A definição do que seja o Direito depende, necessariamente, do ponto de vista adotado1 . Não obstante, certo é que o que chamamos Direito não é uma coisa, isto é, não tem uma essência, uma substância; não existe ontologicamente, independentemente da representação que fazemos a seu respeito, porque constitui uma criação humana, que nasce e morre com o homem, ou seja, o direito não é sólido, nem líquido, nem gasoso, nem animal, nem vegetal2 .
Com efeito, “aquilo que uma teoria do direito objetiva como Direito”, são palavras de François Ewald, “como natureza do direito, como essência do direito, não tem existência real. O Direito – demos-lhe maiúsculas – não existe. Ou antes, não existe a não ser como um nome que reenvia a um objeto, mas serve para designar uma multiplicidade de objetos históricos possíveis – que, como realidades, não têm os mesmos atributos, e que podem mesmo ter atributos irredutíveis”3 , de sorte que, assim como não existem fenômenos morais, mas apenas interpretação moral dos fenômenos4 , tampouco existem fenômenos jurídicos, mas só interpretação jurídica dos fenômenos, pois nada é onticamente jurídico, lícito ou ilícito, mas socialmente construído.
Conclusivamente, o direito é o que dissermos que ele é, porque o direito, como de resto tudo que diz respeito ao homem, não está no fato ou na norma em si, mas na cabeça das pessoas, de modo que podemos afirmar, parafraseando o evangelho (Lucas, 17:21), que o reino do direito está dentro de nós, e que nós o criamos e recriamos permanentemente, dando-lhe distintos significados a cada momento de sua produção segundo um dado contexto histórico-cultural. Dito de outra forma: O direito e o não direito, tal qual o justo e o injusto, o moral e o imoral, o ético e o estético, é em nós que ele existe5 !
Daí que o direito, como o poder, não é uma coisa, mas relações/interações/interpretações, que é algo que se exerce, que se efetua, que funciona como uma máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social6 . Constitui, por isso, uma grande simplificação supor que o Estado seja a única fonte de direito ou que o direito se esgote no direito legislado7 , já que cada um carrega dentro de si seus micro-sistemas jurídicos, e os faz, ou tenta fazê-los prevalecer, nos seus espaços de interação/exercício de poder.
Dizemos, por exemplo, o direito penal, primeiro, por meio dos processos de criminalização primária que vão culminar na edição de uma lei que diga o que é e não é crime, porque assim o exige o princípio da reserva legal (CF, art. 5°, XXXIX8 ); segundo, por meio dos processos de criminalização secundária, isto é, através das ações e reações das pessoas e instituições direta ou indiretamente relacionadas com o crime (Judiciário, Ministério Público, Polícia, advogados, imprensa, autor, vítima, parentes etc)9 .
Assim, se não há crime nem pena sem lei anterior que o defina, segue-se que, por mais que uma conduta humana seja moralmente reprovável (v.g., o incesto), se não houver lei que a declare criminosa, criminosa não é, sendo jurídico-penalmente irrelevante. É a lei, portanto, que cria o crime, é a lei que cria o criminoso. Numa palavra: crime é só o que o legislador disser que é10.
Mas esse discurso aí não cessa, porque prossegue por meio dos processos de definição e reação social, isto é, os processos de criminalização secundária, que nada mais são do que continuum daquele. É que a rigor a lei não prescreve nada, não proíbe nada, não autoriza ou permite nada, pois a lei prescreve ou não prescreve, proíbe ou não proíbe, autoriza ou não autoriza, permite ou não permite, o que dissermos que ela proíbe, autoriza ou permite, de modo que a lei diz o que dissermos que ela diz11 .
