Por CARLOS VIVEIROS[1]
O tipo penal de estupro violento (art. 213 CP) castiga com reclusão de 6 a 10 anos a conduta de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Tradicionalmente, interpreta-se que o verbo típico “constranger” consistiria em coagir, forçar, obrigar, tolher a vontade da vítima. Vontade esta que, para que se pudesse falar na ocorrência de estupro, deveria ser sincera, expressa e manifestamente contrária ao ato sexual pretendido pelo sujeito ativo. Assim, nas palavras de Hungria, “o dissenso da vítima deve ser sincero e positivo, manifestando-se por inequívoca resistência. Não basta uma platônica ausência de adesão, uma recusa meramente verbal, uma posição passiva ou inerte. É necessária uma vontade decidida e militantemente contrária, uma oposição que só a violência física ou moral consiga vencer”1.
A interpretação em questão nos coloca ante sensíveis dificuldades naquelas situações em que não há uma externalização enérgica, por parte da vítima, de uma vontade contrária ao ato sexual, mas nas quais tampouco está presente seu consentimento com tal ato. Isso porque, de adotar-se a interpretação tradicional, será necessário reconhecer que casos dessa natureza, ou seriam atípicos, ou se amoldariam “meramente” à figura delitiva de importunação sexual, que estabelece marco penal bastante inferior ao do tipo de estupro (concretamente, reclusão de 1 a 5 anos)2.
Longe de tratar-se de mera peculiaridade do Direito brasileiro, a questão vem sendo objeto de debate e deliberação no plano internacional há certo tempo, seja no seio de decisões das Cortes internacionais de Direitos Humanos, seja no âmbito da atividade legiferante. Ao respeito, cabe desde logo destacar que a tendência atual tem sido em sentido oposto à doutrina tradicional supracitada: passam a considerar-se estupro também aquelas situações em que é possível afirmar que, apesar de não haver resistido “firmemente”, a vítima tampouco consentiu com o ato sexual.
Assim, já em 2003, perante situação na qual a vítima não havia resistido fisicamente ao autor durante a execução do ato sexual, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos3 entendeu que restringir a incidência do tipo penal de estupro aos casos em que a vítima apresenta resistência física, constitui uma implementação insuficiente da obrigação positiva de punição e investigação do estupro, contida nos arts. 3 e 8 da Convenção Europeia de Direitos Humanos. No mesmo sentido, e mais recentemente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos4 consignou que “a resistência exigida pelo tipo penal dificulta, ademais, que casos sejam penalmente solucionados por questões probatórias, visto que o Poder Judiciário exigiria, sob essa ótica, a prova física não só da incapacidade de resistir, como também da demonstração de resistência, requisitos de difícil verificação probatória”.
São abundantes, ademais, exemplos da tendência supracitada no âmbito político-legislativo. Para citar dois deles: no Direito suíço, a redação do tipo penal de estupro (art. 190 do CP suíço) foi modificada pela “Lei federal de revisão do direito penal sexual” de 2023 para incluir “o aproveitamento de um estado de choque” na vítima como hipótese configuradora do delito em questão. E na Espanha, após a aprovação da chamada “Ley del sólo sí es sí”, o tipo penal de agressão sexual do art. 178.1 do Código Penal espanhol passou a prever que “sólo se entenderá que hay consentimiento cuando se haya manifestado libremente mediante actos que, en atención a las circunstancias del caso, expresen de manera clara la voluntad de la persona”. Como se pode apreciar, o preceito é ainda mais radicalmente oposto à doutrina tradicional supracitada: em vez de prever que a oposição da vítima ao ato sexual deva ser sincera e manifesta, exige que seu consentimento com tal ato assim o seja.
No Brasil, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios busca, atualmente, uma mudança na compreensão da temática pela via jurisprudencial, concretamente, no Recurso Especial nº 2105317/DF. Na situação fática que deu ensejo à interposição de tal recurso, o suposto autor dos fatos, após realizar penetração vaginal consentida, iniciou penetração anal em relação à qual a mulher havia dissentido previamente. A falta, contudo, de uma reação “séria e efetiva” que demonstrasse tal dissenso por parte da vítima contemporaneamente à penetração anal, levou o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios a absolver o suposto autor dos fatos quanto à imputação de estupro. Contra esta absolvição, se insurge o parquet distrital no mencionado recurso, cujo agravo regimental – interposto contra decisão do Ministro relator que o inadmitiu – se encontra pendente de julgamento.
À tendência jurisprudencial e político-legislativa retratada subjaz, inegavelmente, a transição de uma concepção dos delitos sexuais como atentados à “velha moral sexual”, à sua compreensão como violações à liberdade de autodeterminação sexual do indivíduo5. O conceito-chave desta última compreensão repousa na ideia do consentimento: uma vez constatada a ausência deste, passa-se a ver o próprio ato sexual como violência e agressão ao indivíduo contra o qual fora praticado. Daí que o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslavia tenha, inclusive, prescindido da violência como elementar típica autônoma, ao definir o actus reus do crime de estupro no direito penal internacional como a “penetração sexual sem o consentimento da vítima”6.
Entendemos, sem embargo, que o transplante de tal tendência ao ordenamento jurídico brasileiro sem matizações seria arriscado. Não se pode perder de vista que nosso tipo penal de importunação sexual também criminaliza a realização de atos libidinosos sem o consentimentoda vítima. De entender-se que todo e qualquer ato libidinoso praticado sem o consentimento desta já configura o crime de estupro, esvaziar-se-á o âmbito de incidência do art. 215-A do CP, com uma correspondente expansão desmesurada do alcance da figura de estupro a atos libidinosos cuja gravidade não é proporcional ao marco penal desta última figura delitiva7. Um possível “termo médio” – sobre o qual doutrina e jurisprudência ainda hão de refletir mais detidamente – poderia consistir na adoção do entendimento em questão tão somente quanto aos atos libidinosos que envolvam penetração (vaginal, anal ou oral).
1 Comentários ao Código Penal. Vol. VIII. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, cit., p. 118.
2 Ressalvados, evidentemente, os casos em que os meios empregados pelo autor – como, por exemplo, álcool ou entorpecentes – causem uma incapacidade absoluta de discernimento e/ou resistência na vítima, hipóteses nas quais terá aplicação o tipo penal de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP).
3 Sentença N. 39279/98 de 04/03/2024 – caso M.C. versus Bulgária.
4 Sentença de 18 de novembro de 2022 – Caso Angulo Losada versus Bolívia, § 66.
5 Descrita por CORRÊA CAMARGO, Beatriz.; RENZIKOWSKI, Joachim. El concepto de “acto de naturaleza sexual” en el derecho penal. InDret, Barcelona, 2021, pp. 161 e s.
6 ICTY, The Prosecutor v. Dragoljub Kunarac, Radomir Kovac and Zoran Vukovic, IT-96-23 and IT-96-23/1, Appeals Chamber, Judgement, 12 June 2002, § 460.
7 A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já trilha tal caminho no que tange aos atos libidinosos praticados contra menores de 14 anos. Assim, segundo o Tema Repetitivo 1121/STJ: “Presente o dolo específico de satisfazer à lascívia, própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP), independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a desclassificação para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP)”.