1)Introdução
A Constituição diz que são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos (CF, art. 5°, LVI), assim entendidas as que violam normas constitucionais ou legais (CPP, art. 157).
Como a proibição de prova constitui, essencialmente, uma garantia constitucional destinada à proteção de direitos fundamentais e a efetivar o devido processo legal, a sua admissão está vedada apenas contra o réu, não em seu favor, já que uma norma protetiva não pode ser interpretada contrariamente à sua finalidade, isto é, contra aquele que se quer proteger. Justo por isso, não se pode acusar com base em prova ilícita sob pretexto algum. Apesar disso, o réu injustamente acusado pode valer-se de prova ilícita para demonstrar sua inocência, atenuar-lhe a pena ou anular o processo.
Mas o tema é controvertido, havendo doutrina e precedentes admitindo a prova ilícita também contra o réu, com base no princípio da proporcionalidade.
Já vimos que parte da doutrina distingue prova ilícita de prova ilegítima, distinção que carece, todavia, de consistência, especialmente numa perspectiva integrada de direito, processo e execução penal. Afinal, ou a prova é lícita ou é ilícita. Se lícita, mas desatender à forma legal, o caso será de nulidade do ato processual, não de nulidade da prova mesma, cuja teoria é aplicável tanto à prova legal quanto à ilegal. A colheita de prova ilícita sempre implica nulidade do ato processual.
Não é correto falar-se, por isso, de prova nula ou irregular, pois a invalidade tem a ver com o ato processual relativo à prova, não com a prova mesma, embora seja comum confundir-se o ato de colheita da prova com a própria prova1. A distinção entre prova ilícita e prova ilegítima é um exemplo dessa confusão, visto que a prova dita ilegítima é um caso de prova lícita, mas colhida de forma inválida (v.g., interrogatório judicial sem a presença do advogado).
No caso de prova ilícita, o ato processual de produção da prova é sempre nulo e mais gravemente punido, uma vez que a lei comina uma dupla punição: exclusão do processo e inutilização da prova. Já o ato processual que colhe uma prova lícita de modo irregular implica apenas a nulidade do ato, que pode ser renovado.
2)Prova ilícita por derivação
A prova ilícita, além de corromper a prova originária, contamina toda prova que dela deriva direta ou indiretamente, produzindo uma reação em cadeia que compromete tudo que dela resultar (CPP, art. 157, §1°2). Assim, por exemplo, uma confissão obtida mediante tortura atinge tudo que for produzido a partir dela, ainda que feito legalmente: interceptação telefônica, busca e apreensão, confissões espontâneas etc. Incide, aqui, a teoria dos frutos da árvore envenenada, originariamente adotada no caso Silverthorne Lumber Co. v. United States, de 1920. O nome frutos da árvore envenenada (fruit of the poisonous tree) só surgiu, porém, no voto do juiz Felix Frankfurther, no caso Nardone v. United States, de 1939.
Nem sempre foi assim, isto é, nem sempre se entendeu que a prova ilícita devia ser excluída do processo. Tradicionalmente entendia-se que uma prova ilegal era uma prova como qualquer outra, logo, poderia ser utilizada no processo, sem prejuízo da responsabilidade civil ou penal do autor ato ilícito. Assim, por exemplo, responderia penalmente o policial que obtivesse uma confissão mediante tortura ou violasse o sigilo da correspondência. A prova ilegal tinha apenas consequências civis ou penais, não processuais, sendo admitida e valorada no processo. E ainda hoje há quem defenda essa ideia3.
O que importava, portanto, não era o modo como se colhia a prova, se ela era lícita ou ilícita, mas o quão verossímil, consistente e fiável era para o julgamento da causa; importava, pois, a verdade, não o modo de produção da verdade, que era irrelevante. O fim (a verdade e a punição do culpado) justificava os meios (lícitos ou não).
Com efeito, a regra da exclusão da prova ilegal (exclusionary rule) só veio a ser adotada pela Suprema Corte norte-americana no caso Boyd v. US, de 1886, e em Weeks v. US, 1914. Atualmente é considerada a regra mais controversa do processo penal norte-americano4, havendo diversas iniciativas no sentido de reduzir a incidência da regra (p. ex., Reform Act of 1997). Nem falta quem a considere uma injusta regra de exclusão (exclusionary injustice5), que protegeria os criminosos em prejuízo de suas vítimas.
