Notas sobre o conceito analítico de crime

8 de janeiro de 2013

 

De acordo com Hans Welzel, “a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade são os três elementos que convertem uma ação em um delito”, as quais estão relacionadas logicamente de tal modo que cada elemento posterior pressupõe o anterior.1

Para Claus Roxin, típica é a ação que coincide com uma das descrições de delito; antijurídica é a conduta típica não amparada por causa de justificação; e culpável é a ação típica e antijurídica praticada de modo reprovável por um sujeito imputável.2 Ainda segundo Roxin, a diferença entre excludentes de antijuridicidade e de culpabilidade, entre justificação e exculpação, consiste em que uma conduta justificada é reconhecida como legal pelo legislador, está permitida e há ser suportada por todos, enquanto uma conduta exculpada não é aprovada e, por isso, continua como não permitida e proibida. Assim, embora não seja punida, em geral não tem porque ser tolerada por quem é vítima de uma conduta antijurídica.3

Trata-se do conceito analítico de crime, que, apesar de todas as transformações pelas quais a dogmática penal passou e tem passado, permanece firme.

É bem verdade que essa dimensão tripartida do delito não é aceita, em princípio, pela teoria dos elementos negativos do tipo, que trabalha com um conceito bipartido de crime (tipicidade e culpabilidade), segundo o qual a tipicidade compreende, como parte negativa implícita, a ausência de excludentes de ilicitude (legítima defesa etc.). O tipo total pressupõe, portanto, a realização dos elementos (explícitos) do tipo e a ausência de causas de justificação. As excludentes de ilicitude são os elementos que negam o tipo.

Apesar disso, a estrutura do delito é substancialmente mantida, uma vez que permanece como uma conduta (ação ou omissão) típica, ilícita e culpável. O que ocorre é que a antijuridicidade perde autonomia relativamente à tipicidade, que passa a compreendê-la com um de seus elementos.

Pois bem, qual a importância e sentido desse conceito analítico hoje?

É curioso que, embora o direito seja um só (conforme a doutrina), o conceito analítico de delito parece constituir uma peculiaridade da dogmática jurídico-penal, já que não existe uma abordagem similar no direito civil, por exemplo, quando é discutido o problema da responsabilidade civil subjetiva, tampouco no direito tributário ou administrativo, entre outros.

Anoto, ainda, que o conceito analítico é um desdobramento do conceito legal (só é crime o que a lei define como tal sob ameaça de uma pena), que, por sua vez, é um conceito político, visto que requer uma decisão de poder que decrete o que é e não é infração penal. Consequentemente, também o são os seus elementos integrantes: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.

Além disso, parece que fora do direito penal semelhante conceito não tem importância alguma.

Dir-se-ia, talvez, que as excludentes de ilicitude, diversamente das demais, fazem coisa julgada no cível (extrapenal), impedindo a reparação do dano etc.

Mas isso não é de todo exato. Primeiro, porque a responsabilidade civil é apurada segundo critérios próprios, sendo, inclusive, admitida a responsabilidade objetiva e sem culpa ou mesmo por ato lícito (v.g., desapropriação). Segundo, porque casos há em que, apesar da sentença penal absolutória (por legítima defesa etc.), é perfeitamente possível a responsabilidade civil (v.g., erro, excesso, aberratio ictus).

Enfim, tal como prevê o Código Civil de 2002 (art. 935), a responsabilidade civil é independente da criminal. Exatamente por isso, o Código de Processo Penal de 1941, cujo artigo 65 dispõe que “faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”, precisa ser interpretado segundo as atuais regras relativas à responsabilidade civil.

É importante notar que, quanto ao estado de necessidade, o Código Civil (art. 929) assegura, inclusive, o direito à indenização sempre que a pessoa lesada ou o dono da coisa não forem culpados do perigo.

Finalmente, a eventual repercussão civil não justificaria o conceito (penal) analítico de crime.

Resta verificar qual a importância do aludido conceito no próprio direito penal.

Começo por dizer que a distinção entre as excludentes não preexiste à interpretação, mas é dela resultado. Justamente por isso, juízes e tribunais (e a própria doutrina) ora classificam uma conduta de uma forma, ora de outra. Já vimos que a interpretação não é um modo de constatar um direito preexistente, mas a própria realização do direito.

