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Unificação do erro de tipo e de proibição

Como sabemos, a doutrina distingue, com base no Código (arts. 20 e 21), erro de tipo de erro de proibição, pressupondo uma outra distinção entre representação do fato e representação da ilicitude do fato. No primeiro caso, há erro de tipo (v. g., portar droga ilícita supondo substância inócua); no segundo, existe erro de proibição (v. g., portar droga ilícita supondo droga lícita). No erro de tipo, o autor não sabe o que faz, e se soubesse não o faria. Já no erro de proibição, o autor sabe o que faz, mas acredita que aquilo que faz é lícito.

Trata-se de distinção que remonta ao direito romano, que diferenciava erro de fato e erro de direito, o que não quer dizer, porém, que o atual erro de tipo coincida, precisamente, com o error facti e que o erro de proibição corresponda ao error iuris.

Temos que tais erros deveriam ter o mesmo tratamento jurídico-penal, por diversas razões.

Em primeiro lugar, porque todo erro de tipo implica um erro de proibição, pois quem não tem a exata representação do fato, tampouco terá ideia da dimensão jurídico-penal que recai sobre esse fato. No exemplo citado, o agente, ao supor que trazia substância inócua, julgava exercer um direito inerente à propriedade ou à posse legitimas.

O inverso é igualmente verdadeiro: todo erro de proibição é um erro de tipo, visto que errar sobre a ilicitude do fato é enganar-se sobre a proibição contida no tipo legal de crime, já que este encerra, logicamente, proibições, de não matar, de não furtar etc.. Assim, realizar os elementos do tipo significa saber e querer praticar um fato proibido pelo direito, uma vez que, do contrário, não haveria dolo (dolus malus). Sim, porque conhecer e realizar o tipo é conhecer e realizar, consciente e voluntariamente, a proibição que ele contém.

É que os tipos penais não descrevem acontecimentos físicos, mas proibições de condutas humanas que de algum modo remetem a elementos inevitavelmente valorativos, afinal não existem “fatos” puros nem fatos simples; só existem interpretações, e isso não é mera interpretação que possa ser apagada como “retorno científico aos fatos”; um “exame de sangue” não é “o sangue” (Flávio Kothe).

Note-se, mais, que o conhecimento ou desconhecimento do fato só assume relevância jurídico-penal quando associado a um determinado tipo legal de crime. Justamente por isso, não existe um dolo simplesmente, mas dolo de cometer um crime específico.

Em segundo lugar, porque, segundo vimos, há tipos em que esta pressuposta distinção entre representação do fato e representação da ilicitude do fato é impossível, em virtude de a norma penal incriminadora remeter, explicitamente, aos chamados elementos normativos do tipo.

Soler tinha razão, portanto, quando argumentava: “que diferença essencial existe entre um sujeito que entra ilicitamente em um escritório porque crê que é um lugar público (pretendido erro de fato), e aquele que o faz porque acredita que os escritórios não são domicílio no sentido da lei (pretendido erro de direito)? Em realidade, as duas possibilidades são erros de direito, e isso não devemos estranhar, porque, efetivamente como o disse Finger, o direito, ao se referir aos fatos, transforma-os em conceitos jurídicos. Eu posso ter cocaína sem autorização, seja porque ignoro que seja necessária, seja porque desconheça que a substância é cocaína. Em ambos os casos, ignoro que a substância que tenho está juridicamente considerada e submetida a determinada regulamentação”.1

Enfim, todo erro de tipo é um erro de proibição (e vice-versa), porque o tipo contém, expressa ou tacitamente, a matéria objeto da proibição jurídico-penal. E também porque, de acordo com a mencionada teoria dos elementos negativos do tipo, todo fato típico é necessariamente um fato ilícito, embora nem todo fato ilícito seja típico.

Aliás, a polêmica antes referida a respeito da natureza jurídica das descriminantes putativas é consequência direta da imprecisão dos conceitos hoje utilizados pela doutrina sobre erro de tipo e erro de proibição, pois em verdade o erro sobre causas de justificação pode ser considerado, em face dessa inexatidão, tanto um quanto outro. Erro de proibição, porque quando o sujeito atua, v. g., em legítima defesa putativa, toma, segundo sua representação, como lícita uma ação ilícita, é dizer, supõe agir legitimamente. E também um erro de tipo, porque, dentre outras razões, assim o Código tratou o assunto, segundo pensamos.