A prova ilícita não atinge, contudo, a prova independente, que não tem relação com ela, já que obtida ou passível de ser obtida por meios lícitos e autônomos. A contaminação da prova pressupõe, por conseguinte, que haja nexo causal entre a prova ilícita e a prova derivada. Logo, quando for colhida ou puder ser ainda colhida com base em fonte independente, sem relação com a prova ilícita, não haverá nexo causal nem contaminação da prova e, pois, será lícita. Se, por exemplo, o Ministério Público e a polícia conduzem duas investigações independentes e sigilosas sem compartilharem informações, a eventual colheita de prova ilícita por um deles não contaminará a investigação legítima do outro.
A questão crucial é saber, no caso concreto, se há ou não nexo causal, se a prova é ou não independente, se houve ou não contaminação da prova.
De acordo com art. 157, §2°, do CPP, considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova. Aqui é aplicável analogicamente o art. 13, segunda parte, do CP, que considera causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido (teoria da conditio sine qua non).
Embora a teoria contemporânea da prova ilícita tenha inspiração principalmente no direito norte-americano, é certo que a regra de proibição de provas não é exclusividade dos países do common law. De acordo com Damaška, a ideia surgiu inicialmente no direito continental e foi logo aceita, apesar de parecer estranho, no processo inquisitório do antigo regime. Com efeito, Próspero Farinacci, um dos advogados mais famosos do século XVI, já se insurgia (Concilia, 1610) contra a confissão do réu obtida mediante tortura ilegal, a qual, como qualquer meio de prova admitido na época, nem sempre era possível e devia seguir o prescrito em lei, sob pena de invalidade do ato6.
3)Avanços e retrocessos da regra da exclusão no direito norte-americano
No precedente citado (Silverthorne Lumber Co. v. United States, de 1920) o tribunal decidiu que a prova ilícita deveria ser excluída do processo, aí considerada a prova ilícita por derivação. Assentou também que prova obtida por fonte independente é válida. O juiz Oliver Wendell Holmes, Jr.7, disse o seguinte:
A essência de uma norma de proibição de aquisição de provas de certa maneira não se limita a determinar que as provas assim adquiridas não poderão ser utilizadas num tribunal, mas também que não poderão ser usadas de maneira nenhuma. É claro que isso não significa que os fatos assim obtidos se tornem sagrados e inacessíveis. Se a informação acerca dos mesmos for obtida através de uma fonte independente, então esses fatos podem ser provados tal como quaisquer outros, mas o conhecimento obtido pelo Estado por meios ilícitos não pode ser por si usado da maneira pretendida.
Apesar disso, em 1949 (Wolf v. Colorado), a Corte Suprema assentou que o precedente era aplicável aos tribunais federais, mas não necessariamente aos estados, que poderiam decidir de modo diverso. Somente no caso Mapp v. Ohio, de 1961, decidiu-se que a regra da exclusão era também aplicável aos estados, pois qualquer prova obtida mediante busca e apreensão com violação da Constituição é inadmissível nos tribunais federais e estaduais.
A jurisprudência norte-americana sobre a ilicitude da prova (exclusionary rule) está fundada na quarta emenda, que, em suma, proíbe buscas e apreensões arbitrárias, isto é, sem motivo razoável ou sem mandado judicial baseado em causa provável. Eventualmente invoca-se também a quinta emenda, que assegura o julgamento pelo grande júri, o privilégio contra a autoincriminação (privilege against self-incrimintion) e o direito de não ser julgado mais de uma vez pelo mesmo fato (double jeopardy).
Outro precedente importante é Miranda v. Arizona, de 1966, que declarou ser ilegal, não podendo ser admitida no processo, a confissão obtida sem prévia advertência das garantias do interrogado (Aviso de Miranda ou Miranda Rights), especialmente o direito ao silêncio e o direito a um advogado.
Prova ilegal é (rectius, era), em suma, prova que ofende a quarta emenda, devendo ser excluída do processo.
4)Exceções à regra da exclusão da prova ilícita
Embora liberal/garantista na sua origem, especialmente a partir dos anos 80, a Suprema Corte passou a adotar diversas exceções que limitaram consideravelmente a aplicação da regra da exclusão. Tantas são as exceções que já não está claro o que é regra e o que é exceção. Vejamos as três principais: a)exceção da boa-fé – good faith exception (US v. Leon, 1984; Massachusetts v. Shepparad, 1984; Maryland v. Garrison, 1986; Illinois v. Krull, 1987; Arizona v. Youngblood, 1988; Arizona v. Evans, 1995; Herring v. EUA, 2009; Davis v. EUA, 2011; b)exceção da descoberta inevitável – inevitable discovery rule (Nix v. Williams, de 1984; Murray v. United States, 1988; Hudson v. Michigan, 2006; United States v. Stokes, 2013; United States v. Camou, 2014; State of Wisconsin v. Mastella L. Jackson, 2016); c)exceção do nexo causal atenuado (Wong Sun v. US, 1963 etc.).
