O que é o Direito?
Em primeiro lugar, o Direito é um conceito, tal qual justiça, moral, ética, estética etc. E como conceito, remete necessariamente a outros conceitos: lei, ordem, segurança, liberdade, bem jurídico etc., que também reenviam a outros tantos, motivo pelo qual só se pode obter um conceito de direito por meio de remissões, associações.
Em segundo lugar, o mais elaborado ou prestigiado conceito de direito é apenas um entre vários conceitos possíveis, de sorte que traduz em última análise o ponto de vista de seu autor ou de quem o adota, afinal outros tantos conceitos, mais ou menos exatos, mais ou menos amplos, são igualmente possíveis. Também por isso, um conceito constitui uma apreensão sempre parcial do mundo, dentro de um universo de representações possíveis; um conceito é uma simplificação, uma redução.
Em terceiro lugar, todo conceito, como representação formal do pensamento, pouco ou nada diz sobre o seu conteúdo, isto é, pouco ou nada diz sobre as múltiplas formas que ele pode histórica e concretamente assumir, até porque, embora pretenda valer para o futuro, é pensado a partir de uma experiência passada, a revelar que definir algo é de um certo modo legislar sobre o desconhecido. Também por isso, um conceito, como expressão da linguagem, é estruturalmente aberto, e, pois, pode compreender objetos históricos os mais díspares (v.g., o conceito de legítima defesa depende do que se entenda, em dado contexto, por “injusta agressão”, “atual ou iminente”, “uso moderado dos meios necessários”, “direito próprio ou alheio” etc.).
Em quarto lugar, um conceito, que é assim socialmente construído, só é compreensível num espaço e tempo determinados, motivo pelo qual, com ou sem alteração de seus termos, está em permanente mutação, afinal um conceito encerra uma convenção (provisória) e está condicionado por pré-conceitos ou pré-juízos. Por isso é que o legal ou ilegal, o lícito ou ilícito variam no tempo e no espaço, independentemente (inclusive) da alteração dos termos da lei, até porque o direito existe com ou sem leis. É que, rigorosamente falando, as leis nada dizem: as leis dizem o que dizemos que elas dizem1.
Em quinto lugar, o conceito de direito, tal qual o conceito de justiça, liberdade, igualdade, e diferentemente do conceito de cavalo, automóvel etc., que dizem respeito a algo concreto, não remetem a uma coisa, a um objeto, propriamente, mas a relações e conflitos que daí resultam (v.g., pais/filhos, empresa/empregados, autores/vítimas, Estado/criminosos etc.). Exatamente por isso, o direito não é um conjunto de artigos de lei, mas um conjunto de relações humanas2.
Finalmente, todo conceito é construído pela equiparação de coisas desiguais e, por isso, constitui uma universalização do não-universal, do singular; um conceito nasce, portanto, da postulação de identidade do não idêntico3. O conceito de crime, por exemplo, refere-se a um sem número de condutas que, a rigor, nada têm em comum, à exceção da circunstância de estarem formalmente tipificadas: matar alguém, subtrair coisa alheia móvel, emitir cheque sem provisão de fundos, portar droga para consumo pessoal, abater espécime de fauna silvestre etc. (espécime que pode variar de uma borboleta a uma onça pintada), conceitos, que, por sua vez, unificam coisas díspares. Com efeito, não existe um homicídio absolutamente igual a outro homicídio, nem um furto absolutamente igual a outro furto, nem um crime ambiental absolutamente igual a outro, pois as múltiplas variáveis que sempre envolvem tais atos tornam cada ação humana singularíssima, única, irrepetível. Enfim, um conceito é formado pela eliminação do que há de singular em cada ato; e quanto mais exato, mais abstrato e mais vazio de conteúdo se torna4. Fatos são mais ou menos semelhantes, nunca idênticos.
Aliás, a analogia, que tradicionalmente tem merecido um tratamento secundário, não constitui um elemento acidental, mas essencial ao conhecimento, pois o belo e o feio, o justo e o injusto, o legal e o ilegal são construídos em verdade a partir de comparações, de analogias, isto é, recorrendo-se, conscientemente ou não, à experiências (sempre novas) de beleza, de justiça e de legalidade.
De tudo isso resulta que o direito não está previamente dado(o direito não existe), pois é parte da construção social da realidade; e, portanto, o direito não preexiste à interpretação, mas é dela resultado, razão pela qual a interpretação não é um modo de desvelar um suposto direito preexistente, mas a forma mesma de produção do direito. Enfim, não é mais a interpretação que depende do direito (ou da lei), mas o direito (ou a lei) que depende da interpretação; dizendo-o à maneira de Nietzsche: não existem fenômenos jurídicos, mas só uma interpretação jurídica dos fenômenos.
Também parece evidente que, ordinariamente, por mais que tenhamos motivos, legais ou não, para condenar, condenamos por queremos condenar e porque julgamos importante fazê-lo; inversamente: por mais que tenhamos motivos, legais ou não, para absolver, absolvemos porque queremos absolver e julgamos importante fazê-lo. Em síntese: sempre que condenamos ou absolvemos, fazemo-lo porque queremos fazê-lo, de sorte que, nesse sentido, a condenação ou a absolvição não são atos de verdade, mas atos de vontade.
O que é então o Direito? Sob essa perspectiva, uma multidão móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos5; ou, ainda, o Direito são relações, interações, interpretações, decisões6.
Paulo Queiroz, Doutor em Direito (PUC/SP), é Procurador Regional da República, Professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e autor do livro Direito Penal, parte geral, S. Paulo, Saraiva, 3ª edição, 2006.
1Paulo Queiroz. Direito Penal. Parte geral. S. Paulo: Saraiva, 2006.
2Arthur Kaufmann. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
3Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Tecnos: Madrid, 1996.
4Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Tecnos: Madrid, 1996.
5Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Tecnos: Madrid, 1996.
6Naturalmente que com esse conceito generalíssimo, aplicável a outros saberes, fica por esclarecer o que há de peculiar no “fenômeno” jurídico.