Explicando melhor: prescreve a lei que o crime de estupro consiste em “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça” (CP, art. 213); parece óbvio saber em que reside o crime, pois. No entanto, o que vem a ser “mulher” para efeitos penais? Transexual (v.g., Roberta Close), por exemplo, pode ser considerada mulher para fins penais, e, portanto, vítima de estupro? Há algum tempo uma conhecida judoca brasileira foi impedida de participar de competição por não ser mulher segundo as regras desportivas: seria ela então “inestuprável”? Práticas sado-masoquistas podem ser consideradas criminosas? Não faz muito tempo, autores importantes afirmavam que o marido não podia responder por crime de estupro contra a esposa, pois, diziam, entre os direitos inerentes ao casamento estava o de o marido poder dela dispor sexualmente, razão pela qual não lhe era dado oferecer resistência lícita12 . Não bastasse isso, o Código equipara a estupro violento o “estupro” com “violência presumida”, isto é, praticado contra menores de catorze anos (CP, art. 22413 ) ou mulher que padeça de alienação mental, o que significa dizer que muitos “namoros” poderão ser interpretados como autênticos estupros (crime hediondo).
Tomemos um outro exemplo. A Constituição veda, expressamente, as “pena de morte” e “cruéis” (CF, art. XLVII14 ). Mas o que vem a ser pena de morte ou pena cruel? A resposta não é tão óbvia como parece.
É evidente que haverá pena de morte sempre que um juiz ou um tribunal proclamar a culpa de um réu e condená-lo criminalmente à pena capital, seja com um tiro de fuzil, seja por qualquer outro meio. A pena de morte é, enfim, um homicídio levado a cabo pelo Estado, legalmente. Mas veja: o art. 303, §2°, da Lei 7.565, de 19 de dezembro de 1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica), alterada pela Lei n° 9.614/98, bem assim o Decreto n° 5.144, de 16 de julho de 2004, que o regulamentou, previu a destruição de aeronaves “hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins”. Pergunta-se: não seria isso pena de morte/cruel por juízo de exceção, constitucionalmente vedado? Apesar disso, apreciando petição que argüia a inconstitucionalidade da aludida lei, o Procurador Geral da República, contrariamente, assinalou que “a medida de destruição não guarda relação com a pena de morte. Aliás, sequer pode ser considerada uma penalidade, porquanto não se busca, com sua aplicação, a expiação por crime cometido. Em realidade constitui, essencialmente, medida de segurança, extrema e excepcional, que só reclama aplicação na hipótese de ineficácia das medidas coercitivas precedentes. É importante frisar que tal medida tem por objeto a preservação da segurança nacional e a defesa do espaço aéreo brasileiro”15 . Esse exemplo também demonstra, claramente, que o direito é, em última análise, realização/manifestação de poder.
Aliás, a própria pena privativa da liberdade, que consiste, em geral, no encarceramento do sujeito por anos a fio num ambiente antinatural (artificial), em espaço físico minúsculo, superlotado, sem salubridade, areação, privado quase que integralmente de contato com o mundo exterior, não seria pena cruel?
Ademais, nenhum comportamento é criminoso em si mesmo, tudo dependendo das reações que desencadeia ou não desencadeia. Assim, se um pai sabe que um seu filho lhe subtraiu valores, provavelmente não tomará isso como um fato criminoso (“furto”), por isso não procurará a polícia, não fará funcionar a máquina estatal; tudo não passará de um problema de família e resolvido em família16 . O próprio Código (CP, art. 181, II) prevê isenção de pena sempre que o crime for praticado contra “ascendente ou descendente”. Certamente, reações diversas teriam lugar se, ao invés de um filho, fosse autora do fato a empregada doméstica ou um estranho. De modo similar, o tráfico ilícito pressupõe que a droga seja “substância entorpecente ou capaz de produzir dependência física ou psíquica” (Lei 6.368/76, art. 12), que são as substâncias (ilícitas) assim definidas pelo Ministério da Saúde, um tanto arbitrariamente, dentro de um universo vastíssimo de drogas ou substâncias capazes de produzir dependência física ou psíquica, estando excluídos, por exemplo, tabaco, álcool etc. Mais: o assédio sexual (CP, art. 216-A), embora praticável por qualquer pessoa (crime comum), é um típico crime masculino, pois mui raramente um homem interpreta o assédio feminino como algo ofensivo ou criminoso.
Convém repetir, portanto: o direito é, antes de tudo, relações, interações, interpretações.