Não é por outra razão, aliás, que, com o advento da teoria final da ação, o dolo e a culpa, que, antes integravam a culpabilidade, passaram a fazer parte da tipicidade como seus elementos constitutivos.

Ademais, a exata classificação de cada uma das excludentes depende, primeiro, de como o legislador tratará o assunto; segundo, da doutrina e da jurisprudência. Assim, por exemplo, se, para alguns autores, o consentimento válido do ofendido exclui a tipicidade, para outros, exclui a ilicitude. A mesma divergência é encontrada na legislação dos países e na respectiva jurisprudência.

Não bastasse isso, a consequência prática de uma excludente de tipicidade, de ilicitude ou de culpabilidade é exatamente a mesma: uma sentença penal absolutória.

E mais: com o nome de excludentes de tipicidade figuram circunstâncias que pouco ou nada têm em comum. De fato, o que há em comum entre a ausência de tipificação de uma conduta e a não atuação dolosa ou culposa do agente? O que faz com que a insignificância da ação tenha o mesmo tratamento sistemático da inexistência de nexo causal ou do erro de tipo inevitável? Não obstante isso, todas essas circunstância são consideradas excludentes de tipicidade.

O mesmo raciocínio pode ser feito quanto às excludentes de ilicitude. De fato, que existe em comum entre a legítima defesa, o estado de necessidade e o consentimento válido do ofendido, se seus requisitos são tão diversos? Convém lembrar, inclusive, que, diversamente do que ocorre com a legítima defesa, é possível estado de necessidade contra estado de necessidade.

No que tange às excludentes de culpabilidade, cabe perguntar: o que faz com que a inimputabilidade decorrente de doença mental, o erro de proibição inevitável e a coação moral irresistível tenham o mesmo tratamento sistemático? E o que justifica que a coação física irresistível seja tratada como excludente de tipicidade e a coação moral irresistível como excludente de culpabilidade?

Vê-se, assim, quão arbitrários podem ser os conceitos de tipicidade, ilicitude e culpabilidade, relativamente ao seu possível conteúdo e limites, dada a disparidade dos conceitos subjacentes a cada um desses elementos do delito. Não é por outra razão, aliás, que o conceito analítico (tripartido) de crime tem resistido incólume à evolução da teoria do delito, por mais significativa.

Em verdade, a única coisa de fato comum a todas essas circunstâncias é, a meu ver, o seu resultado prático: todas conduzem a uma sentença penal absolutória, a qual resulta, em última análise, de uma decisão política que tem por desnecessária ou inadequada a imposição da pena pública.

Por tudo isso, é infundada a afirmação de Roxin no sentido de que a diferença entre excludentes de antijuridicidade e de culpabilidade, entre justificação e exculpação, consiste em que uma conduta justificada é reconhecida como legal pelo legislador, está permitida e há ser suportada por todos, enquanto uma conduta exculpada não é aprovada e, por isso, continua como não permitida e proibida. Assim, embora não seja punida, em geral não tem porque ser tolerada por quem é vítima de uma conduta antijurídica.4

Afinal, não existe diferença ontológica entre excludentes de tipicidade, de ilicitude e de culpabilidade, seja porque conduzem ao mesmo resultado prático (absolvição), seja porque poderiam, em tese, ter o mesmo tratamento sistemático, seja porque a exata classificação depende de critérios políticos, seja porque a mesma circunstância ora poderá ser considerada como excludente de tipicidade, ora de ilicitude, ora de culpabilidade, a depender da interpretação (judicial e doutrinária). Basta relembrar como se deu a sistematização do dolo e da culpa.

Jesús-Maria Silva Sánchez tem razão, portanto, quando assinala que a diferença entre justificação e exculpação é apenas de grau, e que, em tese, o legislador poderia transformar uma causa de exculpação em causa de justificação (e vice-versa). 5

Finalmente, os atuais conceitos de tipicidade, como juízo de subsunção do fato ao tipo; de antijuridicidade, como uma relação de contrariedade entre o fato típico e o direito como um todo; e de culpabilidade, como juízo de reprovação que incide sobre o autor de um fato típico e ilícito, por lhe ser exigível uma conduta diversa, encerram uma grande simplificação, que está muito longe traduzir o que de fato acontece quando dizemos que uma conduta é típica, ilícita e culpável. Aliás, a própria relação de sucessão lógica entre tais categorias é questionável.6

