O que hoje conhecemos por tráfico ilícito de entorpecentes nem sempre existiu, afinal houve um tempo em que as drogas (antigas e atuais) eram livremente produzidas e comercializadas.1 A história da repressão – grandemente fracassada – é, pois, recente. E o fato de atualmente existir uma política duramente repressiva não significa que tal ocorrerá sempre.2 Aliás, parece mesmo provável que num futuro não muito distante algumas das atuais substâncias ilícitas – talvez todas elas – voltem a ser comercializadas com algum controle oficial, à semelhança do que se passa com as drogas lícitas (tabaco, álcool, remédios etc.). Lembre-se, a propósito, que as atuais drogarias se prestam a isso, essencialmente: vender drogas.
Naturalmente que proibir, sobretudo proibir incondicionalmente, não é controlar; proibir significa apenas remeter as atividades proibidas para a clandestinidade, onde não existe controle (oficial) algum, de modo que, a pretexto de reprimir a produção e o comércio de droga, a lei penal acaba por fomentar o próprio tráfico e novas formas de violência e criminalidade, transferindo o monopólio da droga para o chamado mercado negro.
Não é por acaso que alguns países – Holanda, Suíça etc. – têm, por isso, preferido uma política de redução de danos a uma política repressiva.3 É que, a pretexto de combater a produção e o consumo de droga, a proibição indiscriminada dessa forma de comércio tem produzido efeitos grandemente criminógenos, tais como: 1)criação de preços artificiais e atrativos, tornando extremamente rentável o tráfico; 2)o surgimento de uma criminalidade organizada especializada no tráfico; 3)frequentes confrontos e mortes entre grupos rivais; 4)frequentes confrontos e mortes entre traficantes e policiais; 4)vitimização de inocentes por meio das chamadas “balas perdidas” e semelhantes; 5)lavagem de dinheiro; 6)corrupção das polícias e outros agentes públicos; 7)tráfico de armas; 8)sonegação de tributos; 9)rebeliões nos presídios; 10)ameaça, extorsão e morte de consumidores inadimplentes; 11)criação de um poder político (militar ou paramilitar) paralelo ao Estado.
E, apesar da proibição, drogas são facilmente encontradas em todo território nacional. Parece, inclusive, que, quão mais repressora é a política antidroga, mais forte e violento se torna o tráfico, mesmo porque, enquanto houver procura (de droga lícita ou ilícita), haverá oferta, inevitavelmente.
E certamente há uma forte tendência do tráfico de assumir o controle de certas instâncias de exercício legal de poder. Com efeito, de acordo com Moisés Naím, “nos países em desenvolvimento e naqueles que fazem a transição do comunismo, as redes criminosas frequentemente constituem o capital investido mais poderoso que confronta o governo. Em alguns países seus recursos e capacidades traduzem-se em geral em influência política. Os traficantes e seus sócios controlam os partidos políticos, dominam importantes meios de comunicação e são os maiores filantropos por trás das organizações não-governamentais. Esse é um resultado natural em países onde nenhuma atividade econômica pode igualar-se, em tamanho e lucros, ao comércio ilícito e onde, portanto, os traficantes tornam-se o ‘o grande empresariado’ nacional”.4
No fundo, o problema fundamental não reside, propriamente, na produção e consumo de drogas legais ou ilegais, presentes na história da humanidade desde sempre, mas na irracionalidade do discurso de guerra às drogas e na violência arbitrária que resulta da atual política proibicionista, um autêntico genocídio em marcha.5
Proibir, absolutamente, o comércio de drogas é, por conseguinte, o modo mais trágico e desastroso de administrar o problema.
Vide, a propósito, Antonio Escohotado: Historia General de las Drogas. Madrid: Editoral Espasa, 2008, 8ª edición. Há, inclusive, quem veja evidências arqueológicas do consumo de substâncias psicoátivas na prehistoria (Elisa Guerra Doce. La Drogas en la prehistoria. Evidencias arqueológicas del consumo de substancias psicoativas em Europa. Barcelona: Editorial: Edicions Belaterra, 2006). De acordo com Maria Lúcia Karam (Proibições, riscos, danos e enganados: as drogas tornadas ilícitas, v.3. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2009), a primeira ação internacional visando a proibir a produção, a distribuição e o consumo de substâncias psicoativas e matérias primas foi sistematizada na Convenção Internacional sobre o Ópio, adotada pela Liga das Nações, em Haia, em 23 de janeiro de 1912, sendo que o artigo 20 recomendava aos Estados signatários que examinassem a possibilidade de criminalização da posse de ópio, morfina, cocaína e seus derivados. Salo de Carvalho (cit., p. 10/11), embora cite precedentes no Livro V das Ordenações Filipinas, Título LXXIX), assinala que “…somente a partir de 40 é que se pode verificar o surgimento da política proibicionista sistematizada (…). No caso da política de drogas no Brasil, a formação do sistema repressivo ocorre quando da autonomização das leis criminalizadoras (Decretos 780/36 e 2.953/38 e o ingresso do país no modelo internacional de controle (Decreto-Lei 891/38)…”.
2Atualmente mais de 20 países adotam a pena de morte para o tráfico: Argélia, Brunei, Coréia do Sul, China, Egito, Emirados Árabes Unidos, Filipinas, Indonésia, Irã, Iraque, Ilhas Maurício, Jordânia, Kwait, Malásia, Singapura, Síria, Sri Lanka, Taiwan, Tailândia, Turquia. Também os Estados do Arizona e Florida (Estados Unidos da América). Cf. Antonio Escohotado, cit., p.1.125.
3Vide, a propósito, Salo de Carvalho: A Política Criminal de Drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, 5ª edição.
4Ilícito. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 13.
5Thomas Szasz, comparando política de drogas e discurso religioso, afirma que “como un judío profanando la Torah, o un cristiano la hostia, un americano que usa droga ilícita es culpable del crimen místico de profanación: transgrede el más estricto y más remido tabú. Quien abusa de las drogas se contamina a sí mesmo y contamina a su comunidad, poniendo em peligro a ambos. De ahí que para el libertario laico quen abusa de las drogas comete un <<crimen sin víctima>> (esto es, ningún crimen em absoluto), mientras para el hombre normalmente socializado es un peligroso profanador de lo sagrado. Por eso su eliminación está ampliamente justificada.” SZASZ, Thomas. Nuestro derecho a las drogas. Tradución de Antonio Escohotado. Barcelona: Compactos Anagrama, 2001, p, 112. Comparação semelhante faz Antonio Escohotado, que, em análise longa e exaustiva, fala de “cruzada contra as drogas”.