Naturalmente que o mesmo deve ser dito de todas as demais formas de ilícito (civil, trabalhista, administrativo), pois não há diferença relevante (ontológica) quanto ao que seja “violação contratual”, “esbulho possessório”, “justa causa” etc. O direito é um só, e, por conseqüência, a violação ao direito17 (o ilícito).
O direito não é, por conseguinte, somente o que o legislador diz que é; é também o que os juízes dizem que é, a partir e segundo múltiplos discursos de atores sociais múltiplos; é, pois, um discurso, uma prática (social) discursiva, socialmente construída, variável no tempo e no espaço, mais ou menos previsível e, no caso penal (mas não só nele), arbitrariamente seletiva, pois o sistema penal recruta sua clientela, quase sempre, sobre os grupos mais vulneráveis, notadamente autores de crimes patrimoniais (furto, roubo, estelionato), típica “criminalidade de rua”, própria de sujeitos socialmente excluídos.
Por isso que o direito não é apenas o que as normas dizem, mas também, e principalmente, o que dizemos que as normas dizem; não é só o dever ser, mas o ser. Tem razão, portanto, Arthur Kaufmann, quando assinala que “só quando a norma e situação de vida, dever e ser, são postos em relação, em correspondência um com o outro, surge o direito real: o direito é a correspondência entre o dever e o ser. O direito é uma correspondência, não tem um caráter substancial, mas sim relacional, o direito no seu todo não é, portanto, o complexo de artigos da lei, um conjunto de normas, mas sim um conjunto de relações”18 .
Assim, supor que a lei é o próprio direito seria confundir, v.g., o mapa com o território, o cardápio com a refeição; seria confundir, enfim, discurso e realidade, teoria e práxis, dever ser e ser, mesmo porque o direito constitui uma idéia, um conceito, que reenvia a outros tantos conceitos, que, à semelhança de compartimentos vazios, tem seus conteúdos preenchidos mais ou menos arbitrariamente pelas pessoas e autoridades que participam da sua construção social.
Releva notar, finalmente, que, mesmo no âmbito jurídico-penal, ramo do direito em que a dogmática parece ter assumido maior nível de sofisticação, o recurso às categorias da tipicidade, ilicitude e culpabilidade não é capaz de desmentir o que se vem de afirmar. É que, se sob o aspecto material, o delito não existe, segue-se, logicamente, que também o seu conceito formal ou analítico – crime como fato típico, ilícito e culpável – é socialmente construído, de sorte que uma dada conduta será criminosa somente quando dissermos (aceitarmos) que é, um vez que tais categorias remetem a conceitos os mais variados: dolo, culpa, significância/insginificância, causalidade, legítima/ilegítima defesa, estado de necessidade/desnecessidade, coação física/moral/resistível/irresistível, obediência hierárquica, erro de proibição vencível/invencível, embriaguez voluntária/involuntária etc., os quais reenviam, por sua vez, a uma infinidade de conceitos outros, como vida, honra, patrimônio, agressão justa/injusta, intenção, previsão, consciência/inconsciência, boa/má-fé, prova lícita/ilícita, exigível/inexigível, valores, princípios etc. Não bastasse isso, o manuseio de tais conceitos se faz, não raro, de modo francamente arbitrário, como sói ocorrer nos julgamentos pelo Tribunal do Júri, formado que é por leigos.
Uma tal abordagem, no entanto, embora desminta muitos conceitos do direito, não diz muito sobre o que o direito venha a ser, e, principalmente, em que se distingue de outros saberes, uma vez que esse caráter relacional não é exclusividade sua, mas diz respeito também, por exemplo, à moral, à ética e à estética. Porque, no fundo, falar do direito, do ético e do estético é falar de um modo particular de experiência, de um modo particular de experiência hermenêutica, enfim. O direito é em nós que ele existe, realmente. Mas não é só ele.
Não sem razão, aliás, Robert Alexy assinala que o problema central da polêmica sobre o conceito de direito é a relação entre direito e moral19 ; convindo disso tratar, portanto (Segunda Parte).
