Parte da crise do Estado contemporâneo, especialmente o corporativismo, a corrupção e a ineficiência de suas instituições, constitui, na essência, uma crise da democracia moderna (representativa). Com efeito, se se entende democracia como identidade entre governantes e governados, entre sujeito e objeto do poder (Kelsen. Democracia, Ed. Martins Fontes, p. 35, S. Paulo, 2000), forçoso é reconhecer que a maioria dos sistemas democráticos atuais, notadamente o brasileiro, o é apenas aparentemente, por não existir um mínimo de identidade entre o povo e seus representantes: parlamentares, representantes do executivo, do judiciário etc., afinal ao povo não interessa, obviamente, um executivo fisiologista, um parlamento corrupto nem um judiciário subserviente ou inoperante.
Pode-se dizer, parafraseando Rousseau, que o povo brasileiro acredita ser livre, mas está enganado: é livre apenas durante as eleições dos membros do executivo e do parlamento, pois, eleitos os seus membros, ele volta à escravidão, é um nada (Do Contrato Social, Liv. III, cap. 15). É que a participação popular se limita, essencialmente, ao sufrágio a cada quatro anos – espaço de tempo demasiado longo – nos candidatos que se apresentam. Eleitos, porém, seus representantes, não se tem qualquer controle sobre seus atos, de modo que a democracia vem a se revelar uma autêntica fraude contra o povo, pois, alheio às grandes decisões, somente poderá expressar sua indignação – ou sua aprovação, eventualmente -, muito tarde, isto é, nas eleições seguintes. O mesmo se deve dizer do judiciário, uma vez que, embora seus membros ingressem no cargo por meio de concurso público de provas e títulos, não prestam contas regular e publicamente dos seus atos, como se servidores públicos não fossem; atuam, enfim, à semelhança dos parlamentares e representantes do executivo, sem controle popular sobre seus atos, circunstância, que, aliada a outras tantas, favorece o descompromisso com a comunidade (comarca) a que servem, a inércia e a corrupção. Ignora-se que os depositários do poder não são amos do povo, senão seus empregados; que pode nomeá-los e destituí-los quando quiser; que não lhes corresponde contratar e sim obedecer e que, encarregando-se das funções que o Estado lhes confiou, não fazem mais do que cumprir seu dever de cidadãos, sem terem direito a discutir as condições (Rousseau. Do Contrato Social, Livro III, cap. XVIII).
Talvez por isso, ou também por isso, tenha dito Nietzsche (Assim Falou Zaratustra) que o Estado é o mais frio de todos os monstros. Ele mente friamente; de sua boca sai esta mentira: “Eu, o Estado, sou o povo”.
Em síntese, o melhor remédio contra o abuso de poder sob qualquer forma é a participação direta ou indireta dos cidadãos na formação das leis e administração dos interesses públicos (BOBBIO. Liberalismo e Democracia, p. 43-4, Ed. Brasiliense, S. Paulo, 1997). Urge assim aumentar os espaços de participação do cidadão na administração dos interesses públicos, tornando-o co-gestor permanente dos interesses da comunidade, pois, como assinala Ferrajoli, a expansão da democracia deve acontecer não só com a multiplicação dos espaços políticos formalmente democratizados, mas também mediante a extensão dos vínculos estruturais e funcionais impostos a todos os poderes – democráticos, públicos e privados – para a tutela substancial dos direitos, de modo a assegurar-lhes uma maior efetividade (Derecho y razón, p. 865, Ed. Trotta, Madrid, 1995).
Por isso que mais importante do que proclamar que todo poder emana do povo que o exerce diretamente ou por meio de seus representantes (CF, art. 1°, parágrafo único), é insistir em que todo poder deve ser permanentemente avaliado, permanentemente criticado e permanentemente controlado.