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Direito Penal e Direito Processual Penal: autonomia e déficit de garantismo

Como é sabido, a doutrina costuma ressaltar as diferenças e autonomia entre direito penal e processo penal em prejuízo das semelhanças, o que acaba resultando, praticamente, num déficit de garantismo, motivo pelo qual convém repensar essa relação1.

O direito processual penal é o ramo do ordenamento jurídico cujas normas instituem e organizam os órgãos públicos que cumprem a função jurisdicional do Estado e disciplinam os atos que integram o procedimento necessário para a aplicação de uma pena ou medida de segurança2. Incumbe ao processo penal, portanto, definir competências, fixar procedimentos e estabelecer as medidas processuais necessárias à realização do direito penal, razão pela qual o processo penal nada mais é do que um continuum do direito penal, ou seja, é o direito penal em movimento, e, pois, formam uma unidade.

Por conseguinte, não pode haver crime sem processo, porque é por meio do processo penal que o Estado, que detém com exclusividade o direito de punir3, dirá, por exemplo, se há ou não crime, se o crime está ou não provado, se a prova obtida é ou não lícita, se o autor agiu ou não em legítima defesa, se ele é ou não culpável, se houve ou não prescrição. Por isso é que entre o direito penal e o processo penal há uma relação de mútua referência e complementaridade4, visto que o direito penal é impensável sem um processo penal (e vice-versa). Daí dizer Calmon de Passos que a relação entre o direito material (penal, civil) e o processo não é uma relação apenas de meio e fim, isto é, instrumental, mas uma relação integrativa, orgânica, substancial, uma vez que o direito é socialmente construído, historicamente formulado, atende ao contingente e conjuntural do tempo e do espaço, e, por isso, somente o é depois de produzido5.

Exatamente por isso, os princípios e garantias inerentes ao direito penal (legalidade, irretroatividade da lei mais severa etc.) devem ser aplicados, por igual, ao processo penal, unitariamente, não cabendo fazer distinção no particular. Também por isso, os constrangimentos gerados pelo processo penal jamais poderão exceder àqueles que poderiam resultar da própria condenação, sob pena de conversão do processo em pena antecipada, além de violação ao princípio da proporcionalidade. Assim, não é legítima a prisão provisória sempre que à infração penal cometida for cominada pena não privativa da liberdade ou for cabível a sua substituição por pena restritiva de direito ou semelhante.

Apesar disso, direito penal e processo penal não se confundem, porque, por exemplo, a prisão provisória (prisão em flagrante, prisão preventiva) não é a própria pena cominada ao crime, nem sua antecipação, a qual pressupõe um processo, sob pena de se confundir o processo de conhecimento com o processo de execução (a própria execução da pena); e, neste caso, o processo, que deveria assegurar ao réu as garantias que lhe são inerentes, com vistas à realização de um julgamento justo ou ao menos conforme a Constituição seria um simples pretexto para se impor um castigo antecipado a alguém e legitimar decisões arbitrárias, como se de fato processo algum existisse.

O mesmo deve ser dito quanto à execução penal, última etapa de realização do direito penal, a qual deve ser regida pelos princípios constitucionais do direito e processo penal, afinal, o direito, apesar de compartimentado em ramos, é um só. Assim, modificações legislativas criadas em desfavor do condenado não podem atingir as condenações por crimes cometidos anteriormente à sua entrada em vigor, sob pena de violação ao princípio da irretroatividade da lei mais severa (v.g., uma lei que abolisse o livramento condicional deveria ser aplicada somente aos crimes cometidos posteriormente à sua vigência).

Em conclusão, e contrariamente à doutrina ainda hoje majoritária, tudo que se disser sobre o direito penal há de igualmente valer para o direito processual penal e execução penal, necessariamente, a fim de conferir-lhes tratamento unitário e conforme a Constituição.

 

1 Elmir Duclerc (Curso Básico de Direito Processual Penal, v. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 4), por exemplo, sustenta que não é correto vincular a existência do direito processual ao direito penal, mesmo porque o processo penal “nem sempre será decidido com amparo em normas de direito material (pense-se, por exemplo, nos processos por crime de furto, em que pode ser necessário discutir se a coisa subtraída era ou não alheia à luz do Direito Civil”. Não estamos de acordo com isso, evidentemente. Desde logo, porque o direito é um só, apesar de compartimentado em ramos, que não são compartimentos estanques; segundo, porque o recurso ao conceito jurídico-penal de infração penal (no caso, crime de furto) é absolutamente indispensável; terceiro, porque não se pode justificar um conceito a partir de uma exceção; finalmente, porque o só fato de um processo penal poder ser anulado por meio de habeas corpus por violar normas processuais não desmente a vinculação essencial entre direito penal e processo penal. Além disso, o direito processo penal, antes de ser processo, é direito, e não é qualquer processo (civil, administrativo etc.), mas processo penal, isto é, relativo ao direito penal. Enfim, os argumentos invocados em favor da independência do direito processual penal dizem respeito a aspectos acidentais, não essenciais, da relação político-jurídica em questão.

2 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal.Tomo I: Fundamentos. 3. ed. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2004, p. 75.

3 Conforme assinala Aury Lopes Júnior, o processo, como instituição estatal, é a única estrutura que se reconhece como legítima para a imposição da pena, visto que o direito penal é desprovido de coação direta e, diferentemente do direito privado, não tem atuação nem realidade concreta fora do processo correspondente, in Introdução crítica ao Processo Penal. 4ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.3.

4Figueiredo Dias, Jorge. Direito Processual Penal. 1. ed., 1974 (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p.28.

5 JJ.Calmon de Passos. Direito, poder, justiça e processo. Forense: Rio de Janeiro, 1999, p. 52 e 68.

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