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Para além da filosofia do castigo

Paulo Queiroz

Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor de Direito Penal no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Procurador Regional da República.

 

Sumário: 1. Introdução 2. Limites estruturais da intervenção pena1 3. quatro casos paradigmáticos: 3.1 Caso 1; 3.2 Caso 2; 3.3 Caso 3; 3.4 Caso 4 4. Para além da “filosofia do castigo”: em busca de uma nova resposta penal S. 0 que se poderia, então, sugerir em tal caso? 6. Conclusão.

 

Resumo: 0 presente texto critica, a partir de uma análise extra sistemática, e com base na moderna concepção do princípio da proporcionalidade, a adequação da “solução legal” dos conflitos pelo direito penal atual, e propõe alternativas intra sistemáticas, com vistas a um mode1o de justiça penal fraterna e restaurativa, exemplificando com casos concretos de crimes violentos.

 

Palavras chave: princípio da proporcionalidade; justiça restaurativa; interpretação do direito; crimes violentos; solução de conflitos; filosofia do castigo; direito penal fraterno.

 

1. Introdução

 

0 que a tradição nos legou com o nome de direito penal ou direito criminal é, como sabemos, uma criação humana destinada a reger e motivar a vontade humana, com o fim de, ou a pretexto de, lhe emprestar justa e necessária proteção (conforme o princípio da proporcionalidade, compreensivo da necessidade e adequação desta intervenção1); o homem é, portanto, ou deveria ser, o alfa e o ômega, e, pois, o começo e fim do ordenamento jurídico. Se assim é, a resposta penal em cada caso concreto deve ou deveria ser a menos inumana entre as soluções possíveis, mesmo porque, embora se pretenda atender também a fins de prevenção geral, fato é que semelhante intervenção se realiza, sempre, em casos particulares, individualmente, com fins de prevenção especial.

 

Mas não só. Malgrado as condutas humanas chamadas “criminosas” possam ser formalmente as mesmas (homicídio, roubo, estupro etc.), concretamente constituem, porém, situação contextualmente e humanamente irrepetível.

 

Com efeito, ainda quando a “infração penal” seja idêntica, as múltiplas variáveis que sempre a envolvem, tais como as motivações, os antecedentes, as circunstâncias e conseqüências do crime, o papel desempenhado por seus principais protagonistas, o autor, a vítima e suas reações etc. tornam na uma experiência humana singularíssima e única, a justificar, apesar da “identidade do crime”, respostas muito distintas, porque, v.g. , nem todos os estupros, nem todos os homicídios, nem todos os roubos demandam, necessariamente, a aplicação de pena ou a indicação da mesma resposta jurídico-penal. Além disso, grande parte dos comportamentos criminalizados sequer possui “dignidade penal”, a justificar a sua descriminalização pura e simples. De certo modo, portanto, a função do juiz é fazer o impossível: ajustar a generalidade e abstração dos termos da lei à singularidade de casos que são sempre novos (Alícia Ruiz).

 

Releva notar, ainda, que o crime, que não tem consistência material ou ontológica. (“o crime não existe”), faz parte da construção social da realidade, de modo que uma mesma conduta formalmente criminalizada pode, a depender das reações sociais que desperta, motivar os mais diversos comportamentos: desde a vingança e busca da intervenção penal, passando pela reparação civil, chegando à absoluta indiferença e mesmo a atos de compaixão e perdão. Daí dizer Vera Andrade que a lei configura apenas um marco abstrato de decisão, no qual os agentes do controle social formal desfrutam de ampla margem de discricionariedade na seleção que efetuam, desenvolvendo uma atividade criadora proporcionada pelo caráter definitorial da criminalidade, pois entre a seleção abstrata e provisória da lei e a seleção definitiva operada pelos agentes de criminalização secundária (polícia, Ministério Público, Judiciário) medeia um complexo e dinâmico processo de refração2.

 

Pois bem, se as condutas humanas submetidas a julgamento são assim tão variáveis, como julgá las humanamente, e não só sistematicamente, atendendo as singularidades de cada caso particular, se a lei é um “artifício”, uma “ficção”, geral, abstrata, dirigida a todos indistintamente e, mais, partindo de conceitos rígidos, como o conceito de “crime”, de “pena” etc.? Dito de outro modo: como evitar que, a pretexto de julgar homens, julguemos fantasmas ou estereótipos?

