Como é sabido, nos crimes permanentes, cuja consumação se protrai no tempo enquanto perdura a ofensa ao bem jurídico (v. g., extorsão mediante seqüestro), o tempo do crime se dilatará pelo período de permanência. Assim, se o autor, menor, durante a fase de execução do crime vier a atingir a maioridade, responderá segundo o Código Penal e não segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA (Lei n. 8.069/90).
Quanto aos crimes continuados, que em verdade são vários crimes (concurso material de crimes), mas tratados como se fosse crime único (tratamento próprio do concurso formal), atendendo a conveniência político-criminal (CP, art. 71), o Supremo Tribunal Federal, acompanhando a doutrina majoritária, editou a súmula 711, com o seguinte teor: “a lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência”, razão pela qual passaram a ter tratamento idêntico ao dos crimes permanentes. Assim, se o agente comete crime continuado durante meses seguidos, a continuação delitiva será regida, no caso de sucessão de normas, não pela lei que vigora à época do primeiro crime, mas do último, isto é, da cessação da continuidade, ainda que seja a mais gravosa.
Com efeito, e conforme Hungria, se os atos sucessivos já eram incriminados pela lei antiga, não há duas séries (uma anterior, outra posterior à nova lei), mas uma única (dada a unidade jurídica do crime continuado), que incidirá sob a nova lei, ainda que esta seja menos favorável que a antiga, pois o agente já estava advertido da maior severidade da sanção, caso persistisse na continuação. Se, entretanto, a incriminação sobreveio com a lei nova, segundo esta responderá o agente, a título de crime continuado, somente se os atos posteriores (subseqüentes à entrada em vigor da lei nova) apresentarem a homogeneidade característica da continuação, ficando abstraídos os atos anteriores1. Esse entendimento conduz às seguintes conseqüências: 1)se o agente praticou uma série de crimes na vigência de leis diversas, todas as infrações serão regidas pela última lei, ainda que seja a mais gravosa (admite-se a novatio legis in pejus); 2)se houver novatio legis incriminadora (a nova lei criminaliza conduta até então atípica), a lei nova regerá exclusivamente os delitos cometidos na sua vigência, já que até então não havia crime algum a punir; 3)se houver abolitio criminis ou novatio legis in mellius, a nova lei retroagirá para favorecer o réu.
Não estamos de acordo com semelhante orientação (item 1), relativamente à incidência da lei nova mais gravosa para os atos cometidos em continuidade delitiva, pois ela implica uma inversão lógica e cronológica do conceito legal de continuação, ofendendo o princípio da legalidade. É que, de acordo com o Código (art. 71), no delito continuado os crimes subseqüentes são havidos como continuação do primeiro, e não o contrário, de modo que o agente, ao invés de responder por vários crimes em concurso material, deve responder por um único delito, o mais grave, se diversos, com aumento de um sexto a dois terços. Portanto, os crimes subseqüentes só têm relevância jurídico-penal para efeito de individualização judicial da pena: escolha da pena mais grave (quando diversas as infrações) e fixação do respectivo aumento, pois o primeiro crime prevalece sobre todos os demais como se estes simplesmente não existissem, exceto para efeito de aplicação da pena.
Por conseguinte, se o autor só responde jurídico-penalmente pelo primeiro crime e não pelos subseqüentes, parece evidente que a lei posterior mais severa não poderá alcançá-lo, porque, se assim for, inverter-se-á o conceito legal de crime continuado lógica e cronologicamente: os últimos crimes serão os primeiros, considerando-se a continuação do final para o início, ou seja, os subseqüentes prevalecerão sobre o primeiro e não o contrário: o primeiro prevalecer sobre os subseqüentes, como prevê a lei.
A súmula, portanto, contraria claramente o princípio da legalidade em prejuízo do réu, conferindo à continuação tratamento jurídico-penal diverso mais gravoso, além de lógica e cronologicamente insustentável.
Não bastasse isso, a súmula de certo modo acaba por emprestar ao crime continuado tratamento legal mais severo do que aquele conferido ao concurso material de crimes. Sim, porque, no caso de concurso material, cada delito é regido pela lei vigente à época de sua consumação, não podendo ser alcançado por novatio legis in pejus, ao passo que agora, na continuação, crimes anteriores à nova lei seriam por ela atingidos.
Também por isso, a súmula é inconstitucional por violar o princípio da irretroatividade da lei, pois, por meio de um novo conceito de crime continuado, permite a incidência da nova lei sobre fatos ocorridos antes da sua vigência, como reconhece aliás Cezar Bitencourt2.
Quanto à prescrição, o problema é diverso, pois, no caso de concurso de crimes, continuação delitiva inclusive, cada crime prescreverá isoladamente, como se concurso não existisse, conforme dispõe o art. 119 do Código e Súmula 497 do STF.
1Comentários, cit., p. 128. No mesmo sentido, Frederico Marques e Damásio de Jesus, entre outros.
2 Tratado de direito penal. Parte geral. S.Paulo: Saraiva, 2007, 11ª edição, p. 173/174.