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Tipos penais em branco

Os tipos – ou leis – penais em branco são os que, embora cominem a pena, trazem uma definição incompleta do crime (preceito primário incompleto) e, por isso, fazem remissão, explícita ou implicitamente, a outro preceito normativo que supre a omissão. Por serem incompletos, só podem ser compreendidos e aplicados em conjunto com as normas que complementam o respectivo tipo.

Essa classificação pressupõe a existência de tipos completos, que conteriam toda a matéria proibitiva, e de tipos incompletos, que careceriam dessa completude. Os exemplos clássicos de tipos penais em branco são o tráfico de entorpecentes e a omissão de notificação de doença (CP, art. 269), pois são integrados pela legislação que lista as drogas ilícitas e as doenças de notificação compulsória.

Quando há remissão a dispositivo de mesmo grau hierárquico (lei), fala-se de tipo penal em branco homogêneo; e quando a integração do tipo fica a cargo de norma de grau hierárquico inferior (portaria etc.), tem-se uma norma penal heterogênea. Autores há, porém, que trabalham com um conceito mais restrito, entendendo que só existe norma penal em branco no segundo caso (heterogênea).1

Santiago Mir Puig, que trabalha com um conceito mais amplo, considera, com razão, que há tipo penal em branco inclusive quando houver remissão a ato de autoridade para que o complemente. O tipo poderá remeter, portanto, a leis, atos normativos ou decisão de autoridade pública.2 Exemplo: “matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida” (Lei n° 9.605/98, art. 29).

De fato, o tipo supra remete, de modo explícito, a sua complementação a ato normativo do poder executivo; e se houver a devida permissão, licença ou autorização, o fato será atípico; caso contrário, o agente incidirá em crime.

A constitucionalidade dos tipos penais em branco (heterogêneos) é das mais controvertidas.

O parecer da doutrina majoritária é pela constitucionalidade, a qual postula o atendimento de certos requisitos. Assim, por exemplo, Luzón Peña, para quem o recurso à técnica de remissão há de ser absolutamente excepcional por resultar estritamente necessário e imprescindível para completar a descrição típica da conduta.3 De modo semelhante, Cerezo Mir diz que essa técnica de remissão só é aceitável quando necessária por razões de técnica legislativa e pelo caráter sempre mutável da matéria objeto da regulação, que exigiria uma revisão muito frequente das ações proibidas ou ordenadas, motivo pelo qual na lei penal em branco já deve estar contida a descrição do núcleo essencial da ação proibida ou ordenada.4 E Jescheck considera que, quando a norma que há de completar o tipo penal em branco tiver caráter delegado, o legislador deve prever a cominação legal, bem como descrever com precisão o conteúdo, a finalidade e o alcance da autorização para que o cidadão possa extrair, já na lei mesma, os pressupostos da punibilidade e a classe de pena, pois do contrário não se respeitaria o princípio da determinação legal do delito e da pena.5

Defendíamos, com a doutrina minoritária, a inconstitucionalidade dos tipos penais em branco heterogêneos nos seguintes termos:

Temos que os tipos penais em branco que remetem o complemento à norma inferior (tipos penais em branco heterogêneos) são inconstitucionais, por implicarem violação aos princípios da reserva legal e divisão de poderes.

Com efeito, tomando como exemplo o tráfico ilícito de drogas, tem-se que a lei brasileira atende aos requisitos exigidos pelo tribunal espanhol, uma vez que, ao descrever o núcleo essencial da conduta típica, criminaliza mais de uma dezena de verbos e comina a pena cabível. Além disso, pode-se dizer que o bem jurídico supostamente protegido – a saúde pública – justifica plenamente a remissão. Estariam assim satisfeitas as exigências daquela Corte constitucional.

No entanto, quando a lei permite que o “núcleo essencial da proibição” seja completado por simples ato administrativo, é o Poder Executivo quem dirá, em última análise, o que constitui ou não tráfico ilícito de drogas; afinal é ele que, um tanto arbitrariamente, discriminará as drogas que devem constar do rol do núcleo essencial da proibição.

