PODE O JUIZ FIXAR PENA ABAIXO DO MÍNIMO LEGAL?
A pergunta a formular e responder é a seguinte: pode o juiz aplicar pena abaixo do mínimo legal ainda quando não concorram causas de diminuição de pena ou circunstâncias atenuantes?
A resposta é, decididamente, sim!
Primeiro, porque, ao fazê-lo, não se dá, em tal caso, qualquer violação ao princípio da legalidade1. Segundo, porque aplicar a pena justa, não importando se no mínimo legal, aquém ou além dele, é uma exigência de proporcionalidade2.
Justifico. O princípio da legalidade, como de resto todos os princípios, constitui autêntica garantia, que, como tal, existe (historicamente) para proteger o cidadão contra os excessos do Estado, e não o contrário, para prejudicá-lo.
Representa, portanto, constitucionalmente, uma poderosa garantia política para o cidadão, expressivo do imperium da lei, da supremacia do Poder Legislativo – e da soberania popular – sobre os poderes do Estado, de legalidade da atuação administrativa e da escrupulosa salvaguarda dos direitos e liberdades individuais3. Por isso é que não há cogitar de afronta ao princípio sempre que a lei tiver de retroagir para beneficiar o réu, por exemplo, pois, em tal caso, não há ofensa ao caráter garantidor que o informa e justifica.
Aliás, é justamente em razão deste caráter garantístico do princípio que o contrário não pode acontecer, vale dizer, fixar o juiz a pena acima do máximo legal.
Já o princípio da proporcionalidade4, que compreende os subprincípios da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito (sentido tradicional), exige que a pena seja, a um tempo, necessária, adequada e compatível com o grau de ofensividade do delito cometido. Por isso que é dado ao juiz, por exemplo, socorrer-se do princípio da insignificância para decretar a absolvição, sempre que se achar diante de uma lesão ínfima ao bem jurídico que a norma quer tutelar.
Nem poderia ser diferente, uma vez que a missão do juiz já não é, como no velho paradigma positivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja o seu significado, mas sujeição à lei enquanto válida, isto é, coerente com a Constituição5.
Pois bem, se o juiz pode mais – absolver, dada a irrelevância – pode menos, evidentemente: aplicar pena aquém do mínimo legal. Assim, se, não obstante a pouca quantidade de droga, entender, na hipótese de tráfico (Lei 6.368/76, art. 12), inaplicável o princípio da insignificância, poderá aplicar a pena em 1 ano de reclusão, por exemplo, abaixo do mínimo legal, que é de 3 anos de reclusão.
Fundamental é fixar, sempre, uma pena justa para o caso, proporcional ao delito, conforme as múltiplas variáveis que o envolve (CP, art. 59), ainda que, para tanto, tenha o juiz de fixá-la aquém do mínimo legal. É legítima, pois, a aplicação de pena abaixo do mínimo. Entender o contrário é adotar uma postura anti-garantista.
Obviamente que, com maior força de razões, legítima será a aplicação da pena abaixo do mínimo legal se concorrerem circunstâncias atenuantes, como já reconheceu o (então) Ministro Cernicchiaro6, contrariamente à Súmula 231 do STJ.
1Este é o argumento principal, aliás, daqueles que, como Damásio (O Juiz pode, em face das circunstâncias atenuantes genéricas, fixar a pena aquém do mínimo legal abstrato?, Boletim do IBCCRIM, 73/03), são contrários à possibilidade de as circunstâncias atenuantes poderem reduzir a pena abaixo do mínimo legal.
2Não sem razão, tem-se proposto a abolição da pena mínima. Nesse sentido, Ferrajoli (Derecho y razón, p. 400, Ed. Trotta, Madrid, 1995) e Edson O’dwyer (Se eu fosse juiz criminal, Boletim do IBCCRIM, S. Paulo, n.86, jan. 2000).
3García-Pablos, Derecho Penal, p. 234, Madrid, 1995.
4Sobre o assunto, Paulo Queiroz, Direito Penal – Introdução Crítica, Saraiva, 2001.
5Ferrajoli, Derechos y garantías, p. 26, Ed. Trotta, Madrid, 1999.
6STJ, Resp. 151.837/MG- 6ªT –STJ –Rel. Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro – j. 28.05.1998. No mesmo sentido, Carmen Silva de Moraes Barros: “Assim, adotados os princípios de individualização da pena e da culpabilidade, não se pode mais falar em impossibilidade de fixação da pena abaixo do mínimo legal – qualquer vedação nesse sentido é inconstitucional. Assim não fosse, e a aplicação de pena poderia seguir critérios exclusivamente matemáticos. No entanto, a análise do caso individual, em razão de sua complexidade e diversidade, obsta a culpabilidade vinculada a limites mínimos. Portanto, cabe ao juiz, relevando as circunstâncias do caso concreto: grau de exposição do agente à criminalidade, suas condições pessoais, a situação particular em que levou a cabo a prática delitiva, forma de execução e conseqüências do crime, comportamento da vítima, estabelecer a medida da pena compatível com a culpabilidade vista sob a ótica do direito penal mínimo, “A fixação da pena abaixo do mínimo legal: corolário do princípio da individualização da pena e do princípio da culpabilidade”, Revista do IBCCRIM, ANO 7, N. 26, ABRIL-JUNHO, 1999.