Com efeito, quanto à tipicidade, não se trata, a rigor, de um juízo lógico de subsunção, senão de um juízo analógico, visto que, conforme vimos, os casos penais nunca são absolutamente iguais nem desiguais, mas mais ou menos semelhantes. O direito penal não é um saber lógico, mas analógico.7

Cuida-se, ademais, de um juízo de valor complexo de ponderação de interesses que envolve, entre outras coisas: a)uma valoração sobre se uma determinada conduta está ou não proibida pelo respectivo tipo penal; b)se se trata de uma ação significativa ou não; c)se o autor agiu ou não dolosamente; d)se a ação é objetivamente imputável, se houve criação de um risco proibido e realização desse risco no resultado; e e)tudo isso depende, em grande parte, da valoração da prova produzida nos autos da ação penal, tarefa das mais relevantes e difíceis.

Ademais, as excludentes de tipicidade acabam por também excluir a própria culpabilidade, quer por lhe preceder logicamente, quer porque, também nela, está frequentemente pressuposto um juízo de exculpação. Assim, por exemplo, tanto no erro de tipo inevitável, quanto na coação física irresistível, não é exigível do agente conduta diversa, isto é, conforme o direito.

O mesmo deve ser dito, mutatis mutandis, da complexa valoração sobre a ilicitude e a culpabilidade.

Enfim, o juízo acerca da tipicidade, da ilicitude e da culpabilidade encerra, em última instância, uma imputação de culpa penal. Trata-se, evidentemente, de um juízo complexo que envolve a ponderação de interesses, os limites de incidência da proibição legal, a significância da ação, a atuação dolosa ou culposa, a legitimidade da ação, o conhecimento da proibição, a exigibilidade de conduta diversa etc.

Realmente, se, atendendo a critérios político-criminais, o legislador penal houve por bem isentar o réu de pena nos casos de erro de tipo e de proibição inevitável, de legítima defesa, de estado de necessidade e de embriaguez involuntária completa, é porque entendeu que em todos esses casos a imposição de sanção penal encerraria uma violência inútil e desnecessária, quer para fins de prevenção geral, quer para fins de prevenção especial.

Proponho, por isso, unificar ou substituir a terminologia atual (excludentes de tipicidade, de ilicitude e de culpabilidade) por excludentes de criminalidade, uma vez que todas implicam a exclusão do crime e a consequente isenção de pena.

Quanto às medidas de segurança, tenho que a sua imposição só será legítima quando não estiver presente alguma excludente de criminalidade, exceto a inimputabilidade mesma. Significa dizer que é lícito ao inimputável autor de crime alegar toda e qualquer excludente (de tipicidade, de ilicitude ou de culpabilidade, segundo a terminologia atual), sob pena de violação aos princípios de isonomia e proporcionalidade. Afinal, a medida de segurança, sanção penal que é, constitui, em última análise, uma pena, embora com outro nome. Consequentemente, há de exigir os mesmos pressupostos de punibilidade válidos para todos.

Também aqui, cabe dizer, à maneira de Nietzsche, que não existem fenômenos psiquiátricos, mas apenas uma interpretação psiquiátrica dos fenômenos. Trata-se, pois, de uma imputação.

Em síntese: 1)a distinção entre excludentes de tipicidade, de ilicitude e de culpabilidade não preexiste à interpretação, mas é dela resultado; 2)essa classificação é determinada por critérios político-criminais de sistematização; 3)o legislador pode, em tese, dar-lhes tratamento unitário ou transformar excludentes de tipicidade em excludentes de culpabilidade ou em causas de justificação (e vice-versa); 4)as excludentes legais conduzem ao mesmo resultado prático: uma sentença penal absolutória; 5)nem sempre as chamadas causas de justificação fazem coisa julgada extrapenal, pois os demais ramos do direito trabalham com critérios próprios de imputação e responsabilização; 6)não há muito em comum sob o nome de excludente de tipicidade, de ilicitude ou de culpabilidade; 7)a distinção é perfeitamente superável; 8)proponho substituir tais expressões por excludentes de criminalidade; 9)os pressupostos das medidas de segurança são, em princípio, os mesmos da pena, à exceção da inimputabilidade mesma; 10)ao inimputável devem ser asseguradas todas as garantias penais e processuais penais aplicáveis ao imputável. Consequentemente, não é legítima a sua imposição sempre que o agente puder alegar, com sucesso, excludentes de culpabilidade, inclusive, a exemplo da coação moral irresistível, a embriaguez involuntária completa etc.

