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Normalização da crueldade

Normalizar a crueldade (a violência, o crime etc.) significa torná-la normal, naturalizá-la, não perceber a crueldade como crueldade, a violência como violência e o crime como crime. Trata-se, essencialmente, de um discurso e de uma prática do poder, de uma retórica de legitimação de atos de violência, do uso e do abuso de um tipo de linguagem aparentemente neutra ou inocente. É uma cultura ou uma das possíveis formas da cultura.

Graças à normalização, vemos um relato de crueldades, como a bíblia, por exemplo, como a suposta expressão da palavra de deus, e não como produto da megalomania humana; logo, um texto humano, demasiado humano, escrito pelo homem e para o homem. Também por isso, somos incapazes de perceber o quanto nela há de misógino, homofóbico etc.

Graças a ela (a normalização), foram possíveis as guerras religiosas, as cruzadas, a inquisição, o massacre dos cátaros e valdenses, a noite de São Bartolomeu.

Graças a ela, foram e são possíveis os sacrifícios religiosas de pessoas e animais. E os atuais mercadões da fé podem livremente manipular e extorquir fiéis incautos até o último centavo.

Graças a ela, a escravidão, e toda sorte de violência que implicava, pôde subsistir por milênios. E nunca de todo abolida, continua a existir, embora com outros nomes sutis ou técnicos.

Graças a ela, mulheres foram tornadas incapazes, homossexuais, prostitutas e outros tantos foram considerados párias sociais;

Graças a ela, assistimos, indiferentes, a crianças e urubus disputarem alimento nos lixões;

Graças a ela, deputados, prefeitos, vereadores podem pilhar sem problema algum de consciência;

Graças a ela, foram possíveis o holocausto nazista, os campos de concentração, os gulags, os genocídios. E assim um hutu poderia, em Ruanda, matar um vizinho apenas por ele ser um tutsi. E o preso A pode decapitar o preso B apenas porque são de facções diferentes, ainda que um nada tenha contra o outro.

Graças a ela, achamos absurdo falar de direitos humanos para criminosos e julgamos justas as execuções sumárias diárias, um tipo de genocídio em marcha contra os socialmente excluídos. E policiais jovens, pardos ou negros e pobres podem se orgulhar de torturar e matar jovens pardos ou negros e pobres, igualmente excluídos.

Graças a ela, somos indiferentes à superlotação, à desumanidade das prisões e à sistemática violação dos direitos dos presos. E os recentes massacres só nos preocupam na medida em que nos ameaçam.

Graças a ela, abatemos animais e nos deliciamos com sua carne; visitamos açougues sem notar o cheiro de carne podre que nele exala; e achamos justo castrar nossos animaizinhos de estimação, para “seu próprio bem”.

Graças a ela, nos divertíamos contando e ouvindo piadas racistas; e praticávamos bullying sem nos importar com o seu caráter ofensivo;

Graças a ela, adotamos o estilo de vida (colonial), a língua e os deuses de quem nos violentou. E pastores (obtusos) podem orgulhosamente profanar a religião de seus ancestrais. A normalização imbeciliza.

Graças a ela, são legitimadas as guerras, o extermínio dos povos vencidos, a anexação de estados e o estupro massivo de prisioneiros de guerra.

Como é possível a normalização ou a naturalização da crueldade? Criando um discurso de ódio, de desumanização e de anulação do outro, propagando a necessidade e a inevitabilidade da violência, quer atribuindo atos graves, desonrosos, heréticos, criminosos etc., quer imputando modos de ser incompatíveis com a condição e o tratamento de pessoa humana. É preciso, pois, naturalizar a maldade, legitimá-la.

Como é possível preveni-la ou evitá-la? Criando os discursos opostos, de tolerância, de priorização absoluta do diálogo, de reconhecimento do outro como pessoa humana mesmo nas condições mais adversas, sejam quais forem seus atos ou delitos, assegurando-lhe o direito ao devido processo legal, cumprindo a lei, buscando acolhê-lo, compreendê-lo e, se possível, perdoá-lo.

E enfrentar e resolver os problemas a partir das causas, e não tardiamente, a partir das consequências. Perceber que todo grave problema, antes de ser individual, é social, e como tal, exige intervenções sociais, sistêmicas.

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