Fundamentos jurídicos, razoabilidade, motivação política e seletividade do sistema penal.
Sejamos francos: apesar de o foro privilegiado ter fundamentos jurídicos até razoáveis, a sua motivação é claramente política e traduz um modo particular de legislar em causa própria, sendo de todo incompatível com um sistema que se pretende democrático de direito, que tem o princípio da igualdade de todos perante a lei como um de seu pilares. Não é de estranhar, por isso, que mais uma vez o parlamento (PEC 358/05) pretenda ampliá-lo, estendendo-o também a ex-ocupantes de cargos políticos importantes: governadores, parlamentares, prefeitos etc., motivo pelo qual somente poderiam ser julgados penalmente pelos tribunais. A razão de uma tal preferência é evidente: não dispondo os tribunais (ordinariamente) de estrutura adequada para fazer face a tal demanda, os processos criminais instaurados contra tais pessoas muito provavelmente prescreverão, deixando-os impunes.
Na prática, pois, ampliar o foro privilegiado é assegurar a impunidade de potenciais criminosos. Sim, porque tivesse o STF (por exemplo) um histórico de punir criminosos do poder implacavelmente, por certo que interesse algum haveria em postular algo assim, mesmo porque em tese o foro privilegiado é menos garantista e prejudicial ao réu, pois pode inclusive implicar a possibilidade de ser julgado por uma única instância (STF), abrindo-se mão de uma dezena de recursos possíveis caso fosse julgado por um juiz singular.
O parlamento prestaria em verdade um grande serviço ao país se, ao invés de ampliar o foro privilegiado, fizesse exatamente o contrário: abolisse por completo toda sorte de prerrogativa de foro, afinal quanto mais importante é o cargo que se exerce tanto maior há de ser a responsabilidade do seu ocupante, que deve ser julgado como qualquer outro acusado, sem nenhum tipo de privilégio, embora conforme as garantias de um processo penal democrático. Aliás, se tais agentes políticos são julgados, nas ações cíveis, trabalhistas etc., perante os juízes comuns, que razão haveria para que não se fizesse o mesmo também quanto às ações penais?
É comum se dizer que os juízes de primeiro grau são com freqüência muito jovens e por isso não estariam em condições de julgar de modo imparcial tais autoridades, mas semelhante argumento é inconsistente, porque, se assim for, então será o caso de não poderem julgar ninguém mais, inclusive as autoridades que não detêm foro privilegiado (policiais, agentes da Receita, do Banco Central, defensores públicos, vereadores etc.). Além disso, se a alegada falta de isenção for fundada, a lei poderá estabelecer que só os juízes com determinado tempo de magistratura (digamos, 10 anos) tenham competência para decidir tais causas. Mais: eventuais abusos sempre podem ser corrigidos por meio de recurso para os tribunais e argüições de impedimento ou suspeição. Por fim, não parece certo que os tribunais sejam menos vulneráveis ou mais isentos, especialmente porque seus membros são, não infreqüentemente, indicados segundo critérios políticos por excelência. Há quem afirme, inclusive, que a confiança que se deve depositar no poder judiciário brasileiro é inversamente proporcional à sua hierarquia (Celso Antônio Bandeira de Mello).
Por tudo isso, é de se lamentar que num momento em que a imprensa de um modo geral clama por mais repressão, ao menos quanto à criminalidade de rua, notadamente crimes contra o patrimônio (furto, roubo, latrocínio), típica de sujeitos socialmente excluídos, tente o congresso ampliar a prerrogativa de foro. Aliás, a ambigüidade como a questão penal é tratada pelo parlamento demonstra a pouca seriedade como realmente é enfocada: criminosos são sempre os outros.
No fundo o foro privilegiado é apenas mais um dispositivo de poder destinado a perpetuar a arbitrária seletividade do sistema penal, que recruta sua clientela preferencialmente entre os grupos sociais mais vulneráveis política e economicamente: la justicia penal es como las serpientes; solo pica a los descalzos (Monsenhor Oscar Romero).