1Derecho Penal Aleman, parte general. Traducción del alemán por los profesores Juan Bustos Ramírez y Sergio Yáñez Perez. Santiago: Editora Juridica de Chile: 1993, p. 57.

2Claus Roxin. Derecho Penal. Parte General. Madrid: Civitas, 1997, p. 195.

3 Roxin, idem.

4 Roxin, idem.

5 Aproximación al derecho penal contemporâneo. Barcelona: Bosch, 1992, p. 414.

6Basta lembrar, com efeito, que não discutimos, em princípio, a tipicidade e ilicitude quanto aos inimputáveis em razão da idade, visto que o Código Penal não lhes é aplicável, de modo que a inimputabilidade constitui questão prejudicial e anterior à análise das demais categorias do delito.

7Arthur Kaufmann, cit.

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6 Comentários

  1. Além de ampliar minhas percepções acerca do Direito, os teus textos me despertam um enorme interesse, principalmente na área Penal.
    Só me resta agradecer: obrigado.

  2. Prezado professor,

    Primeiramente gostaria de cumprimentá-lo pela exposição, que não trai a sua marca registrada, qual seja, conciliar um pensamento denso com uma narrativa clara e agradável.

    No entanto, gostaria de perguntar qual é a utilidade prática de substituir as excludentes de tipicidade, ilicitude e culpabilidade, por excludente de criminalidade? Por que mexer nesse vespeiro?

    Ademais, a minha percepção caminha no sentido que quanto mais bem organizada e detalhada a teoria do crime melhorse evidencia os pressupostos de habilitação do poder punitivo estatal.

    Imagine um armário. Nós poderíamos arrumar esse armário de duas formas: (i) organizando todas as roupas em gavetas; (ii) misturando todas as roupas no espaço livre das gavetas. Pois bem, nos dois casos estamos diante das mesmas roupas. A diferença entre a disposição das roupas em gavetas ou nâo simplesmente favorece um critério de organização, que auxilia a uma decisão mais rápida e eficiente sobre o que vesti.

    Transportando esse raciocínio para a teoria do crime, tenho que trabalhar com os conceitos de excludente de tipicidade, ilicitude e culpabilidade permitem um estudo mais claro e racionalizado da teoria do crime, ainda que as excludentes atendam a um critério político. Dividir para conquistar!

    att,

    Paulo

  3. Paulo, essa é uma discussão essencialmente acadêmica, de pouco importãncia prática…de todo modo, quis problematizá-a para, talvez, caminharmos para um modelo mais prático, simples e conforme os princípios de um direito penal democrático. Abraço!

  4. Do meu ponto de vista, creio que a proposta do Dr. Paulo também tem utilidade prática.

    É que a lei penal tem por fundamento e obrigação informar a todos o que é considerado crime. E de acordo com a teoria dos elementos negativos do tipo, crime seria apenas fato típico e ilícito. Daí, ou se inclui a culpabilidade novamente no tipo, como era feito inicialmente pela teoria causalista (o que não é incompatível coma realidade atual da sociedade, já que o conceito de “livre arbítrio” já foi profundamente revisto pela criminologia crítica) ou simplesmente exclui-se a culpabilidade, já que, segundo tal teoria,não faz sentido dizer que o fato e ilícito porém não culpável. Se não fosse culpável, sequer deveria ter sido tipificado.

    Assim sendo, a lei penal se tornaria mais fácil de ser entendida por todos, ideal que deveria ter sido seguido pelos legisladores e doutrinadores, que muitas vezes preferem se perder em discussões terminológicas por vaidade ou por disputa em espaço acadêmico.

    Tanto a lei ficaria mais clara que todas as excludentes poderiam ser listadas indistitamente em um rol único, ao invés de confudir as nossas mentes ao dispô-las em diversos artigos que não seguem necessariamente uma ordem lógica.

    Finalmente, tal proposta serviria para simplificar o tratamento dos erros essenciais e acidentais e também para resolver o problema da figura da “absolvição imprópria” aplicada ao inimputável sujeito à medida de segurança. Seria, então, absolvição própria, remetendo-o apenas a um tratamento médico alternativo (internação ou farmacológico).

    Penso, com base nisso, que até mesmo o estudo doutrinário ficaria mais didático, sem prejuízo da técnica.

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