 

Na verdade, e paradoxalmente, a lei (e o sistema), para ser igual, há de ser desigualmente aplicada in concreto, na medida em que, para ser verdadeiramente igual, tenha de atender à inevitável desigualdade dos casos, de sorte que, para tanto, é necessário flexibilizar, crescentemente, os modos de atuação do sistema penal como um todo em especial, o direito e processo penal confiando se ao juiz e ao Ministério Público maior liberdade de decisão das “lides” penais, permitindo lhes, dentro de um rol prefixado de possibilidades, optar por aquela menos injusta e menos inadequada para o caso concreto, sem prejuízo das garantias constitucionais. Porque, se é missão da justiça criminal “solucionar conflitos”, nada mais razoável do que se lhes oportunizar maior liberdade no desempenho desta função. No caso brasileiro, o Estatuto da Criança e do Adolescente poderia ser uma fonte inspiradora importante (Lei 8.069/1990).

 

Daí ser preocupante a recepção de teorias que privilegiam a preservação do “sistema”, seja ele qual for, em prejuízo do “subsistema” (o homem), pelo seu caráter tecnocrata, acrítico e tendencialmente desumano, voltadas para combater o “inimigo”. Assim, por exemplo, a formulação de Jakobs, que concebe a pena como simples afirmação contrafática. da validade da norma, em nome da estabilização do sistema social3.

 

Porque o sistema não constitui um estado final de elaboração dogmática, mas um momento desta, não um fim em si mesmo, mas um meio, flexível, provisório, aberto ao problema, que não se justifica por si mesmo, nem por sua coerência ou rigor lógico, mas por seus resultados e funções4, de sorte que determinante há de ser sempre a questão de fato.

 

 

 

2. Limites estruturais da intervenção penal

 

 

Com pretender tal redefinição da resposta penal e com vistas a implementar um modelo de justiça restaurativa5, se quer responder, nos limites (estruturais) da intervenção jurídico penal e intra sistematicamente, à crítica, procedente, de que todo o sistema penal gira em torno da idéia de culpabilidade individual (pessoal), desprezando por completo o ambiente ou o sistema social em que se insere, uma vez que se culpam os indivíduos e se ignoram os sistemas, as estruturas sociais. Como assinala Christie, no sistema atual o fato decisivo é o delito, não os desejos da vítima, não as características individuais do culpado, não as circunstâncias particulares da sociedade local, razão pela qual, ao excluir todos esses fatores, o sistema acaba por inviabilizar múltiplas opções que deveriam ser tomadas em conta6. Enfim, e como dizia Baratta, a pessoa é considerada pelo direito penal como uma variável independente, e não como uma variável dependente das situações7.

 

Quer se responder, ademais, à objeção, muito próxima da anterior, no sentido de que a intervenção penal reifica (coisifica) o conflito e neutraliza a vítima. É que, de fato, a intervenção estereotipada do sistema penal tanto age sobre a vítima como sobre o delinqüente. Como observa Hulsman, no sistema penal todos acabam sendo tratados da mesma maneira; supõe se que todas as vítimas têm as mesmas reações, as mesmas necessidades, pois não se levam em conta as pessoas em sua singularidade e, operando em abstrato, causa danos inclusive àqueles que pretende proteger8. Daí se dizer que a vítima é um perdedor duplamente: em primeiro lugar, perante o criminoso e, em segundo lugar, perante o Estado, que lhe rouba o conflito, um todo que lhe é levado a cabo por profissionais9.

 

Conclusivamente, se a intervenção penal implica, como regra, mera tecnização dos conflitos, subtraindo lhe toda a carga de dramaticidade e humanidade, além de importar em despolitização e descontextualização, é preciso buscar, na medida do possível, re politizá lo, re contextualizá lo e re humanizá lo segundo o sistema de valores e princípios (garantias) da Constituição Federal. Cumpre reaproximar, enfim, o Direito do Homem, pois mais que a “verdade processual”, importa a “verdade existencial”.

 

A seguir, far se á referência a quatro casos paradigmáticos da inadequação da resposta penal hoje cabível.