A prova obtida por fonte independente não é uma exceção à regra da exclusão, embora seja comum afirmá-lo, mas uma hipótese em que não há nexo causal, nem contaminação, razão pela qual a prova é lícita.
De acordo com a exceção da boa-fé, quando a polícia cumpre um mandado de busca e apreensão ou realiza outra diligência de boa-fé ou descumpre certo protocolo na produção da prova, ainda que violando garantias do investigado, a prova assim colhida é lícita, razão pela qual não pode ser excluída do processo, como nos seguintes casos: a)busca e apreensão em apartamento errado, por engano, não por má-fé, onde se encontrou droga ilícita; b)busca e apreensão com base em mandado anulado posteriormente ou que já havia sido revogado; c)busca e apreensão com fundamento em lei estadual declarada inconstitucional; d)a não preservação do material genético pela polícia, o qual poderia, em tese, inocentar o acusado, não compromete a atuação da polícia, nem a prova, exceto se a defesa demonstrar que a polícia agiu de má-fé.
Reconheceu-se, contudo, nesse último caso (Arizona v. Youngblood, 1988), que o Estado tinha o dever de preservar o material probatório em condições que permitissem sua análise com segurança. É importante notar que a defesa conseguiu demonstrar, posteriormente, que o material genético não era de Larry Youngblood, condenado por sequestro e estupro de um menor de dez anos, e ao final inocentado, mas de Walter Cruise, que acabou condenado8.
Nesse caso, o juiz da Suprema Corte William Rehnquist havia dito que a menos que o réu demonstre que a polícia agiu de má-fé, falha na preservação de prova potencialmente útil não constitui uma violação do devido processo legal.
Segundo a exceção da descoberta inevitável, a prova obtida ilegalmente pela polícia deve ser admitida no processo se ficar demonstrado que as evidências seriam colhidas inevitavelmente por métodos legais. A exceção está fundada, portanto, num cálculo probabilístico capaz de salvar a prova já contaminada pela ilicitude. Semelhante cálculo não pode, porém, amparar-se em mera especulação, mas em elementos concretos de prova que demonstrem a inevitabilidade da descoberta do crime por meios legais.
De acordo com o juiz Warren Burger (Nix v. Williams, 1984), a exclusão de uma prova física que seria inevitavelmente descoberta nada acrescentaria à integridade e à justiça do julgamento. O juiz referia-se à localização do corpo da menina Pamela Powers (dez anos), obtida a partir da confissão ilegal de Robert Williams, portador de transtorno mental e acusado de homicídio. A inevitabilidade da descoberta devia-se ao fato de haver duzentos voluntários à procura do corpo na região onde foi encontrado com base na confissão ilegal.
A exceção da descoberta inevitável é uma espécie de fonte independente hipotética, já que firmada na probabilidade de que, se não houvesse a produção da prova ilícita, a polícia teria descoberto o crime inevitavelmente, de forma legal. Daí dizer Paulo de Sousa Mendes que ela é uma variante da fonte independente, mas que dela difere na medida em que não se exige que a polícia tenha de fato também obtido a prova por uma fonte independente e legal, mas apenas que tivesse podido, hipoteticamente, fazê-lo, como foi esclarecido no caso Clough v. State, de 19769.
Muito antes disso, porém, a Suprema Corte já havia admitido a exceção do nexo causal atenuado (Wong Sun v. US, 1963), que considera lícita a prova em virtude de o nexo causal ser frágil ou remoto por fato superveniente. Tratava-se de um caso em que o réu confessou os fatos após uma prisão ilegal por tráfico de droga, mas só o fizera depois de ter sido posto em liberdade, quando procurou a polícia e confessou o delito espontaneamente. Apesar de reconhecer que Wong Sung não teria confessado o crime se não tivesse sido preso ilegalmente, o tribunal considerou a nova confissão legal, porque voluntária.
4.1)Desconstitucionalização da regra da exclusão
Como se vê, a história recente da regra da exclusão é a história de sua progressiva contração. Com efeito, argumenta-se, em geral, que a exclusionary rule não pode ser levada a extremos e deixar impunes crimes graves pelo só fato da violação de regras procedimentais, havendo quem proponha, inclusive, que tais violações devam ser resolvidas no âmbito cível, sem repercussão sobre a prova penal, que deve ser admitida. Além disso, a finalidade principal, senão a única, da regra da exclusão seria dissuadir más condutas policiais (deterrent effect on police misconduct). De acordo com essa perspectiva, mais importante do que a proteção do inocente, é a condenação do culpado, ainda que com violação das garantias penais.
