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Leis são necessárias?

Tenho me questionado freqüentemente, sobretudo em virtude da superprodução legislativa dos últimos anos, em especial, emendas à Constituição e normas penais, leis, em geral, puramente simbólicas e demagógicas, se a própria atividade legislativa não seria, ela mesma, uma atividade desnecessária, inútil, ao menos em relação aos fins que lhe são tradicionalmente assinalados pelo discurso oficial. Pense nisso: se em tua casa, tu tiveres necessidade de afixar na parede um aviso, portaria, lei ou coisa que o valha, advertindo, por exemplo, de que “nesse recinto é proibido matar, estuprar, furtar etc.”, em verdade, tu estarás, por um lado, simplesmente proclamando o óbvio, por outro, se tiveres necessidade de semelhante expediente, é porque em tua casa as coisas chegaram a uma tal desordem que é evidente que essa simples folha de papel não mudará absolutamente nada. E leis são, antes de tudo, folhas de papel com mensagens impressas.

Parece razoável supor ademais que ninguém deixa de matar, estuprar, furtar etc. porque existam leis que incriminam tais comportamentos; afinal, as pessoas cometem ou deixam de cometer crimes porque têm ou não motivação para tanto: emocionais, psicológicas, morais, culturais, religiosas, econômicas etc. Enfim, as complexas motivações humanas dificilmente podem ser eficientemente debeladas pelo poder mítico das leis. Além disso, as leis, rigorosamente falando, nada prescrevem, proíbem ou autorizam; antes, prescrevem, proíbem ou autorizam o que dizemos que elas prescrevem, proíbem ou autorizam; ou seja, elas dizem o que dizemos que elas dizem. É que, afinal, graças à escrita, o discurso se liberta da tutela de intenção do autor, das circunstâncias e da orientação voltada para o leitor primitivo, sendo que a autonomia semântica que resulta dessa tríplice libertação assegura uma carreira independente do texto e abre para a interpretação um campo de exercício considerável (Paul Ricouer, in o justo e a essência da justiça, Instituto Piaget, Lisboa, 1995). É por isso, aliás, que o discurso sobre a lei, com ou sem alteração da redação dos textos legais, está em permanente mutação. Afinal, em última análise, o legal e o ilegal, tal qual o justo e o injusto, o moral e o imoral, é em nós que ele existe!

Não bastasse isso, que legitimidade pode decorrer de leis ditadas por um parlamento absolutamente desacreditado, estruturalmente corrompido e antidemocrático, fundado que é num sistema representativo caduco e a serviço dos grupos econômicos que bancam a eleição dos deputados e senadores, vereadores, prefeitos etc.?

No particular, a questão fundamental reside nisso, porém: pretender mudar a realidade por meio de leis é grandemente utópico. O melhor exemplo disso é a própria Constituição Federal cujo projeto de um Estado Social e Democrático de Direito tem sido sistematicamente desautorizado pela realidade, particularmente no que diz respeito ao capítulo dos direitos sociais: direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, entre outros. Aliás, combater o racismo, a desigualdade social, o preconceito, o desemprego, a fome etc. por meio de leis é apenas um modo particular de proclamar retoricamente: “sejam bons, sejam solidários, sejam éticos, respeitem o próximo etc.”; no essencial, a Constituição encerra, portanto, uma simples carta de (boas) intenções.

Mas os exemplos disso – inadequação da lei para transformar a realidade – são inumeráveis no âmbito jurídico-penal, especialmente: a edição de uma lei de crimes hediondos não diminuiu os índices de criminalidade; a promulgação de uma lei de tortura não fez com que os nossos policiais se tornassem menos violentos; leis em favor da ordem tributária não impediram que a sonegação fiscal deixasse de crescer; leis contra a falta de decoro não obstam parlamentares de reincidirem na infração; leis proibitivas de estupros, tráfico de drogas não evitam tais delitos, mesmo porque o criminoso, antes de decidir praticar uma determinada infração, não faz uma prévia consulta ao Código Penal para deliberar a esse respeito. Pergunte, sinceramente, a si mesmo: “por que ainda não estuprei alguém”? “por que ainda não matei alguém?”, “por que ainda não assaltei um banco?” Duvido que a resposta seja: “porque há uma lei que o proíbe; e se a lei for revogada, eu o farei”! Pois quem tiver chegado a uma tal resposta, jamais seria obstado pela simples existência da lei. Ordinariamente, inclusive, o autor de uma infração, seja qual for, acredita que não será descoberto, e segue adiante, se tiver motivação suficiente para tanto.

Tenho, assim, que as leis são um instrumento retórico e demagógico, não raro, de criar uma impressão, uma falsa impressão, de segurança, criando no imaginário social a ilusão de que os problemas foram ou estão sendo resolvidos, até porque de nada valem se não existirem mecanismos reais de efetivação. E as leis parecem assumir nos dias atuais, cada vez mais, uma função mítica, simbólica. E o legislador tem sabido tirar proveito disso, ao decidir legislar em profusão, como se a edição de novas leis não significasse a simples multiplicação de novas violações à lei, mas, antes, a redenção da humanidade.

Apesar disso, não estou a propor a utopia de um Estado sem leis, mas, se quisermos tomar a sério a legislação, devemos adotar um corpo mínimo de leis: claras, precisas, absolutamente necessárias e com um mínimo de efetividade social, pois, como há muito disse Montesquieu, as leis desnecessárias enfraquecem e desacreditam as leis necessárias.

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