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Inconstitucionalidade das medidas de segurança?

Paulo Queiroz

Em monografia inédita – “Direito Penal da Loucura – Medidas de Segurança e Reforma Psiquiátrica”, Paulo Jacobina confronta disposições do Código Penal e da Lei de Execução Penal com a Constituição Federal e principalmente com a Reforma Psiquiátrica levada a cabo nos últimos anos, em especial pela Lei n° 10.216/2001, para concluir, dentre outras coisas, pela inconstitucionalidade das medidas de segurança.

 

No particular, assinala Jacobina, textualmente, que “estabelecer a constitucionalidade de um direito penal dirigido ao inimputável, e baseado na periculosidade social (juízo para o futuro) e não na culpabilidade (juízo para o passado) é muito complicado, do ponto de vista da afinação com a Constituição vigente. Submetê-lo a processo penal para aplicar-lhe uma medida de segurança é, em igual medida, complicadíssimo. Onde encontrar a culpa de quem é legalmente irresponsável? Como garantir o devido processo legal a quem não pode sequer entender seus termos? Como garantir a pessoalidade (a pena não deve passar da pessoa do condenado) se o louco deve ser absolvido para depois apenado? Para que fosse constitucional julgar alguém após reconhecê-lo mentalmente enfermo a ponto de não ter noção do que faz, ou de não poder conduzir-se de acordo com essa noção, sob o fundamento da periculosidade social, seria preciso que a Constituição dissesse que ‘ninguém será considerado culpado ou perigoso socialmente até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória ou de sentença penal absolutória que reconheça tal periculosidade, nos termos da lei’”.

 

Vai concluir Jacobina, então, que as medidas de segurança, sob o disfarce de “sanção terapêutica”, têm caráter claramente punitivo e é, por isso, inconstitucional, pois aplicada a quem foi absolvido, implicando responsabilização sem culpa; objetiva, portanto.

 

 

A argumentação de Jacobina, que me parece demasiado formal, e que, levada às últimas conseqüências, poderia ser estendida também aos menores infratores, para concluir pela inconstitucionalidade das medidas sócio-educativas previstas na Lei n° 8.069/90 (ECA), já que também aqui existe punição sem que haja sentença penal condenatória, parte de duas premissas básicas: a)medidas de segurança são penas; b)a sentença que a impõe não é condenatória, mas absolutória.

 

Não estou de todo em desacordo com Jacobina. Inicialmente, tenho que lhe assiste razão quanto ao caráter punitivo das medidas de segurança. De fato, por melhores que fossem as intenções do legislador ao criar as medidas de segurança para o inimputável, fato é que implicam sérias restrições à liberdade de quem as sofre, e, na prática, a execução da internação em hospitais de custódia e tratamento (HCT) é, freqüentemente, mais gravosa e prejudicial para o interno do que a própria pena imposta ao imputável, resultando, não raro, como mostra Jacobina, na cronificação da enfermidade mental. Além disso, condenados sujeitos à pena fazem jus a todos os direitos inerentes à execução penal (livramento condicional, progressão de regime, indulto, comutação e remição de pena etc.), os quais não aplicáveis aos inimputáveis. Enfim, os HCT’s é um misto de prisão e hospital muito mais nocivo do que a pena mesma.

 

Além disso, as finalidades das penas e medidas de segurança são essencialmente as mesmas: prevenir, em caráter geral e especial, novos crimes, como forma subsidiária de proteção de bens jurídicos.

 

Também não distingo penas e medidas de segurança, contrariamente à doutrina, quanto aos pressupostos legais, uma vez que, em nome do princípio da igualdade, um dos pilares do Estado Democrático de Direito, a aplicação de medida de segurança somente terá lugar nos casos em que seria possível uma pena, vale dizer, somente quando o agente praticar fato típico, ilícito, culpável e punível, pois, do contrário, o sujeito seria “castigado” pelo só fato de ser portador de transtorno mental. Dito de outro modo: as medidas de segurança, tanto quanto as penas, somente podem ser impostas quando, respeitado o devido processo legal e todas as garantias que são inerentes, restar comprovado que o agente praticou fato típico (v.g., conduta definida como crime, não insignificante, sem coação física irresistível), não estiver acobertado por causa excludente de ilicitude (v.g., legítima defesa, estado de necessidade), nem excludentes de culpabilidade (v.g., coação moral irresistível, embriaguez involuntária completa), nem causas de extinção de punibilidade (prescrição, decadência etc.), hipóteses perfeitamente aplicáveis aos inimputáveis, mesmo porque os transtornos mentais comportam graus diversos. Aliás, não existe a loucura em si, uma vez que é relação/interação/imputação, e é, pois, socialmente construída.

