Como se sabe, a pena cominada ao crime de tráfico internacional de armas era de 4 a 8 anos de reclusão. Com o advento da Lei n° Lei nº 13.964, de 2019, o chamado pacote anticrime, a pena foi aumentada para 8 a 16 anos de reclusão.
De acordo com o art. 18 da Lei n° 10.826/2.002:
Tráfico internacional de arma de fogo
Art. 18. Importar, exportar, favorecer a entrada ou saída do território nacional, a qualquer título, de arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização da autoridade competente:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 16 (dezesseis) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem vende ou entrega arma de fogo, acessório ou munição, em operação de importação, sem autorização da autoridade competente, a agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
A denúncia imputou ao paciente o seguinte fato:
Na data de 27 de outubro de 2023, por volta das 11h40min, na rodoviária de Foz do Iguaçu/PR, o denunciado, com vontade e consciência, ciente da reprovabilidade de sua conduta, importou arma de fogo, revólver calibre 38, marca Custer, número 4613, sem autorização da autoridade competente.
De fato, ao adquirir um único revólver calibre 38 no Paraguai, o paciente não cometeu o crime do art. 18 da Lei, mas aquele do art. 14 da Lei, que consiste em:
Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo quando a arma de fogo estiver registrada em nome do agente.
Afinal, adquirir arma de uso permitido em outro país para usá-la aqui não configura, a rigor, o crime de tráfico internacional de armas, visto que a finalidade do agente não é traficar (comercializar) arma de fogo, mas fazer uso dela. Seria diferente se fossem adquiridas quantidades expressivas de armamento para fins comerciais.
Aqui cabe inclusive uma comparação com o tráfico de drogas. Sim, porque, ainda que o agente importe entorpecente para uso pessoal no Brasil, ele não incide nas penas do crime de tráfico (art. 33 da Lei n° 11.343/2.006), mas no crime do art. 28 da LD, que pune o porte de drogar para consumo.
É bem verdade que a Lei de Armas não tem um dispositivo idêntico àquele do art. 28 da LD. Mas isso não impede que se apliquem, por analogia, outros dispositivos da lei, como o art. 14 da Lei, em homenagem ao princípio da proporcionalidade.
Afinal, embora o tipo do art. 18 (tráfico internacional de armas) preveja apenas três verbos típicos (importar, exportar e favorecer), é possível considerar a importação como um continuum, um exaurimento da ação prevista no art. 14 do Estatuto do Desarmamento (adquirir), a fim de se evitar penas draconianas.
Como vimos, o paciente não cometeu crime especialmente grave, como seria importar fuzis para organizações criminosas, por exemplo, a justificar pena tão excessiva e desproporcional, ainda que aplicada no mínimo legal.
Aliás, se, em vez de adquirir o revólver calibre 38 no Paraguai, o agente o tivesse comprado em Foz do Iguaçu ou em outra cidade brasileira, a sua pena seria extraordinariamente mais branda. Basta comparar as penas dos crimes da Lei n° 10.826/2.002: Posse ilegal de uso permitido (CP, art. 12): detenção de 1 a 3 anos; posse ilegal de arma de uso permitido (art. 14), 2 a 4 anos de reclusão; disparo de arma de fogo (art. 15): 2 a 4 anos de reclusão; posse ilegal de arma de uso restrito (art. art. 16): 3 a 6 anos de reclusão.
É importante notar que delitos mais graves e de dano, não de simples perigo (concreto ou abstrato), previstos no Código Penal têm penas muito inferiores: homicídio doloso simples (pena de 6 a 20 anos de reclusão); homicídio culposo, que pode resultar inclusive do manuseio de arma de fogo (detenção de um a três anos); lesão corporal grave (1 a 5 anos de reclusão) e gravíssima (2 a 8 anos de reclusão); lesão corporal seguida de morte (4 a 12 anos de reclusão); roubo simples (4 a 10 anos de reclusão) etc., a demonstrar quão desproporcional é a pena cominada ao crime do art. 18 da lei aqui discutida.
Note-se, inclusive, que delito de tráfico de armas não faz nem sequer distinção entre arma de fogo de uso permitido e não permitido, entre arma de baixo ou grosso calibre, entre traficar uma ou dezenas de armas, entre importar para fins comerciais ou para consumo, equiparando situações díspares, ao contrário do que prevê, por exemplo, a Lei n° 11.343/2006 (art. 42), que aumenta a pena do tráfico de quantia excepcional de droga especialmente lesiva. Também ali a transnacionalidade é mera causa de aumento de pena (art. 40, I), que varia de um sexto a dois terços, não qualificadora ou um tipo especial.
Tudo isso está, portanto, a recomendar que se dê aos fatos narrados na denúncia uma interpretação mais justa e adequada ao caso, dando o paciente como incurso nas penas do art. 14 da Lei ou em tipo penal semelhante.
Ou simplesmente se declare a inconstitucionalidade da pena cominada, como fez o STF quanto ao art. 273 do Código Penal (Recurso Extraordinário 979962, em 2021), oportunidade em que foi fixada a seguinte tese:
É inconstitucional a aplicação do preceito secundário do art. 273 do Código Penal, com redação dada pela Lei nº 9.677/98 (reclusão, de 10 a 15 anos, e multa), à hipótese prevista no seu § 1º-B, I, que versa sobre importar, vender, expor à venda, ter em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribuir ou entregar produto sem registro no órgão de vigilância sanitária. Para estas situações específicas, fica repristinado o preceito secundário do art. 273, na sua redação originária (reclusão, de 1 a 3 anos, e multa).