1)O voto não faz controle de constitucionalidade da lei, mas controle de constitucionalidade de teses
Inicialmente, é de ver que, embora se pretenda na ADPF 779/DF/2021, relator Ministro Dias Toffoli, dar interpretação conforme a Constituição aos artigos questionados (arts. 23 e 25 do CP etc.), nenhum dos artigos foi de fato questionado, pois nada contêm de inconstitucional, já que se limitam a reconhecer a legítima defesa, sem mencionar, expressa ou tacitamente, a chamada legítima defesa da honra em casos de feminicídio. Nem se compreenderia que o Código Penal, editado para regular casos abstratos e hipotéticos, descesse a tal casuísmo. Haveria inconstitucionalidade, por exemplo, se a lei dissesse: “Não há crime se o feminicídio for motivado por ciúme, adultério etc.” Mas a lei não diz um tal absurdo, nem faria sentido algum se o fizesse.
Além disso, a legítima defesa presta-se, em tese, a proteger qualquer bem jurídico, individual ou coletivo, a vida, a liberdade, o patrimônio etc. Que a honra, como qualquer direito, é passível de proteção jurídica, é fora de dúvida (v.g., a retorsão imediata na injúria). O que sempre se poderá discutir, no caso concreto, qualquer que seja o bem jurídico em jogo, é a proporcionalidade da reação, que, nos termos do art. 25 do CP, há de ser necessária, moderada etc. Afinal, a legítima defesa não é salvo-conduto para reações desproporcionais, nem é uma licença para matar arbitrariamente, e sim uma forma de proteção jurídica contra agressões injustas, atuais ou iminentes, a direito próprio ou de outrem.
O problema não é, portanto, se é possível falar de legítima defesa da honra (a defesa da honra é legítima), mas se uma ofensa à honra poderia legitimar um feminicídio ou qualquer outro delito grave (lesões corporais, maus-tratos, cárcere privado etc.). A resposta é definitivamente não, pois faltariam aí a necessidade e moderação exigidas pelo art. 25 do CP. Mas quem tem competência para rejeitar ou não a alegação é o Tribunal do Júri, não o STF, que, no caso, não declarou a inconstitucionalidade de lei alguma, e sim a inconstitucionalidade de uma tese concreta, restringindo a um tempo a soberania dos veredictos e a plenitude de defesa garantidos no art. 5°, XXXVIII, da Constituição.
Tanto é certo que o STF não declarou a inconstitucionalidade do art. 25 do CP, embora esse fosse o pretexto da ação e o fundamento do voto concessivo da medida cautelar, que é dito que “salta aos olhos que a ‘legítima defesa da honra’, na realidade, não configura legítima defesa”. Com efeito, nada há no CP sobre legítima defesa da honra, tampouco sobre legítima defesa em casos de feminicídio, mas sobre legítima defesa abstratamente considerada, com a indicação de seus requisitos legais (injusta agressão, atual ou iminente etc.).
Como expressamente reconhece o voto, o problema não é a lei, mas o “recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes e lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil”.
Daí a conclusão no sentido de que “o recurso à tese da legítima defesa da honra é prática que não se sustenta à luz da Constituição de 1988, por ofensiva à dignidade da pessoa humana, à vedação de discriminação e aos direitos à igualidade e à vida, não devendo ser veiculada no curso do processo penal nas fases pré-processual e processual, sob pena de nulidade do respetivo ato postulatório e do julgamento, inclusive quando praticado no tribunal do júri”.
Para ser mais exato e coerente com sua linha argumentativa, o voto poderia acrescer que a tese de legítima defesa da honra é incompatível com o disposto no art. 25 do CP, já que faltariam a necessidade e moderação dos meios. Afinal, não se tratava de exercer de fato o controle de constitucionalidade da lei, mas de policiar o direito de defesa e cerceá-lo.
A lei não está e nunca esteve em questão, por conseguinte, logo, não há falar de controle de constitucionalidade; o que de fato está em causa são as possíveis alegações da defesa num caso concreto. Em suma, a pretexto de se fazer o controle de constitucionalidade da lei, fez-se controle de constitucionalidade de teses.
2)O voto viola o direito de defesa e a soberania dos veredictos
Além disso, quem tem competência constitucional para decidir se acolhe ou rejeita as teses da defesa ou da acusação, aí incluída a alegação de legítima defesa da honra, são os juízes e tribunais, especialmente (nos crimes dolosos contra a vida) o tribunal do júri, que tem igual assento constitucional (CF, art. 5°, XXXVIII), não o Supremo Tribunal Federal, a quem cabe precipuamente o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos do poder público, nos termos do art. 102 da Constituição.
O Supremo Tribunal Federal vai, pois, muito além de sua competência constitucional quando pretende discutir a extensão do direito de defesa no tribunal do júri e lhe impor limites. Viola, ainda, a soberania dos veredictos e a plenitude do direito de defesa previstos nos art. 5°, XXXVIII, a e c, da CF.
Com efeito, o direito de defesa, que há de ser amplo (CF, art. 5°, LV) e pleno, não simples defesa ou defesa limitada ou tutelada, há de compreender a liberdade de alegar toda e qualquer tese, moral ou imoral, justa ou injusta, prováveis ou improváveis, comprovadas ou não, plausíveis, ilógicas ou contraditórias. Assim, ressalvados os limites que a lei impõe, em caráter excepcional, a certas ações ou recursos (v.g., recursos extraordinários e especial, ação rescisória e revisão criminal etc.), bem como os casos que podem configurar crime contra a honra e outros delitos contra a pessoa (calúnia, ameaça etc.), não há limites ao direito de defesa. Como regra, o direito de defesa é, pois, ilimitado, amplíssimo.
3)O que de fato o STF proibiu? Qual a extensão do voto?
A conclusão principal do voto diz o seguinte: “(iii) obstar à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como no julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento”.
Há muito a dizer sobre isso, mas fiquemos no essencial: a)a decisão confunde legítima defesa da honra (gênero) com legítima defesa da honra em feminicídio (espécie). De todo modo, considerando a fundamentação e a conclusão da decisão, parece certo que o voto veda apenas a alegação da excludente no caso de feminicídio, consumado ou tentado; b)consequentemente, a decisão não proíbe, ou ao menos não proíbe expressamente, a alegação da excludente nos crimes contra a pessoa (lesões corporais, cárcere privado etc.), aí incluídos os demais crimes contra a vida, inclusive (homicídio, aborto etc.); c)também não proíbe a alegação da excludente com fundamentação jurídico-penal diversa, digamos, como estado de necessidade exculpante, inexigibilidade de conduta diversa, coação moral irresistível; d)tampouco veda teses que visem a minorar a pena, como, por exemplo, motivo de relevante valor social ou moral, domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou como atenuante inominada.