Nota de rodapé convertidas1. Conforme se infere de alguns conceitos: “o direito é, pois, o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de um se pode harmonizar com o arbítrio do outro, segundo uma lei universal da liberdade” (Kant, Metafísica dos Costumes, Parte I, p. 36, edições 70); “o domínio do direito é o espírito em geral; aí, a sua base própria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espírito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo” (Hegel, Princípios de Filosofia do Direito, p.12, Ed. Martins Fontes, trad. Orlando Vitorino, Martins Fontes, S. Paulo, 1997); “Direito é, pois, a realidade que possui o sentido de estar ao serviço do valor jurídico, da Idéia de direito. O ‘conceito” de direito acha-se assim dependente da ‘Idéia’ de direito”(Gustav Radbruch, Filosofia do Direito, p. 86, Armênio Amado Editor, Coimbra, 1997, 6ª edição, tradução de L. Cabral de Moncada); “o direito é uma corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos, considerados justificáveis num dado grupo social, que contribui para a criação e prevenção de litígios, e para a sua resolução através de um discurso argumentativo, articulado com a ameaça de força” (Boaventura de Souza Santos, Crítica da Razão Indolente, p. 290, Cortez Editora, s. Paulo, 2000); “o direito é um sistema de normas que (1) formula uma pretensão de correção, (2) consiste na totalidade das normas que pertencem a uma Constituição em geral eficaz e não são extremamente injustas, como assim também na totalidade das normas promulgadas de acordo com esta Constituição e que possuem um mínimo de eficácia social ou de probabilidade de eficácia e não são extremamente injustas e ao que (3) pertencem os princípios e outros argumentos normativos em que se apóia o procedimento de aplicação do direito e/ou tem que apoiar-se a fim de satisfazer a pretensão de correção” (Robert Alexy, El concepto y la validez del derecho, p. 123, Gedisa editorial, 2ª edición, Barcelona, 2004). “Direito é a ordenação heterônoma, coercível e bilateral atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo valores” (…) “Direito é a concretização da idéia de justiça na pluridiversidade de seu dever ser histórico, tendo a pessoa como fonte de todos os valores” (Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, p. 67, Saraiva, S. Paulo, 2005).2. Calmon de Passos, Direito, Poder, Justiça e Processo, p. 67/68, Ed. Forense, Rio, 1999.3. Foucault, a Norma e o Direito, p. 160, Vega, Lisboa, 1993. De modo similar, Calmon de Passos afirma que o Direito “enquanto apenas formulação teórica, enunciado normativo, proposição ou juízo, ainda não é o Direito”, pois “o Direito é o que dele faz o processo de sua produção. Isso nos adverte de que nunca é algo dado, pronto, pré-estabelecido ou pré-produzido, cuja aplicação é possível mediante simples utilização de determinadas técnicas e instrumentos, com segura previsão das conseqüências”, razão pela qual “O Direito, em verdade, é produzido a cada ato de sua produção, concretiza-se com sua aplicação e somente é enquanto está sendo produzido ou aplicado”, Direito, Poder, Justiça e Processo, p. 67/68, Ed. Forense, Rio, 1999.4. Nietzsche, Para além do bem e do mal, n° 108, p.92, trad.Alex Marins, Martin Claret, S. Paulo, 2002.5. Só assim se explica, por exemplo, que, interpretando a Constituição americana, que vigora há mais de duzentos anos sem alteração no particular, tenha a Suprema Corte entendido, inicialmente, que o racismo era constitucional; mais tarde (década de 50), passou-se a considerar parcialmente inconstitucional; e, finalmente, a partir da década de 70, prevaleceu o entendimento de que o racismo é inteiramente inconstitucional. O que mudou, se o texto da lei é o mesmo desde então? A resposta é simples: o homem que o interpreta!6. Roberto Machado, por uma genealogia do poder, p. XIV, introdução a Microfísica do Poder, de Michel Foucault, Rio de Janeiro, Graal, 1995.7. Não sem razão, Boaventura de Souza Santos refere, além do direito estatal ou territorial, o direito doméstico, o direito de proteção, o direito da comunidade e o direito sistêmico, classificação que não é exaustiva. O direito doméstico – grandemente informal – é o direito do espaço doméstico, o conjunto de regras, de padrões normativos e de mecanismos de regulação de conflitos que resulta da, e na, sedimentação das relações sociais do agregado doméstico; o