Se pensarmos bem, nos daremos conta de que os juristas (profissionais do direito) pertencem a uma classe particular de contadores de histórias, afinal, juízes, promotores e advogados não fazem outra coisa senão contar suas próprias histórias a partir de outras tantas. Uns contam tragédias, outros, comédias; uns preferem o conto; outros, a novela ou o romance; e o fazem com maior ou menor imaginação, com maior ou menor talento.
Mas todos contam histórias e, pois, dão sua própria versão dos fatos. Sim, porque o que pretendem como simples “sentença”, “denúncia”, “testemunho”, “fatos” não é uma pura narração, mas uma construção, isto é, uma interpretação a partir do que a mente percebe e a memória retém.
Trata-se, enfim, de uma história recontada conforme os nossos sentidos, as nossas necessidades, os nossos interesses, as nossas crenças, as nossas limitações. Não existem fatos; só existem interpretações (Nietzsche), mesmo porque o direito escreve roteiros que permitem aos atores grande margem de improvisação.1
De um certo modo, portanto, o direito é uma ficção que não se assume como ficção.2
Que são afinal os grandes advogados senão exímios contadores de histórias, e que, como bons contadores, contam-nas conforme o seu respectivo auditório (juiz, tribunal etc.), com ele interagindo e persuadindo-o? Enfim, que fazem os juristas senão contar histórias, mais ou menos verossímeis, mais ou menos exatas, no seu próprio interesse e no interesse de seus clientes (Estado, réu, vítima)?
Também por isso não surpreende quão arbitrários podem ser nossos juízos de valor, afinal em última análise interpretamos o mundo e tudo lhe diz respeito conforme o nosso grau de envolvimento e identificação com os personagens, dramas e temas em questão. Não é por acaso que tendemos a compreender e perdoar as pessoas de quem gostamos e, pelos mesmos atos, abominamos aqueles que nunca vimos ou conhecemos; uns cometem “erros”, outros crimes. Não por outra razão é que a lei declara impedido ou suspeito o juiz segundo o grau de parentesco (ou amizade) com as partes do processo.
Por tudo isso talvez tenhamos mais a aprender com a literatura, o teatro, o cinema, a música, a arte, do que com os livros técnicos. Porque a interpretação, na arte como no direito, mais do que técnica e razão, requer talento e sensibilidade.
1François Ost. Contar o Direito: as fontes do imaginário jurídico. Porto Alegre: Editora Unisinos, 2005, p. 44. De acordo com François Ost, entre direito e literatura, solidários por seu enraizamento no imaginário coletivo, os jogos de espelho se multiplicam, sem que se saiba em última instância qual dos dois discursos é ficção do outro. Assinala ainda que, ao invés de se afirmar que o direito se origina dos fatos (ex facto ius oritur), seria mais exato dizer ex fabula ius oritur: é da narrativa que sai o direito. Contar o Direito: as fontes do imaginário jurídico. Porto Alegre: Editora Unisinos, 2005, p. 24.
2Eis a propósito um dos sentidos possíveis de ficção: “relato ou narrativa com intenção objetiva, mas que resulta de uma interpretação subjetiva de um acontecimento, fenômeno, fato etc.”. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Ed. Objetiva: Rio de Janeiro, 2001, 1ª edição, p. 1336.