Convirá saber então: quem acaba por definir realmente o que é tráfico ilícito de entorpecentes? Parece claro que não é o Poder Legislativo, mas o Poder Executivo, mais exatamente o Ministério da Saúde (ANVISA), que se utiliza de simples portaria para tanto, decretando, dentro do vastíssimo universo das drogas, as que devem ser consideradas ilícitas. Enfim, quanto ao assunto drogas ilícitas, quem legisla sobre matéria penal é, em última instância, o próprio Ministério da Saúde (Poder Executivo), mesmo porque a lei penal em branco era até então uma “alma errante em busca de um corpo” (Binding), e, portanto, carente de autoaplicação, ante a manifesta imprecisão de seus termos e consequente necessidade de complementação. Até aí a lei penal era uma espécie de cheque em branco emitido em favor do Executivo.

Por conseguinte, semelhante ato viola a um tempo o princípio da reserva legal, por tolerar que simples portaria emanada do Poder Executivo possa dispor sobre matéria penal, criminalizando uma dada conduta, e o princípio da divisão de poderes, já que é aquele poder, e não o Legislativo, que acaba legislando em tal caso.

Mas isso não quer dizer que os tipos penais em branco sejam sempre inconstitucionais; inconstitucional é apenas a remissão à norma inferior que não ostente o status de lei em sentido formal, bem assim o preceito de norma que não contenha o núcleo essencial da proibição ou que nem sequer preveja a pena. O primeiro obstáculo poderá ser superado com a edição de lei pelo Congresso Nacional declaratória das drogas ilícitas, ainda que meramente homologatória de proposta (portaria) do Ministério da Saúde, de sorte a converter uma norma penal em branco heterogênea em homogênea; o segundo, com a redação de tipos penais com precisão de seus elementos constitutivos, conforme o princípio da taxatividade. Em isso não ocorrendo, tolerar-se-á mais uma violação ao princípio da reserva legal, entre tantas violações que o silêncio ou conveniência vai perpetuando.

Por fim, quanto à circunstância de a matéria objeto da remissão ser ordinariamente instável, o que a justificaria, temos que a instabilidade e a incerteza recomendam justamente o contrário: que não deveria ser objeto de criminalização ou que somente o fosse depois de exaustiva discussão sobre o assunto, motivo pelo qual, também por essa razão, o Poder Legislativo deveria se manifestar previamente sobre o assunto.”

 

Já não pensamos assim, seja porque, quando da redação das normas jurídico-penais, proibitivas ou permissivas, é impossível abdicar da técnica de remissão a atos normativos e administrativos do poder público, seja porque nem sempre é possível complementar uma lei por meio de outra lei (tipos homogêneos), por mais que isso seja desejável do ponto de vista da segurança jurídica.

Com efeito, não fosse a remissão não poderíamos legislar penalmente sobre sistema financeiro, ordem econômica e tributária, meio ambiente, drogas etc., entre outros temas importantíssimos, pois no particular não é possível definir crimes senão com o concurso da instituição interessada (Banco Central, Fazenda Pública, Ministério da Saúde etc.). Se levássemos, portanto, a tese às últimas consequências, teríamos de reconhecer a inconstitucionalidade de grande parte da legislação especial e do próprio Código Penal.

Além disso, dada a estrutura inevitavelmente aberta da linguagem jurídica, todos os tipos penais são nalguma medida abertos ou incompletos, embora a abertura e a incompletude variem de grau. Sim, porque mesmo o homicídio (CP, art. 121), que seria o melhor exemplo de tipo perfeito ou completo, só pode ser compreendido num contexto mais amplo, sobretudo o homicídio culposo, já que remete, diretamente, à imprudência, negligência ou imperícia no exercício de certa atividade e, indiretamente, às normas que a regulamentam (direito de trânsito etc.). O mesmo pode ser dito, mutatis mutandis, quanto à imputação por omissão imprópria (CP, art. 13, §2°).

E se a técnica remissiva é inerente à atividade legislativa regular, não é, por conseguinte, condenável em si mesma, razão pela qual não cabe falar de inconstitucionalidade só por isso.

Finalmente, parece-nos que a classificação é perfeitamente superável.

 

 

1 Nesse sentido, Rodrigues Mourullo. Derecho Penal. Parte general. Madrid: Civitas, 1978.

 

2 Derecho penal, parte general, 9a edición. Barcelona: Editorial Reppertor, 2011, p. 66 e ss.

 

3 Curso de derecho penal. Madrid: Ed. Universitas, 1996, p. 146 e ss.

 

4 Curso de derecho penal español: introducción. Madrid: Tecnos, 1997, p. 156.

 

5 Tratado, cit., p. 98.

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