Tráfico de droga: artigo retirado de um jornal datado do ano 2.097
Quem vê hoje, com certa indiferença, nalguns cafés, boates e bares brasileiros jovens maiores de dezoito consumirem, livremente, maconha, cocaína, cigarro, cerveja, uísque ou droga similar, ou assiste à respectiva propaganda na tv, seguida de advertência do Ministério da Saúde dos males que causam, pode não acreditar, mas há cinqüenta anos, algumas dessas pessoas (traficantes de droga ilícita, como maconha ou cocaína) seriam presas e condenadas a longos anos por tráfico ilícito a penas que variavam de cinco a quinze anos de prisão, época em que tais delitos, hoje um ato legal e devidamente regulamentado, eram severamente punidos e seus autores por vezes mais estigmatizados do que ladrões. Desnecessário dizer que havia países que castigavam tais infrações com pena de morte inclusive (no dia 5 de setembro de 2007 foram executados 21 pessoas por enforcamento no Irã, totalizando 189 execuções no ano até aquela data).
E o mais estranho é que a política de repressão ao tráfico era reconhecidamente um fracasso retumbante. Sim, porque, a pretexto de combater a produção e o consumo de cocaína ou similar, a sua radical proibição produzia efeitos desastrosos: fomentava preços artificiais e absurdamente altos, tornando tais atividades extremamente rentáveis e atrativas, especialmente numa sociedade de consumo; consumidores inadimplentes eram não raro mortos por traficantes; grupos rivais travavam uma guerra sangrenta entre si e produziam mortos diários; policiais executavam traficantes e traficantes matavam policiais; balas perdidas faziam vítimas sem cessar; traficantes aterrorizavam favelas e bairros periféricos; lavava-se o dinheiro sujo em bancos, casas de câmbio e similares; corrompiam-se agentes da segurança pública quase que sistematicamente; armas de grosso calibre eram traficadas em grandes quantidades para municiarem os criminosos etc.
Enfim, longe de reprimir o comércio proibido, a lei penal servia, em verdade, para alimentá-lo e fomentá-lo, qual gasolina lançada sobre o fogo, pois produzia efeitos claramente contraproducentes ou criminógenos. Ignorava-se a advertência de que todos têm o direito de irem para o céu ou o inferno como quiserem, desde que no caminho não violem as pessoas ou seus bens (Morris e Hawkins); ignorava-se que a rigor o tráfico é um crime sem vítima, um comércio como outro qualquer, embora proibido: alguém quer consumir/comprar droga e sempre haverá quem queria vender; ignorava-se que pessoas consomem drogas (lícitas ou ilícitas) pela mesma razão que fazem sexo ou comem chocolate: o prazer, ainda que fugaz; alguns ficam viciados, outros não. Mais: drogas são neutras, como neutra é uma faca de cozinha ou um martelo, que pode ser usada para atividade doméstica, mas também para ferir ou matar alguém: a droga, o martelo e a faca são inocentes, não as pessoas que as utilizam para cometer crimes.
Sabemos hoje que proibir não é controlar; proibir, em geral, significa apenas remeter tais atividades para a clandestinidade, onde não existe controle algum. A repressão da lei penal servia assim apenas para criar uma falsa e demagógica impressão de segurança, até porque, apesar da repressão simbólica, mas que produzia vítimas reais, drogas eram produzidas em larga escala e facilmente adquiridas em todos os rincões do país.
Hoje, droga é livremente produzida por laboratórios credenciados e comercializada em drogarias e estabelecimentos similares, com controle de qualidade inclusive, em respeito ao consumidor, sujeita a pesados tributos, havendo hospitais e clínicas especializadas para tratarem de dependentes, de sorte que droga já não mais é um problema de polícia, mas um problema de saúde pública, um problema ainda grave, sem dúvida, mas que está sob controle e, mais importante, sem produzir as vítimas e os horrores do passado. Realmente a história da repressão à droga, que vitimou milhões de pessoas em todo o mundo, comprovou o acerto da política de abolição da repressão legal, coisa absolutamente impensável há meio século. Ficou claro enfim que é preciso trabalhar com o máximo de políticas sociais e com um mínimo de direito penal.
Paulo Queiroz é Professor Universitário (UniCEUB) e Procurador Regional da República em Brasília.