 

3. Quatro casos paradigmáticos

 

3.1 Caso 1

 

Clarice de tal, residente no Município de Ipirá, Bahia, deliberou, em razão dos maus tratos sofridos e constantes ameaças de morte, matar seu companheiro, Luís José de tal. Para tanto, deu lhe uma refeição, acondicionada em vasilha plástica, composta de farinha e carne, sendo que, ao prepará la adicionou lhe uma colher de chá do veneno conhecido por “chumbinho”. Posteriormente, Luís José encontrou os seus filhos X, 7 anos, e Y, 12 anos’ aos quais entregou a marmita a fim de que a levassem para casa, em razão de não haver serviço naquele dia. Ocorreu que os menores, antes de chegarem à residência, comeram a refeição e’ em conseqüência, agonizaram até a morte. Presa numa delegacia local, onde tentou suicídio, Clarice foi denunciada pelo Ministério Público Estadual pelo crime do art. 121, § 2º, III, c/c os art. 61, Il, f, e 73, todos do CP, vale dizer homicídio doloso qualificado (crime hediondo), punido com reclusão de 12 a 30 anos.

 

É que o Código Penal brasileiro, de 1940, consagrou, no particular, a teoria da equivalência10, hoje minoritária, segundo a qual é irrelevante que o dolo se concretize em pessoa diversa da pretendida, uma vez que, sendo tipicamente equivalentes os resultados (matar o companheiro ou matar os filhos), o autor deve responder por crime único, crime consumado. Dito mais claramente: quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, em vez de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela (CP, art. 73), motivo pelo qual não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão a da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime (art. 20, § 3º).

 

De acordo com o Código Penal, portanto, que se utiliza claramente de uma ficção, Clarice responderá por crime de homicídio consumado contra Luís José (qualificado e hediondo, em razão do emprego de veneno) dolosamente, ainda que, de fato, tivesse matado seus próprios filhos culposamente.

 

Nota: soube, recentemente, que os protagonistas dessa tragédia se reconciliaram e voltaram a conviver.

 

 

 

3.2 Caso 2

 

Marivaldo de tal, brasileiro, solteiro, servente de pedreiro, foi preso, processado e condenado a 11 anos e 3 meses de reclusão pela prática do crime de atentado violento ao pudor (CP, art. 214, c/c o art. 224, a, e 226, II, do CP, c/c a Lei 8.072/1990), visto ter abusado sexualmente do próprio filho, com quem tentou fazer sexo anal, X, de 7 anos de idade à época dos fatos, 1997. Marivaldo cumpre, desde então, pena na penitenciária Lemos Brito, em Salvador, Bahia.

 

 

3.3 Caso 3

 

Lourdes de tal, flagrada por sua vizinha quando fazia sexo oral com sua filha, Z, de dois, foi presa em “flagrante delito” por policiais; processada e submetida a julgamento, foi condenada por “crime hediondo” (atentado violento ao pudor) a cumprir pena de sete anos e seis meses de reclusão. Prestes a sair por meio de livramento condicional, foi novamente flagrada, no interior do próprio presídio, com droga ilícita, sendo autuada por tráfico, motivo pelo qual, reincidente, deverá ser (possivelmente) condenada a mais três ou quatro anos de reclusão.

 

 

3.4 Caso 4

 

Eu estava imbuído da leitura do livrinho Dos delitos e das penas” – escreve Voltaire – “quando soube que acabavam de enforcar, numa província, uma jovem de dezoito anos, bela e bem-feita, que tinha talentos úteis e pertencia a uma família muito honesta. Ela era culpada de ter deixado que lhe fizessem um filho. A vergonha, que é no sexo uma paixão violenta, deu-lhe força suficiente para voltar à casa de seu pai e para esconder seu estado. Ela abandona o filho, que é encontrado morto no dia seguinte; a mãe é descoberta, condenada à forca e executada”.11


Formula Voltaire a seguinte questão: “será que o fato de uma criança morrer torna absolutamente necessário matar mãe?