direito da produção é o direito da fábrica ou da empresa, o conjunto de regulamentos e padrões normativos que organizam o quotidiano das relações do trabalhado assalariado: códigos de fábrica, regulamentos da linha de produção, códigos de condutas dos empregados etc.; o direito da comunidade, como sucede com o espaço da comunidade, é uma das fontes de direito mais complexas, na medida em que cobre situações extremamente diversas, podendo ser invocado tanto pelos grupos hegemônicos como pelos grupos oprimidos; finamente, o direito territorial ou do estatal é o direito do espaço da cidadania e, nas sociedades modernas, é o direito central na maioria das constelações de ordens jurídicas, sendo que ao longo dos últimos duzentos anos, foi construído pelo liberalismo político e pela ciência jurídica como a única forma de direito existente na sociedade, in Crítica da razão indolente, p. 290 e ss, Cortez Editora, S. Paulo, 2000.8. Prescreve o aludido artigo que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
9. Como observa Vera Andrade, “a lei penal configura tão-só um marco abstrato de decisão, no qual os agentes do controle social formal desfrutam de ampla margem de discricionariedade na seleção que efetuam, desenvolvendo uma atividade criadora proporcionada pelo caráter “definitorial” da criminalidade (…) “pois entre a seleção abstrata, potencial e provisória operada pela lei penal e a seleção efetiva e definitiva operada pelas instâncias de criminalização secundária, medeia um complexo e dinâmico processo de refração”, in a Ilusão de Segurança Jurídica, p. 260, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 1997.
10. Apesar disso, tem razão Niklas Luhmann quando, de uma perspectiva distinta, assinala que “o direito não se origina da pena do legislador. A decisão do legislador (e o mesmo é válido, como hoje se reconhece, para a decisão do juiz) se confronta com uma multiplicidade de projeções normativas já existentes, entre as quais ele opta com um grau maior ou menor de liberdade. Se não fosse assim, ela não seria uma decisão jurídica. Sua função, portanto, não reside na criação do direito, mas na seleção e na dignificação simbólica de normas enquanto direito vinculativo. Ele envolve um filtro processual, pelo qual todas as idéias jurídicas têm que passar para se tornarem socialmente vinculativas enquanto direito. Esses processos não geram o direito propriamente dito, mas sim sua estrutura em termos de inclusões e exclusões; aí se decide sobre a vigência ou não, mas o direito não é criado do nada. É importante ter em mente essa diferença, pois de outra forma a concepção do direito estatuído através de decisões pode ser ligada à noção totalmente errônea da onipotência de fato ou moral do legislador. É necessário, em outras palavras, diferenciar entre atribuição e causalidade. A proeminência especial do processo decisório (por instâncias legislativas ou por juízes) e sua relevância na positivação na vigência do direito não podem levar à interpretação como algo criativo ou causal; o direito resulta de estruturas sistêmicas que permitem o desenvolvimento de possibilidades e sua redução a uma decisão, consistindo na atribuição de vigência jurídica a tais decisões”, Sociologia do Direito II, p. 8, Biblioteca Tempo Universitário 80, Rio de Janeiro, 1985.
11. Por isso afirma Lênio Luiz Streck,que, em rigor, não existem julgamentos de acordo com a lei ou em desacordo com ela, porque o texto normativo não contém imediatamente a norma (Muller), a qual é construída pelo intérprete no decorrer do processo de concretização do direito, de sorte que, quando o juiz profere um julgamento considerado contrário à lei, na realidade está proferindo um julgamento contra o que a doutrina e a jurisprudência estabelecem como arbitrário. Conclui, então, Lênio, que “é necessário ter em conta que o Direito deve ser entendido como uma prática dos homens que se expressa em um discurso que é mais que palavras, é também comportamentos, símbolos, conhecimentos, expressados (sempre) na e pela linguagem. É o que a lei manda, mas também o que os juízes interpretam, os advogados argumentam, as partes declaram, os teóricos produzem, os legisladores criticam. É, enfim, um discurso constitutivo, uma vez que designa/atribui significado a fatos e palavras”, in Hermenêutica jurídica em crise, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999, p. 210/211.
