Todos os preconceitos que aqui me proponho a expor dependem de um único, a saber, que os homens pressupõem, em geral, que todos as coisas naturais agem, tal como eles próprios, em função de um fim, chegando até mesmo a dar como assentado que o próprio Deus dirige todas as coisas tendo em vista um fim preciso, pois dizem que Deus fez todas as coisas em função do homem, e fez o homem, por sua vez, para que este lhe prestasse culto;
A natureza não tem nenhum fim que tenha sido prefixado e todas as causas finais não passam de ficções humanas;
Cada homem engendrou, com base em sua própria inclinação, diferentes maneiras de prestar culto a Deus, para que Deus o considere mais que aos outros e governe toda a natureza em proveito de seu cego desejo e de sua insaciável cobiça;
Ao tentar demonstrar que a natureza nada faz em vão (isto é, não faz nada que não seja para o proveito humano), eles parecem ter demonstrado apenas que, tal como os homens, a natureza e os deuses também deliram;
Quem quer que busque as verdadeiras causas dos milagres e se esforce por compreender as coisas naturais como um sábio, em vez de se deslumbrar como um tolo, é tido, aqui e ali, por herege e ímpio, sendo como tal proclamado por aqueles que o vulgo adora como intérpretes da natureza e dos deuses. Pois eles sabem que, uma vez suprimida a ignorância, desaparece também essa estupefação, ou seja, o único meio que eles têm para argumentar e para manter sua autoridade;
E como as coisas que podem ser imaginadas facilmente são mais agradáveis do que as outras, os homens preferem a ordenação à confusão, como se a ordenação fosse algo que, independentemente da nossa imaginação, existisse na natureza;
Dizem (os homens) que Deus criou todas as coisas ordenadamente, atribuindo, assim, sem se darem conta, a imaginação a Deus, o que só faria sentido se eles quisessem dizer, talvez, que, em função da imaginação humana, Deus dispôs todas as coisas de maneira que elas pudessem ser mais facilmente imaginadas;
Cada um julga as coisas de acordo com a disposição de seu cérebro, ou melhor, toma as afecções de sua imaginação pelas próprias coisas;
Vemos, pois, que todas as noções que o vulgo costuma utilizar para explicar a natureza não passam de modos de imaginar e não indicam a natureza das coisas, mas apenas a constituição de sua própria imaginação;
Quanto ao bem e ao mal, também não designam nada de positivo a respeito das coisas, consideradas em si mesmas, e nada mais são do que modos de pensar ou de noções que formamos por compararmos as coisas entre si. Com efeito, uma única e mesma coisa pode ser boa e má ao mesmo tempo e ainda indiferente. Por exemplo, a música é boa para o melancólico; má para o aflito; nem boa, nem má, para o surdo.
Extraídas do livro Ética, de SPINOZA. Autêntica: Belo Horizonte, 2009.