 

Responder, então, nos seguintes termos: “Ela não o matou; esperava que algum transeunte tivesse piedade daquela criatura inocente; podia mesmo ter a intenção de ir reencontrar o filho e fazer com que lhe dessem a assistência necessária. Esse sentimento é tão natural que se deve presumi-lo no coração de uma mãe. A lei é positiva contra a jovem da província de que estou falando; mas essa lei não será injusta, desumana e perniciosa? Injusta porque não distingue aquela que mata o filho e aquela que o abandona; desumana porque fez perecer cruelmente uma infeliz a quem não se pode reprovar senão a fraqueza e a precipitação em esconder a sua desdita; perniciosa porque arrebata à sociedade uma cidadã que devia dar súditos ao Estado, numa província onde as pessoas se queixam do despovoamento. A caridade ainda não criou neste país estabelecimentos onde os filhos abandonados possam ser alimentados. Ali onde falta a caridade, a lei é sempre cruel. Seria bem melhor prevenir esses infortúnios, que são bastante comuns, em vez de simplesmente puni-los. A verdadeira jurisprudência consiste em impedir os delitos, e não em punir com a morte um sexo frágil, quando é evidente que o seu crime não se acompanhou de malícia e mortificou-lhe o coração. Assegurai, tanto quanto puderdes, uma ajuda a todo aquele que seja tentado a fazer o mal e tereis menos motivos para punir”.

 

Que fazer em tais casos?

 

 

4. Para além da “filosofia do castigo”: em busca de uma nova resposta penal

 

A missão do direito penal é a missão de todo o direito: possibilitar a vivência social, assegurar níveis minimamente toleráveis de violência, resolver, enfim, conflitos de interesses de modo pacífico, segundo normas e processo previamente conhecidos.

 

Não obstante seja esta a sua missão, de cujos demais ramos somente se distingue pelo maior rigor das sanções que adota para fazer em face dos comportamentos declarados criminosos, o direito penal, porque preso ainda, fortemente, à idéia de retribuição, responde aos conflitos de forma sensivelmente menos racional que os demais ramos. Não sem razão, tem se afirmado que a justiça criminal “decide” conflitos, mas não os “resolve”.

 

Se, por exemplo, ao cônjuge traído ou insatisfeito com a vida conjugal, o direito civil lhe coloca à disposição a separação, o divórcio etc; ao posseiro esbulhado, a reintegração na posse; ao locador, a retomada do imóvel, diante do inadimplemento contratual, o mesmo ocorrendo no direito administrativo, em que, v.g., obras edificadas sem prévia licença são passíveis de embargo e demolição; veículos estacionados em lugar proibido são multados, guinchados etc., no âmbito penal, porém, esta razoabilidade, isto é, esta preocupação quanto à composição efetiva da lide pensada no interesse dos protagonistas do drama criminal, vítima, sociedade, réu que lhe é submetida à apreciação, numa palavra, esta adequação da sanção à diversidade dos fatos concretamente postos, quase nunca se verifica, já que tudo tem uma resposta invariável: pena (notadamente a prisão) ou, em caráter excepcional, medida de segurança.

 

Pense se nas hipóteses seguintes: aos pais que eventualmente maltratem os filhos, segregando os num cárcere, não raro lhes compromete a própria subsistência; priva os daqueles (e aqueles do convívio com os pais), estigmatizando os indelevelmente; àquele que sofreu desfalque patrimonial, pouco preocupa a reparação do dano ou os interesses reais da vítima. 0 direito penal, enfim, longe de resolver conflitos, atuando de modo contraproducente, acaba por agravá los e criar outros novos, pois disponibiliza uma resposta que não interessa a ninguém: vítima, sociedade e réu.

 

Ora, um direito penal orientado para prevenção de delitos (direito penal funcionalista, ou seja, politicamente orientado), e não para retribuir por retribuir, não pode prescindir da idéia de compor os conflitos sob sua disciplina, de modo a superar as conseqüências do delito, sempre e quando possível fazê-lo. Em suma: é preciso sancionar utilmente.

 

A pergunta que se impõe é a seguinte: encarcerar alguém numa prisão, nestas condições, sem mais, será uma resposta razoável, socialmente adequada?

