes estão completamente predeterminados por processos inconscientes, o que converteria aqueles em meros epifenômenos, senão que os processos de elaboração consciente da informação no cérebro representam acontecimentos neuronais totalmente diferentes dos inconscientes”. Enfim, o conceito de decisão de vontade reflexiva e livre de motivos é insustentável desde um ponto de vista da psicologia do comportamento e da investigação sobre o cérebro, razão pela qual que só existem condutas determinadas por motivos ou causais, mas de modo algum ações produzidas de um modo puramente mental.[2]
De acordo com Francisco Rubia, “se não existe liberdade, não se concebe culpabilidade, nem imputabilidade, de modo que não se deve castigar aqueles membros da nossa sociedade que transgridem as leis que nós mesmos criamos para permitir uma convivência pacífica. Cabe supor que nenhum novo conhecimento poderá mudar esse fato, mas mudará a imagem que nos formamos do criminoso ou transgressor das leis, pois não será culpável, embora deva ser isolado em benefício da sociedade”[3].
Enfim, e conforme Gerhard Roth, “o ato consciente de vontade de nenhum modo pode ser o causador do movimento, porque este movimento já está previamente fixado por processos neuronais”.[4]
Parece assim que o que a neurociência pretende demonstrar é que não decidimos sobre os aspectos essenciais do nosso modo de ser e agir, isto é, que não decidimos, por exemplo, sobre ser homo ou heterossexual, religioso ou ateu, honesto ou desonesto, triste ou alegre, solidário ou indiferente, violento ou pacífico etc. No máximo, decidiríamos sobre aspectos superficiais ou secundários referidos à personalidade. Exatamente por isso, os critérios socialmente construídos de imputação de responsabilidade seriam grandemente arbitrários, uma vez que teriam por pressuposto uma liberdade humana de agir que de fato não existe. A culpabilidade (e não só ela) seria, por conseguinte, uma ficção reguladora (Nietzsche).
E, apesar de alguns autores (juristas e neurocientistas[5]) pretenderem que semelhante abordagem seja, em princípio, um problema (apenas) de culpabilidade penal, a justificar uma reformulação substancial do seu conceito, pressupostos, estrutura, excludentes etc., ela importa, em verdade, numa radical revisão da própria ideia de direito e de responsabilidade jurídica (penal, civil, administrativa etc.), inclusive porque o penal é, antes de mais nada, um adjetivo para o direito.
Hassemer tem, pois, razão quando assinala que quem – por razões que sejam – negue que os seres humanos podem ser responsáveis pelo que fazem, elimina uma peça chave do nosso ordenamento jurídico, mas também de nosso mundo.[6]
[1] Cf. Demétrio Crespo, Eduardo. Libertad de voluntad, investigación sobre el cérebro y responsabilidad penal. Barcelona, Abril de 2011. Disponível em INDRET.COM.
[2] 2Cf. Demétrio Crespo, Eduardo. Libertad de voluntad, investigación sobre el cérebro y responsabilidad penal. Barcelona, Abril de 2011. Disponível em INDRET.COM.
[3] Apud Bernardo Feijoo Sánchez. Derecho Penal y Neurociências. Uma relación tormentosa? Barcelona, Abril de 2011. Disponível em INDRET.COM.
[4] Apud Hassemer, Winfried. Neurociências y culpabilidad en Derecho penal. Barcelona, Abril de 2011.
[5] Nesse sentido, Feijoo Sánchez: “Para evitar equívocos com respeito às dimensões do problema, os neurocientistas citados não discutem em absoluto que adotamos decisões, é dizer, formulado em termos dogmáticos, que atuamos dolosa ou imprudentemente. O que pretendem ressaltar é que ditas decisões não são em última instância livres senão que determinadas por multitude de condições que não se podem controlar conscientemente.”, cit., p. 6.
[6] Hassemer, Winfried. Neurociências y culpabilidad en Derecho penal. Barcelona, Abril de 2011.