Como escreve Miranda Estrampes, se este é o fundamento no modelo norte-americano da regra da exclusão, se a própria Corte Suprema ou o poder legislativo chegassem à conclusão de que ela é ineficaz para cumprir tal finalidade, por existirem alternativas mais eficazes ou adequados, sua razão de ser despareceria e a regra da exclusão deixaria de ser aplicada10.
Em Hudson v. Michigan, afirmou-se, inclusive, que a regra da exclusão é produto de uma era passada, quando a polícia não era profissional e violações à quarta emenda eram frequentes, não podendo as gerações atuais pagarem pelos erros do passado. O juiz Antonin Scalia assinalou que a exclusão da prova sempre foi o último recurso do tribunal, não o primeiro, visto que gerava grandes custos sociais, ao deixar de punir criminosos perigosos, razão pela qual o tribunal deveria ser cauteloso ao aplicar a regra da exclusão. A exclusionary rule passa a ser então tratada como ultima ratio, a ser utilizada somente quando os efeitos preventivos fossem superiores aos custos sociais.
De acordo com Thomas Clancy, a partir de Calandra v. US, 1974, teve início um processo de desconstitucionalização da regra da exclusão, pois desde então passou-se a discutir, não mais os fundamentos e limites constitucionais da exclusionary rule, mas apenas se a exclusão era um meio eficaz de dissuadir a atuação ilegal e abusiva da polícia (deterrent effect). A questão deixou de ser, portanto, constitucional e passou a ser pragmática, girando em torno da relação custo-benefício, isto é, proporcionalidade da medida. Clancy escreve11:
A ideia de que a regra da exclusão tem base constitucional foi abandonada pelo tribunal, que enfaticamente desconstitucionalizou a questão em Calandra v. US. Desde então esse tem sido o seu firme posicionamento, já que poucos julgados estão fundamentados na Constituição. Além disso, a finalidade única da exclusionary rule passou a ser a de prevenir más condutas policiais, em prejuízo de outros fins clássicos, que foram relegados ao passado. Obviamente, quando se entendia que seu objetivo principal era cumprir as promessas da quarta emenda, de evitar buscas e apreensões arbitrárias ou sem causa provável “……”. Esse objetivo (defesa da Constituição) desapareceu com a desconstitucionalização da regra.
Também Silva e Duarte consideram que o golpe final contra a exclusionary rule iniciado em Calandra v. U.S. se daria em Herring v. US, de 200912:
Calandra é um precedente que abre caminho para diversos retrocessos. Inclui na discussão argumentos metajurídicos à aplicação da exclusionary rule, uma vez que se passa a analisar os custos sociais para o processo que a exclusão de evidências poderia trazer, isto é, a doutrina de Weeks é atacada com base em argumentos de ordem pública: inibir a conduta policial se tornou mais importante que a garantia dos direitos fundamentais do cidadão ao devido processo legal. A exclusionary rule perde seu status constitucional, e, em decorrência disso, deixa de ser um direito, em regra, oponível ao Estado quando de violações derivadas de buscas ilegais sob o fundamento da IV Emenda.
4.2.) A atual orientação da jurisprudência norte-americana é aplicável ao Brasil?
Temos que não. Com efeito, se lá assistimos à desconstitucionalização da regra da exclusão, fizemos aqui justamente o contrário com a Constituição de 1988 (art. 5°, LVI) e a reforma da Lei 11.690 de 2008 (art. 157 do CPP): constitucionalizamos e regulamentamos a exclusionary rule.
É fora de dúvida, portanto, que a proibição de provas é uma garantia individual inerente ao devido processo legal, razão pela qual não pode ser interpretada a partir de uma perspectiva puramente pragmática no sentido de que a regra tem como finalidade principal evitar condutas ilegais da polícia, por ser este um fim secundário ou indireto da proteção constitucional contra a ilicitude da prova.
Além disso, como é inerente ao devido processo constitucional, a proibição de prova pode ser oposta contra todos aqueles que participem da proposição, produção ou valoração da prova em qualquer área de atuação ou grau de jurisdição, sendo oponível a membros do Ministério Público e a todos os poderes (judiciário, legislativo e executivo), particulares etc., e não exclusivamente à polícia.
