Diálogos surreais (II)
Senador, vim discutir o projeto que legaliza a prostituição.
Prostituição? Essa expressão é muito forte, deputado. Trata-se de um projeto que regulamenta o comércio do prazer. De mais a mais, não existe mais essa coisa de prostituta. Essas moças e rapazes são, em verdade, modelos, dançarinas etc.
Pelo visto, o projeto conta com a simpatia de vossa excelência.
E como não? Aqui entre nós, a solidão na capital é terrível, esposa e amigos distantes, o senhor sabe… O jeito é buscar um serviço desse… é seguro e sai baratinho.
Entendo. Mas, senador, não podemos ser favoráveis a esse projeto imoral; já pensou se isso passa? Isso é um absurdo! Além do mais, o povo é contra, e nós somos os legítimos representantes do povo.
Representantes do povo? O senhor realmente acredita nisso? O senhor já reparou que aqui tem lobby de tudo, menos o lobby do povo? Não me venha com essa conversa fiada, deputado!
Não é bem assim, senador. Nós fomos eleitos pelo povo que nos outorgou procuração para representá-lo. E a representação é inerente ao sistema democrático contemporâneo.
O senhor é mesmo bom de metáforas. De todo modo, se isso for verdade, o povo tá lascado, deputado. Porque, como disse outro dia o deputado chiquinho, o parlamento tem mais de 300 picaretas. Aliás, seria mais exato dizer que tem mais de 300 idiotas.
O senhor já esta sendo deselegante, senador. Como assim, 300 idiotas?
Ora, deputado, sejamos francos: a grande maioria aqui são analfabetos funcionais, gente que não tem a menor noção do seu papel constitucional. Boa parte nunca leu a Constituição; e, se ler, não entenderá patavinas.
Senador, o senhor está exagerando. Veja o deputado xaropinho, por exemplo: ele é um homem inteligente, culto, consciente de seu papel político; conhece Platão, Aristóteles, Maquiavel, Kant, e faz conferência no Brasil e no exterior. E é um homem honestíssimo e respeitadíssimo.
Tem razão, deputado. Mas ele é a exceção da exceção. A regra aqui é a total ignorância. Por essas e outras, é que eu defendo um parlamento mínimo, um sistema unicameral, com, no máximo, 100 parlamentares, tal como propõe aquele jurista italiano… o…frajola, acho…
Não é frajola, não, senador; frajola é o gato do desenho animado frajola e piu piu. O senhor deve estar se referindo a Ferrajoli, Luigi Ferrajoli, filósofo e jurista italiano, que defende essa ideia no livro principia iuris.
Exatamente, deputado! O senhor é mesmo f…
Mas, falemos do projeto…
O tempo passou, senador. Melhor falarmos disso outra hora.