 

Distinção alguma haveria, então, entre penas e medidas de segurança? Uma, fundamentalmente: as penas são aplicadas aos imputáveis; as medidas de segurança são aplicadas aos inimputáveis; e isso atendendo ao princípio da adequação (proporcionalidade), pois sentido algum faria enclausurar enfermos mentais numa penitenciária, já que nada têm do que se penitenciar.

 

Em conclusão, temos que a sentença que aplica medida de segurança há de exigir todos os pressupostos da pena, devendo-se proceder, inclusive, à individualização nos termos dos arts. 59 e 68 do Código Penal, para, em seguida, substituí-la pela medida por termo determinado, quanto ao tempo mínimo e máximo de duração, ajustando-a aos princípios constitucionais (legalidade, proporcionalidade, devido processo legal), tal como vem de proceder, aliás, o Desembargador Amílton Bueno de Carvalho1.

Assim, a sentença que aplica medida de segurança tem caráter misto: é absolutória, porque não impõe a aplicação de pena em sentido estrito (formal), mas medida de segurança (internação ou tratamento ambulatorial), além de assim se achar disciplinado legalmente (CPP, t. 386, V, e parágrafo único, III), não gerando reincidência etc; é condenatória, por exigir todos os pressupostos da condenação (infração penal punível).

 

É possível dar, enfim, às medidas de segurança interpretação conforme a Constituição, afastando, no particular, as objeções de Jacobina, até porque, no Estado Democrático de Direito, a instauração do processo penal destinado a apurar a infração penal cometida por inimputável é absolutamente necessária, a fim de prevenir reações públicas ou privadas arbitrárias contra ele.

 

 

1PROCESSUAL PENAL. MEDIDA DE SEGURANÇA. PRAZO INDETERMINADO. INCONSTITUCIONALIDADE. PROIBIÇÃO DE PENAS PERPÉTUAS OU DE outro MODO ABUSIVAS. NECESSIDADE DE READEQUAÇÃO DOS LIMITES MÁXIMO E MÍNIMO.

– É inconstitucional a indeterminação de limite máximo, bem como, abusivo, prolongado e excessivo o prazo mínimo para a verificação da cessação da periculosidade do agente, previstos no art. 97, do Código Penal, à imposição de Medidas de Segurança.

– A Constituição Federal veda expressamente a imposição de sanção penal que possa assumir caráter perpétuo ou que possa ser, de qualquer forma, abusiva (art. 5, XLVII e alíneas) – assim, ancorada nos princípios fundamentais (freios libertários ao poder punitivo estatal) impõe a maior aproximação isonômica possível entre a punição de imputáveis e inimputáveis que cometem delitos.

– A dignidade da pessoa humana, isonomia e mitigação da dupla violência punitiva – dos delitos e das penas arbitrárias (no dizer de Ferrajoli) – restam, então, aqui contempladas da seguinte forma: fixação do limite máximo pelo total da pena estabelecida em cada caso concreto (igualmente ao que se dá com imputáveis), bem como, a fixação do prazo mínimo para a verificação da cessação da periculosidade em 01 ano (como não há dogma sobre a cura de um distúrbio mental, melhor que se a comece a investigar no menor tempo possível), devendo, cessada a enfermidade mental, ser o apenado posto em liberdade a qualquer tempo.

– À unanimidade deram parcial provimento ao apelo. (Apelação Crime Nº 70010817724, Quinta Câmara Criminal, Comarca de Cachoeira do Sul, Jorge Eloy Nascimento Barbosa, apelante e Ministério Público apelado).

 

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Não é fácil prefaciar qualquer trabalho de Paulo Queiroz, principalmente quando ele homenageia o prefaciador. O largo tirocínio no Ministério Público Federal, os longos anos de magistério universitário e as inúmeras palestras proferidas por esses brasis afora, congeminados, descortinaram-lhe novos horizontes. E aí está a literatura jurídica pátria engrandecida com mais um trabalho que honra sobremodo as nossas tradições.

A prescrição é a mais relevante, a mais complexa, a mais controversa e a mais frequente causa de extinção da punibilidade. Nem todos concordam com a prescrição e sempre houve quem propusesse a sua abolição total ou parcial sob a justificativa de ser um dos fundamentos da impunidade.

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