 

Certamente que não. No Caso 2, entre outras razões, pelas seguintes:

 

a) inicialmente, o sentenciado, desqualificado para o trabalho (servente de pedreiro), ao sair da prisão, além de se manter em tal condição, terá contra si, além disso, o estigma de haver passado pela experiência carcerária. Se, antes, obter emprego era difícil, agora mais ainda;

 

b) mantido na prisão, as suas perversões sexuais, muito provavelmente irão recrudescer mais ainda;

 

c) os laços (residuais) entre a criança e o pai, após anos de desencontros, se dissiparão enormemente;

 

d) sem o sustento do pai, as privações da criança serão ainda maiores;

 

e) uma vez solto, as possibilidades de o sentenciado reincidir serão ainda maiores, ante a dessocialização decorrente da traumática e negativa experiência carcerária, em prejuízo, inclusive, dos fins de prevenção geral e especial;

 

(f) é razoável supor que no futuro venha a constituir nova família e que atos semelhantes se repitam.

 

Conclusão: a intervenção penal constitui um simples castigo, nada além disso, isto é, uma só violência (a prisão) que se soma, inutilmente, a uma outra violência (a agressão sexual).

 

 

 

 

5. O que se poderia, então, sugerir em tal caso?

 

Em verdade, esta situação está a exigir uma resposta bem diversa, algo que seja realmente adequado, ou, ao menos, não inadequado. para o caso e que possa servir como “solução do conflito”. Semelhante resposta, evidentemente, não a pode oferecer o sistema penal, em face de sua excessiva rigidez, mesmo porque tal fato é rotulado legalmente como “crime hediondo” (Lei 8.072/1990); sujeito, pois, a uma série de restrições. Encontramo la, porém, no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), fortemente influenciado pelo princípio da proporcionalidade, compreensivo da necessidade e adequação da intervenção.

 

De fato, considerando que a criança sexualmente agredida foi abandonada pela mãe com tenra idade e que, apesar do abuso que sofreu, manifesta afeto pelo pai e este por ela, e que este é alcoólatra (afirma, inclusive, que somente praticou o fato porque estava embriagado), mais razoável seria o seguinte, conforme previsão no Estatuto da Criança e do Adolescente (em especial, arts. 101, 112, 129 e 130):

 

a) colocação do menor em família substituta, inicialmente em caráter provisório, permitindo, porém, ao pai, visitá lo regularmente;

 

b) submeter ambos, pai e filho, a tratamento psicológico regular (o pai, inclusive, a tratamento psiquiátrico, se necessário);

 

c) inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família e à criança;

 

d) inclusão (do pai) em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras;

 

e) orientação, apoio e acompanhamento temporários de ambos;

 

f) matrícula e freqüência (do menor) em estabelecimento oficial de ensino fundamental; g) etc.

 

A solução adequada para o caso, portanto, nada tem a ver com pena ou com medida de segurança (esta última, inclusive, legalmente inadmissível no caso, visto que o sentenciado foi considerado penalmente responsável), pois constituem providências que devem ter em conta necessidades pedagógicas, preferindo se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários (ECA, art. 100).

 

Para além disso, o Estado deve criar as condições sociais para que as pessoas não sofram tais abusos ou, ao menos, tenham à disposição serviços públicos e agentes capazes de prestar a necessária proteção e auxílio psicológico, psiquiátrico, jurídico etc. Numa palavra: urge trabalhar com o máximo de direitos Sociais/medidas assistenciais e de tratamento e como o mínimo de direito penal. Uma boa política social ainda é a melhor política criminal.

 

Resposta semelhante poder se ia pensar quanto ao Caso 3.

 

Note se, desde já, que Lourdes é portadora de evidente déficit de socialização, conforme se conclui da leitura do seu exame criminológico, que a diagnosticou como: “personalidade primitiva, com nível mental baixo e conseqüente imaturidade intelectual e afetiva, que motivam os comportamentos regressivos que emite e que demonstram a dificuldade de adaptação ao meio social. Evidencia baixo nível de tolerância às frustrações, às quais reage com atitudes oposicionistas e agressivas, manifestadas através de descargas emocionais intensas, que refletem a dificuldade de controle sobre os impulsos. Em conseqüência, o processo de Inter relação social torna se difícil, sobretudo quando adota atitudes de supervalorização de si mesmo como uma forma de compensar o sentimento de inferioridade que procura dissimular”.