12. Assim, Nélson Hungria: “questiona-se sobre se o marido pode ser, ou não, considerado réu no estupro, quando, mediante violência, constrange a esposa à prestação sexual. A solução justa é no sentido negativo. O estupro pressupõe cópula ilícita (fora do casamento). A cópula intra matrimonium é recíproco dever dos cônjuges (…). O marido violentador, salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena correspondente à violência física em si mesma (excluído o crime de exercício arbitrário das próprias razões, porque a prestação corpórea não é exigível judicialmente), pois é lícita a violência necessária para o exercício regular de um direito”, Comentários ao Código Penal, p. 125/126, v.VIII, Forense, Rio, 1959. Assim também, Magalhães Noronha: “as relações sexuais são pertinentes à vida conjugal, constituindo direito e dever recíproco dos que casam. O marido tem direito à posse sexual da mulher, ao qual ela não pode se opor. Casando-se, dormindo sob o mesmo teto, aceitando a vida em comum, a mulher não se pode furtar ao congresso sexual, cujo fim mais nobre é o da perpetuação da espécie. A violência por parte do marido não constituiria, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa para não aceder à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo, podendo, todavia, ele responder por excesso cometido”, Direito Penal, p. 70, V. 3, Saraiva, S. Paulo, 27ª edição, 2003.
13. Diz o referido art. 224 do Código Penal que “presume-se a violência, se a vítima: a)não é maior de 14(catorze) anos; b)é alienada mental, e o agente conhecia esta circunstância; c)não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência”.
14. Diz o artigo: “não haverá penas: a)de morte, salvo no caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; e)cruéis”.
15. Processo PGR nº 1.00.000.000836/2005-71, pronunciamento subscrito por Cláudio Lemos Fonteles, então Procurador Geral da República, datado de 14/03/2005.
16. Um caso real bem ilustra isso: A foi flagrada por abusar sexualmente de sua filha (B), de dois anos, e por isso foi presa, processada e condenada a 7 anos e seis meses de reclusão por crime de atentado violento ao pudor (CP, art. 214), crime hediondo (Lei 8.072/90). O exame criminológico assim a diagnosticou: “personalidade primitiva, com nível mental baixo e conseqüente imaturidade intelectual e afetiva, que motivam os comportamentos regressivos que emite e que demonstram a dificuldade de adaptação ao meio social. Evidencia baixo nível de tolerância às frustrações, às quais reage com atitudes oposicionistas e agressivas, manifestadas através de descargas emocionais intensas, que refletem a dificuldade de controle sobre os impulsos. Em conseqüência, o processo de Inter-relação social torna-se difícil, sobretudo quando adota atitudes de supervalorização de si mesmo como uma forma de compensar o sentimento de inferioridade que procura dissimular”. Ora, tivesse essa história se passado numa família de classe média ou alta e outro seria o desfecho: certamente, a família submeteria A a tratamento psicológico/psiquiátrico, a sessões de análise ou semelhante, e, no máximo, lhe tiraria, provisória ou definitivamente, a guarda da criança (B). Assim, não haveria polícia, nem crime, nem pena, nem prisão; tudo não passaria de um “problema de família” e resolvido em família.
17. Como escreve Hungria, na diversidade de tratamento dos fatos antijurídicos, a lei não obedece a um critério de rigor científico ou fundado numa distinção ontológica entre tais fatos, mas, simplesmente, a um ponto de vista de conveniência política, variável no tempo e no espaço, Comentários, v.1., t.2, p. 29.
18. Filosofia do Direito, p. 219, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2004.
19. El concepto y la validez del derecho, p. 13, Gedisa editorial, 2ª edición, Barcelona, 2004.
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