Consequentemente, parece que as exceções atualmente criadas contra a regra da exclusão de prova ilícita não nos servem, como a exceção da boa-fé etc. Afinal, com boa ou má-fé, o policial ou membro do MP que, por exemplo, entra em casa alheia sem mandado judicial e fora dos casos previstos em lei (prisão em flagrante delito etc.) e faz busca e apreensão age ilegalmente e produz assim prova ilegal, podendo, inclusive, cometer crime de violação de domicílio (CP, art. 150), no caso de dolo.
Considerações semelhantes devem ser feitas contra as exceções da descoberta inevitável e outras, que são casos de prova produzida ilegalmente.
Em suma, se o direito norte-americano foi nossa grande fonte de inspiração, já não o é mais. Cabe agora, pois, construir-se uma doutrina própria da prova ilícita com novas bases constitucionais compatíveis com o devido processo legal e com a nossa realidade social e política.
5)A prova ilícita no Brasil
Já vimos que a prova ilícita é terminantemente proibida tanto pela Constituição (art. 5°, LVI) quanto pelo Código de Processo Penal (art. 157). Mais: o CPP determina o desentranhamento da prova ilegal dos autos do processo, bem como a sua inutilização. Adotou-se, portanto, a regra da exclusão da prova ilícita (exclusionary rule).
Além disso, o art. 157, §1°, do CPP reconhece como ilícita a prova dela derivada (prova ilícita por derivação), salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. Afinal, se não houver relação de causalidade, não há mesmo falar de contaminação da prova, em virtude da independência da fonte.
No entanto, a pretexto de definir fonte independente (§2°), o Código parece transigir com a exceção da descoberta inevitável. Diz-se parece, dada a má redação do artigo ao apelar ao verbo ser no futuro do pretérito, além de confundir fonte independente com descoberta inevitável:
§2o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.
Existem precedentes do STJ no sentido de que a exceção da descoberta inevitável foi introduzida no CPP com a reforma de 2008, ora acolhendo, ora rejeitando a alegação.
6)Desentranhamento e inutilização da prova
A prova ilícita, por não ser passível de valoração, deverá ser desentranhada dos autos, a fim de evitar, inclusive, que induza o juiz a decidir com base nela, embora sem citá-la expressamente.
O art. 157, §3°, do CPP, determina, ainda, que, preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.
A inutilização ou destruição da prova nem sempre poderá ou deverá ocorrer, visto que: a)a prova ilícita a ser inutilizada poderá constituir prova de crime a ser investigado e processado (v.g., as confissões ilícitas constituem prova do crime de tortura); b)o objeto da prova ilícita pode ser pertencer a alguém, a quem deve ser restituído (v.g., cartas furtadas etc.); c)a prova, embora ilícita, poderá servir para inocentar outrem, podendo, por isso, ser utilizada.
1Germano Marques da Silva. Curso de processo penal, v. 2, p.118, cit.
2Art.157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
§1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.
3Nesse sentido, Amar, Akhil Reed, “Against Exclusion (Except to Protect Truth or Prevent Privacy Violations)” (1997). Faculty Scholarship Series. 939. https://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/939
4Gary S. Goodpaster, An Essay on Ending the Exclusionary Rule, 33 Hastings L.J. 1065 (1982). Available at: https://repository.uchastings.edu/hastings_law_journal/vol33/iss5/2
5Steven R. Schlesinger. Exclusionary injustice: The problem of illegally obtained evidence (Political science and public administration) Hardcover – 1977.
6Mirjan R. Damaška. El derecho probatorio a la deriva. Madrid: Marcial pons, 2015, p.30.
7 U.S. Supreme Court. Silverthorne Lumber Co. v. United States, 251 U.S. 385 (1920), No. 358. Argued December 12, 1919. Decided January 26, 1920.
8https://www.innocenceproject.org/cases/larry-youngblood/. Acesso em 21/11/2019.
9Paulo de Sousa Mendes. Lições de direito processual penal. Coimbra: Almedina, 2015, p.193.
10Estampres, Manuel Miranda. La prueba ilícita: la regla de exclusion probatoria y sus excpeciones. Revista Catalana de Seguretat, p. 131-151, 2010.
11Clancy, Thomas K., The Fourth Amendment’s Exclusionary Rule as a Constitutional Right (April 30, 2012). Ohio State Journal of Criminal Law, Vol. 10, 2012. Available at SSRN:https://ssrn.com/abstract=2048619.
12SILVA, Tales Cassiano; e DUARTE, Evandro Piza. Trajetórias interpretativas das garantias processuais e a desconstitucionalização da doutrina de exclusão de provas ilícitas na Suprema Corte dos Estados Unidos: Um exemplo para a doutrina constitucional brasileira? Texto ainda não publicado, 2019.