 

E se Lourdes é uma pessoa com reconhecido déficit de socialização, pouco se lhe deveria exigir socialmente, afinal deve se exigir mais de quem pode mais e se exigir menos de quem pode menos, proporcionalmente. No entanto, na prática se dá, e se deu, justamente, o contrário: exigimos e condenamos maximamente, quando mais do que castigo, Lourdes carecia de ajuda, de compreensão, do perdão e, claro, de tratamento, mas não precisaria, por certo, de crime nem de pena.

 

Não bastasse isso, o castigo imposto a Lourdes se revelou politicamente desastroso, pois, ao invés de “ressocializá la” e prevenir novos “crimes”, a intervenção penal a dessocializou mais ainda, agudizando seu déficit de socia11zação, e, pior, a profissionalizou na criminalidade e a afastou, definitivamente, da sua filha, e sua filha dela, cortando lhes os laços afetivos e maternais (residuais).

 

Aliás, tivesse essa história se passado numa família de classe média ou alta e outro seria o desfecho: certamente, a família submeteria Lourdes a tratamento psicologia, a sessões de análise ou semelhante, e, no máximo, lhe tiraria, provisória ou definitivamente, a guarda da criança. Assim, não haveria polícia, nem crime, nem pena, nem prisão, tudo não passaria de um “problema de família” e resolvido em família. Definitivamente, o direito penal é coisa de pobres, de miseráveis.

 

Quanto aos Casos 1 e 4, ante a sua significação trágica, a resposta principal seria, não o castigo, qualquer que fosse, mas a concessão do perdão judicial; hipótese juridicamente impossível no caso brasileiro, que só o admite se o crime for culposo.

 

Naturalmente que as situações aqui utilizadas são um só exemplo das múltiplas possibilidades de redefinição dos modos de atuação do direito e processo penal, com vistas à implementação de um direito penal fraterno, já que diversas outras medidas podem e devem ser adotadas. Assim, por exemplo, a ação penal nos crimes contra o patrimônio, à semelhança dos crimes contra a liberdade sexual, deveria ser, como regra, de iniciativa privada (furto, dano, estelionato etc.) e só excepcionalmente de ação pública condicionada (roubo simples, por exemplo) ou incondicionada (e.g., roubo com violência grave ou morte).

 

A pena, o castigo, só deverá ter lugar quando for absolutamente insubstituível e sobre isso decidirá o juiz, que há de ser, de certo modo, o legislador no caso concreto, mesmo porque a interpretação do direito penal há de partir, necessariamente, das funções políticos-criminais assinaladas à pena. Com efeito, já há algum tempo expressões como “o juiz é a boca da lei” ou o “Juiz é um escravo da lei” perderam todo o sentido, pois interpretar é, em verdade, argumentar, corretamente, num sistema aberto (Arthur Kaufmann) e, se múltiplas são as possibilidades de argumentar, múltiplas também hão de ser as possibilidades de interpretar corretamente. Daí dizer Lênio Streck, com toda razão, que rigorosamente não existem julgamentos de acordo com a lei ou em desacordo com ela, porque o texto normativo não contém imediatamente a norma (Müller), a qual é construída pelo intérprete no decorrer do processo de concretização do direito, de sorte que, quando o juiz profere um julgamento considerado contrário à lei, na realidade está proferindo um julgamento contra o que a doutrina e a jurisprudência estabelecem como arbitrário. Concluí, então, Lênio, que “é necessário ter em conta que o direito deve ser entendido como uma prática dos homens que se expressa em um discurso que é mais que palavras, são também comportamentos, símbolos, conhecimentos, expressados (sempre) na e pela linguagem. È o que a lei manda, mas também o que os Juízes interpretam, os advogados argumentam, as partes declaram, os teóricos produzem, os legisladores criticam. É, enfim, um discurso constitutivo, uma vez que deseje significado a fatos e palavras”12. A interpretação, portanto, é um complexo ato de criação e não um simples ato de contemplação da vontade da lei ou do legislador, como se imaginou no passado.

