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Posse de droga para consumo pessoal: descriminalização ou despenalização?

Discute-se se o art. 28 da Lei n° 11.343/2006, que pune quem adquire, guarda etc., droga para consumo pessoal, operou uma descriminalização ou despenalização, já que a lei só previu penas restritivas de direito (advertência, prestação de serviço à comunidade e medida educativa), sem a possibilidade de aplicação de pena privativa da liberdade.

Descriminalizar é abolir a criminalização (tipificação), tornando a ação jurídico-penalmente irrelevante; já a despenalização – expressão um tanto imprópria – é a substituição (legislativa ou judicial) da pena de prisão por penas de outra natureza (restritiva de direito etc.). Portanto, se com a descriminalização o fato deixa de ser infração penal (crime ou contravenção); com a despenalização a conduta permanece criminosa.

Pois bem, para Luiz Flávio Gomes, “a Lei n° 11.343/2006 (art. 28), de acordo com a nossa opinião, aboliu o caráter ‘criminoso’ da posse de drogas para consumo pessoal. Esse fato deixou de ser legalmente considerado “crime” (embora continue sendo um ilícito sui generis, um ato contrário ao direito). Houve, portanto, descriminalização formal, mas não legalização da droga (ou descriminalização substancial).”1

Mas o Supremo Tribunal Federal decidiu que “o que houve foi uma despenalização, cujo traço marcante foi o rompimento – antes existente apenas com relação às pessoas jurídicas e, ainda assim, por uma impossibilidade material de execução (CF/88, art. 225, § 3º); Lei 9.605/98, arts. 3º; 21/24) – da tradição da imposição de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva de toda infração penal.”2

Realmente houve simples despenalização.3

Inicialmente, é de ver que o conceito de infração penal é essencialmente formal: crime é o que a lei declara como tal, independentemente da espécie de pena que lhe é cominada.

E que a lei tratou, formalmente, o uso de droga como crime, é fora de dúvida. Primeiro, porque o art. 28 faz parte do Capítulo III, que tem como título “dos crimes e das penas”; segundo, porque o conceito legal de crime dado pela Lei de Introdução ao Código Penal (art. 1°4) está há muito superado, seja porque a lei especial pode criar conceito diverso de infração penal (como agora o fez), seja porque a Constituição Federal, que lhe é posterior, previu novas espécies de pena (CF, art. 5°, XLVI). Note-se, a propósito, que a aludida lei de introdução (de 1941) foi editada na vigência da Constituição de 1937.

Ademais, em tempos em que se prega a falência da pena privativa da liberdade5 e sua gradual abolição – v.g., Ferrajoli6 – não faria muito sentido condicionar a definição de crime à previsão inexorável de tal modalidade de pena. E mais: o que realmente interessa, para a definição legal de crime, não é propriamente a espécie de pena cominada, mas os seus pressupostos legais formais.

Exatamente por isso, se a uma determinada infração fosse cominada pena de morte, exclusivamente, nem por isso deixaria de ser crime; o mesmo ocorreria se, no futuro, forem cominadas às infrações penais somente penas restritivas de direito ou medidas de segurança, com a eventual abolição da pena de prisão.

Além do mais, o rol das penas constitucionais não é taxativo, mas meramente exemplificativo, motivo pelo qual o legislador poderá, inclusive, criar outras tantas, desde que compatíveis com a dignidade da pessoa humana e o princípio da humanidade das penas, proibitivo de penas cruéis e degradantes, entre outras (CF, art. 5°, XLVII).

Por conseguinte, ao não cominar pena privativa da liberdade, o art. 28 não implicou abolitio criminis, mas simples despenalização, isto é, manteve a criminalização, mas optou por vedar a pena privativa da liberdade.

Uma última observação: tramita no Congresso Nacional Projeto de Lei (PLS 227/09), de autoria do senador Gérson Camata (PMDB-ES), que pretende restaurar a pena privativa de liberdade (de seis meses a um ano de detenção) para o crime de porte ilegal de droga para consumo pessoal.

 

1Lei de Drogas Comentada. S.Paulo: RT, 2008, p. 121.

2RE 430105 QO, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 13/02/2007, DJe-004 DIVULG 26-04-2007 PUBLIC 27-04-2007 DJ 27-04-2007 PP-00069 EMENT VOL-02273-04 PP-00729 RB v. 19, n. 523, 2007, p. 17-21 RT v. 96, n. 863, 2007, p. 516-523.

 

3No sentido do texto, Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho, cit.. No sentido de que não houve descriminalização, mas descarcerização, Salo de Carvalho, cit., p. 109/111.

4Art. 1° do Decreto-Lei n° 3.914/41: Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente”.

5Contrariamente, Michel Foucault tem uma explicação originalíssima para a longevidade da prisão-pena. Para ele, a função real (oculta) da pena, ao contrário do que pregam os juristas, não é propriamente combater a criminalidade, mas produzi-la. Por isso que, ao aparentemente fracassar, escreve Foucault, “a prisão não erra seu objetivo; ao contrário, ela o atinge na medida em que suscita no meio das outras uma forma particular de ilegalidade, que ela permite separar, pôr em plena luz e organizar como um meio relativamente fechado, mas penetrável”, porque “ela contribui para estabelecer uma ilegalidade, visível, marcada, irredutível a um certo nível e secretamente útil – rebelde e dócil ao mesmo tempo; ela desenha, isola e sublinha uma forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as outras, mas que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar”. Por conseguinte, se do ponto de vista das suas funções declaradas (oficiais) a pena é um fracasso manifesto, do ponto de vista das funções ocultas a prisão é um grande sucesso, daí a sua longevidade. Foucault, Vigiar e punir. História da violência nas prisões. Trad. Raquel Ramalhete. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 1995.

 

6Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. Trotta: Madrid, 1995.

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