Além disso, é comum a todas essas possibilidades de erro a suposição, pelo agente, de atuar conforme o direito. Nos exemplos inicialmente citados, tanto o agente que não sabe que traz droga quanto o que supõe que se trata de droga legal acreditam agir segundo a lei. Exatamente por isso, se entendermos o dolo como compreensivo da consciência da ilicitude, isto é, compreensivo do conhecimento de agir contrariamente ao direito (dolus malus), conforme entendia a doutrina causalista, não existirá dolo em nenhum dos casos.

Releva notar, ainda, que o erro de tipo e o erro de proibição inevitáveis produzem a mesma consequência prática: uma sentença penal absolutória. E mais: do ponto de vista sistemático, implicam igualmente a exclusão da criminalidade do comportamento, apesar de, segundo a doutrina adotada pelo Código, o erro de tipo excluir o dolo e, pois, a tipicidade, e o erro de proibição isentar o réu de pena e, portanto, afastar a culpabilidade.

E como dizia M. E. Mayer, o que de fato importa não é o conteúdo do erro, mas a sua consequência: a impossibilidade da consciência de violação de um dever.2

Quanto ao erro de tipo e de proibição evitáveis, cumpre também equipará-los prática e sistematicamente, a fim de que o agente responda, em ambos os casos, por crime culposo, quando punível a esse título, inclusive porque o grau de reprovabilidade da conduta é o mesmo. Assim, por exemplo, a censurabilidade do agente que mantém relações sexuais com uma menor de 14 anos, ignorando essa circunstância, não é essencialmente diversa daquele que, embora sabendo que se trata de vulnerável, acredita que sua conduta é legítima em razão do consentimento (espontâneo) da vítima.

Em suma: erro de tipo, erro de tipo permissivo e erro sobre a ilicitude do fato, como possíveis erros penalmente relevantes de interpretação, são, em última análise, variações do erro sobre o próprio tipo e a proibição que ele encerra, razão pela qual cumpre superar a distinção, tratando-os unitariamente.

Afinal, não existe razão política ou dogmática relevantes a justificar tamanha disparidade de tratamento legal.

Cabe frisar, por fim, que a proposta de unificação dos erros não é nova, visto que parte importante da doutrina clássica já o postulava, relativamente ao erro de fato e o erro de direito. Nesse sentido, K. Binding, M. E. Mayer, Finger, Asúa3, Soler etc. De modo semelhante, Shünemann informa que a ideia de equiparar tais erros quanto aos seus efeitos é amplamente difundida na Alemanha.4

No Brasil, José Cirilo de Vargas foi o primeiro – parece que o único – a defender a unificação dos erros, por considerar, com razão, que “do ponto de vista científico, nenhuma diferença existe entre o erro de tipo e o de proibição”.5

1 Sebastián Soler. Derecho Penal Argentino, v. 2. Tipografia Editora Argentina. Buenos Aires: 1989, p.102.

2 Apud Sebastián Soler, cit., p.101.

3 Luis Jiménez de Asúa, que refere vários autores no mesmo sentido, escreveu que se trata de uma “distinção carente de todo valor científico, para nós que postulamos a equivalência entre o error facti e o error iuris.”Reflexiones sobre el error de derecho en materia penal. Buenos Aires: Libreria “El Ateneo” Editorial, 1942, p.21.

4 . Afirma o citado autor: “E finalmente considero recomendável, sem que aqui possa estender-me mais a respeito, de acordo com uma concepção hoje como ontem amplamente difundida na Alemanha, que o legislador equipare erro de proibição e erro de tipo, e trate ambos os erros de acordo com o disposto na p. 16 no âmbito do Direito penal especial” (La función…, in Fundamentos, cit., p. 238). Sobre o assunto, já se pronunciara Everardo Luna: “Uma vez que os fatos e valores são incindíveis, porque gravitam dentro da realidade jurídica, que é, a um tempo, direito e realidade, conclui-se que a distinção entre erro de fato e erro de direito não era uma distinção substancial, existindo apenas para o atendimento de certas finalidades práticas (…). E afirmou-se que, assim como em todos os erros de fato está ínsito um erro de direito, assim também em todos os erros de direito insere-se, inapelavelmente, um erro de fato. Desse modo, o clássico exemplo de Finger, que via erro de direito tanto no fato de conduzir cocaína sem autorização, quanto no fato de conduzi-la sem conhecê-la (…). Sucede, porém, que, mesmo considerando-se que a distinção entre erro de fato e erro de direito não ataca substancialmente a realidade, mesmo assim, é inegável a dificuldade para unificar o erro e tratá-lo com a obediência que a justiça material exige” (Direito penal, São Paulo: Saraiva, 1985, p. 245-256).

5 Instituições de direito penal. Parte geral. Tomo I. Belo Horizonte: Livraria Del Rey editora. 1997.

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