 

Por conseguinte, o juiz que supõe tomar seus critérios de decisão unicamente da lei é vítima de um fatal engano, pois (inconscientemente) permanece dependente dele mesmo, quando, em realidade, só o juiz que tenha plena consciência de que sua pessoa se co implica no processo interpretativo pode ser verdadeiramente independente13. E se isso é válido para a interpretação em geral e para as situações “normais”, tal vale, com maior força de razões, para a interpretação no âmbito do direito penal, em que, à superprodução de leis penais sem o menor critério, editadas, não raro, para criar uma só impressão e uma falsa impressão de segurança jurídica (leis puramente simbólicas e grandemente demagógicas), se soma uma linguagem freqüentemente confusa e imprecisa, tipos de conteúdo vago, já não bastasse o fato de a interpretação e a aplicação das normas competir a órgãos que atuam independentemente, sem nenhuma coordenação entre si e com grande margem de discricionariedade: Polícia, Órgãos da Execução Penal, Ministério Público, Judiciário etc. Aqui, mais do que em qualquer outro campo do direito, a interpretação e a aplicação das normas jurídicas ocorrem de forma arbitrariamente seletiva e criadora de crimes e criminosos.

 

6. Conclusão

 

Em todos os casos aqui citados, a intervenção penal revela se claramente inadequada, porque constitutiva de simples castigo, que nada resolve; antes, agudiza um processo de exclusão e marginalização social, pois trabalha com falsas imagens da realidade e acaba por coisificar o conflito; desumanizando o, enfim, em nome de um sistema que, embora abstratamente possa parecer coerente e justo; concretamente se autodeslegitima, por encerrar uma resposta maquinal a um problema demasiado humano, e para o qual desserve, simplesmente porque não se destina a máquinas, mas a homens; e o homem, e não o sistema ou a lei, há de ser sempre a medida de todas as coisas (Protágoras)!

 

 

1Paulo Queiroz, Direito Penal, Parte Geral, Saraiva, S. Paulo, 2005.

 

 

2A ilusão de segurança jurídica”. De controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p.260.

 

3Com detalhe: Paulo Queiroz. Funções do direito penal Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

 

 

4García Pablos. Derecho penal. Madrid, 1995. p. 413

 

5Sobre o tema, ver: <wwwrestorativejustice.org>.

 

6Los límites deldolor. México: Fendo de Cultura Econômica, 1984. p. 60 61.

 

 

7Direitos humanos: entre a violência estrutural e a violência penal. Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre, 1993.

 

 

8Penasperdidas.Niterói:Luam,1993.p.83 84

 

9 Christie. Op. dt., p. 126

 

10Essa teoria considera que o dolo deve abranger o resultado típico quanto aos elementos determinantes de sua espécie: A quis matar uma pessoa (B) e realmente matou uma pessoa (C), de sorte que o desvio do curso causal não tem influência no dolo, devido à equivalência típica dos objetos, havendo, assim, homicídio consumando. Já para a teoria da concreção (ou concretização), o dolo pressupõe sua concretização num determinado objeto, motivo pelo qual, se o agente atinge pessoa diversa da pretendida, não age com dolo quanto à pessoa. realmente atingida. Logo, se pretendia matar B ,vem a atingir C, responde, segundo esta teoria, por homicídio tentado contra B e homicídio culposo contra C, cf: Roxin. Derech o penal. Madrid: Civitas, 1997. p. 492.

 

 

 

11Comentários politícos. São Paulo: Martins Fontes, 2001. P. 119-121.

 

12 Hermenêutica jurídica em crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 210 211

 

13Arthur Kaufmann. “Pariorárnica histórica de Ios problemas de Ia filosofia del derecho”. E1 pensamento jurídico contemporâneo. Editorial Debate, 1992. p. 130.

 

 

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Não é fácil prefaciar qualquer trabalho de Paulo Queiroz, principalmente quando ele homenageia o prefaciador. O largo tirocínio no Ministério Público Federal, os longos anos de magistério universitário e as inúmeras palestras proferidas por esses brasis afora, congeminados, descortinaram-lhe novos horizontes. E aí está a literatura jurídica pátria engrandecida com mais um trabalho que honra sobremodo as nossas tradições.

A prescrição é a mais relevante, a mais complexa, a mais controversa e a mais frequente causa de extinção da punibilidade. Nem todos concordam com a prescrição e sempre houve quem propusesse a sua abolição total ou parcial sob a justificativa de ser um dos fundamentos da impunidade.

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