De acordo com a Súmula 7 do STJ, “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. No mesmo sentido, a Súmula 279 do STF: “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário.”
Como interpretá-la?
Inicialmente, não é exato afirmar que o STJ apreciaria exclusivamente matéria de direito, não matéria de fato, pois tal distinção é impossível, já que o direito trata de fatos jurídicos. No caso do direito penal, o fato juridicamente relevante configura, em tese, infração penal (crime ou contravenção). Não existem fatos, mas interpretações (Nietzsche. A vontade de poder. São Paulo: Contraponto, 2008). Logo, não existem fenômenos jurídicos, nem jurídico-penais, mas uma interpretação jurídica e jurídico-penal dos fenômenos.
As questões de fato e as questões de direito são, pois, inseparáveis. Como ensinou Castanheira Neves, o jurista pensa o fato a partir do direito e pensa o direito a partir do fato. Textualmente: “…Pois geralmente se reconhece que a distinção absoluta, ou logicamente pura, entre ‘o direito’ e o ‘facto’ não é realizável, dado que, se por um lado, os ‘factos relevantes’ são já em si seleccionados e determinados em função da norma aplicável, em função de uma perspectiva jurídica, a norma aplicável (o direito), por outro lado, não pode deixar de ser seleccionada e determinada em função da estrutura concreta do caso a decidir. Ao considerar-se a questão-de-facto está implicitamente presente e relevante a questão-de-direito; ao considerar-se a questão-de-direito não pode prescindir-se da solidária influência da questão-de-facto. Ou, numa formulação bem mais expressiva: ‘para dizer-se a verdade ‘o puro facto” e o ‘puro direito’ não se encontram nunca na vida jurídica: o facto não tem existência senão a partir do momento em que se torna matéria de aplicação do direito, o direito não tem interesse senão no momento em que se trata de aplicar o facto; pelo que, quando o jurista pensa o facto, pensa-o como matéria do direito, quando pensa o direito, pensa-o como forma destinada ao facto.” António Castanheira Neves. Questões-de-facto – Questões de direito. Coimbra: Livraria Almedina, 1967, p.55/56. Para uma crítica à distinção, ver também Benedito Cerezzo Pereira Filho e Rodrigo Nery. Fato e Direito no Recurso Especial. O mito da distinção. São Paulo. RT, 2022.
Mesmo que o recurso especial discuta, por exemplo, a aplicabilidade do princípio da insignificância num crime de furto (atipicidade do fato), o STJ terá de decidir – ou pressupor – se estão provadas a materialidade e a autoria do fato, se houve crime, simples ou qualificado, se a conduta imputada é penalmente relevante, se o autor é primário ou reincidente, se houve consumação ou tentativa, se a perda ou a apreensão da coisa deve ser considerada, se é importante a condição econômica do autor e da vítima etc. Mutatis mutandis, o mesmo ocorreria se tivesse de decidir – tema dos mais recorrentes no STJ – se houve bis in idem na aplicação da pena.
A Súmula 7 não impede, pois, o conhecimento e análise de matéria de fato ou mesmo de prova, por mais complexa. Frequentemente, o STJ, decide, por exemplo, em recurso especial e em habeas corpus, se é lícita a busca e apreensão realizada em residência a partir de “denúncia anônima” de tráfico de drogas. Nessa hipótese, haverá inevitavelmente reexame de prova, para saber se havia justa causa para a ação policial, se a prova colhida a partir de denúncia anônima é ilícita por derivação, se há prova independente que autorize o processo ou a condenação etc. Mutatis mutandis, o mesmo ocorreria se tivesse de decidir se a sentença de pronúncia foi proferida com base exclusiva no inquérito policial, com violação ao art. 155 do CPP.
Logo, também o exame e reexame de prova é possível por meio de recurso especial. Exatamente por isso, a Súmula não veda o “reexame de prova”, mas o “simples” reexame de prova.
Se não veda a análise de questão de fato, nem de prova, o que a Súmula 7 veda então?
O que a Súmula proíbe é transformar o STJ em Tribunal de Justiça, e, pois, o recurso especial em apelação. O recurso especial não é uma apelação com outro nome. Mas o que isso significa?
Significa que o recorrente não pode simplesmente pretender a rediscussão dos fatos controvertidos da causa, ou, mais exatamente, pretender reapreciar o arcabouço probatório, para condenar ou absolver o recorrente, em virtude de uma alegada má apreciação ou má valoração da prova. Nesse caso, haveria “simples” reexame de prova e o Superior Tribunal de Justiça faria o papel de Tribunal de Justiça, eternizando o julgamento da causa.
O recorrente não pode, por exemplo, alegar apenas que os elementos de prova não são suficientes para condenar, por entender que os depoimentos das testemunhas são contraditórios ou que não são confiáveis etc.
Aqui incidiria a vedação sumular, de pretensão de mero reexame da prova, de transformar o recurso especial em apelação, e o STJ em TJ.
Mas nada impediria a rediscussão da tipificação penal do fato, desde que os fatos sejam incontroversos. Assim, por exemplo, se dirigir veículo automotor embriagado e matar alguém respeitando o limite de velocidade configura homicídio doloso ou culposo (dolo eventual ou culpa consciente). Ou se o furto noturno é compatível com o furto qualificado.
Nessa hipótese, possivelmente o STJ invocaria a distinção, presente nalguns julgados, entre “reexame de prova” e “revaloração da prova”, para admitir o recurso especial. O que não é dito nesses precedentes é que a revaloração pressupõe reexame. E talvez não passem de palavras distintas para designar em última análise o mesmo fenômeno.
Em suma, o problema não está no enunciado da Súmula, mas na interpretação que pretende o não conhecimento do recurso especial pelo só fato de as alegações de direito exigirem inevitavelmente a verificação dos fatos, ainda que mínima ou superficial.
Por fim, cabe lembrar que, no caso de não conhecimento do recurso especial, é perfeitamente possível a concessão de habeas corpus de ofício (CPP, art. 654, §2°), inclusive com extensão aos corréus (CPP, art. 580). Assim, por exemplo, se o STJ afastar as circunstâncias judiciais negativadas na fixação da pena-base em razão de bis in idem, tal decisão deverá se comunicar aos demais acusados.