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Carta a um juiz criminal

Republicação. Texto originalmente publicado em 2.000, mais ou menos.

Exmo. Sr. Dr. Juiz:

Acabo de tomar ciência, na condição de membro do Conselho Penitenciário da Bahia, do teor de uma sentença penal proferida por V. Exa., em que Maria Sueli de tal foi condenada à pena de 03 anos de reclusão, em regime fechado, pela prática do crime de tráfico ilícito de droga (Lei 6.368/76, art. 12), visto conduzir, dentro da cavidade vaginal, e durante visita que faria a seu companheiro na penitenciária Lemos Brito, 1,0 grama de cocaína e “certa quantidade de maconha”. Este o motivo da carta que ora faço chegar às mãos de V. Exa., para expressar minha preocupação.

É que, ao aplicar a lei tão implacavelmente, V. Exa., segundo me parece, não se louvou no melhor Direito e, mais grave, embora imbuído certamente dos melhores propósitos, acabou por consagrar uma decisão que não é justa, afinal, deixou de tomar em conta princípio elementar do Direito: o Princípio da Proporcionalidade. Sim, porque ninguém em sã consciência considerará que este “pobre-diabo”, dada a manifesta insignificância da ação, mereça, de fato, tão enérgico castigo. Aliás, como V. Exa. Poderá perceber, tal pena corresponde ao máximo da pena cominada ao homicídio culposo, a três vezes a pena mínima prevista para a lesão corporal grave (CP, art. 129§ 1º) e ao triplo da pena máxima correspondente à lesão corporal culposa (?), condutas incontestavelmente bem mais graves. Demais disso, já não teria sido suficiente a humilhação de ser submetida a tão constrangedora revista, de ser presa, processada, de ficar privada da companhia de seus filhos, companheiro e entes queridos?

Por outro lado, ao assinalar (na sentença condenatória) que o “motivo ensejador da prática abominável do delito imputado a acusada, é deveras nefasto à sociedade, o que impõe a sua segregação social, pelo princípio da recuperação e posterior reintegração da delinqüente ao meio social”, V. Exa. Não tem em conta as atuais condições das nossas penitenciárias, que, longe de ressocializar, dessocializam, longe de reeducar, corrompem e embrutecem. Aliás, como deve saber V. Exa., a idéia mesma da “ressocialização” é tida hoje como um “mito”, uma ideia, enfim, inteiramente desacreditada, afinal não se pode pretender educar alguém para liberdade em condições de não-liberdade (Muñoz Conde).

Semelhantemente, quando V. Exa. Afirma que se trata de uma “ação abominável e nefasta à sociedade”, dá a impressão de estar se referindo a um outro caso, que não aquele objeto do processo, pois, onde se vê tal coisa, dever-se-ia enxergar, data venia, algo de dramaticamente humano, penoso e absolutamente irrelevante do ponto de vista social, a recomendar não o castigo, mas o perdão.

Bem sei que V. Exa. Poderia redarguir, argumentando que se há injustiça, a injustiça reside na lei, não na sua sentença. Semelhante objeção, porém, não procederia, visto que se olvidariam duas questões fundamentais: primeiro, que, na aplicação da lei, é dever do juiz fazê-lo conforme o sistema de valores e princípios constitucionais, dentre os quais avulta o princípio da proporcionalidade, segundo o qual, o direito penal, em razão de seu caráter inevitavelmente traumático, cirúrgico e negativo (García-Pablos), não deve intervir senão em casos especialmente graves e socialmente danosos, de sorte que condutas insignificantes são, em princípio, penalmente atípicas. Nesse sentido, recente decisão do STJ: “A apreensão de quantidade ínfima de droga – 0,25g de cocaína – sem qualquer prova de tráfico, não tem repercussão penal, à vista da míngua de lesão ao bem jurídico tutelado, enquadrando-se o tema no campo da insignificância” – Habeas-corpus concedido (HC nº 8.020/RJ, 6ª Turma, relator Min. Fernando Gonçalves, j. 25.03.99, DJU 13.06.99, p. 227). Caberia lembrar, ainda, que a doutrina majoritária (Flávio Gomes, Damásio de Jesus etc.) e a jurisprudência dominante entendem que o tráfico ilícito de entorpecentes admite a substituição da pena de prisão por “penas alternativas”, desde que não seja superior a 04 anos, como neste caso. E V. Exa. Sequer faz referência à possibilidade de substituição…

Finalmente, a obrigação primeira do juiz não é com a lei (ordinária), mas com a Constituição, âlfa e ômega do ordenamento jurídico, sob pena subversão da hierarquia das normas. Por isso é que Ferrajoli (Derechos y Garantias) assinala, com toda razão, que a missão do juiz já não é, como no velho paradigma positivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja o seu significado, senão sujeição à lei enquanto válida, é dizer, coerente com a Constituição. E no modelo constitucional-garantista, a validez já não é um dogma associado à mera existência formal da lei, razão pela qual a interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a lei mesma, que corresponde ao juiz junto com a responsabilidade de eleger os únicos significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais estabelecidos pelas mesmas.

Esteja certo, porém, que não o censuro por coisa alguma, nem me cabe fazê-lo, mesmo porque, para tão severa decisão, que condenou esta pobre mulher (agora duplamente vitimada) a 03 anos de cárcere, concorreram, certamente, um promotor público implacável e um advogado pouco combativo e desinteressado. Desejo, no entanto, que V. Exa., refletindo, humildemente, sobre todas essas questões (visto ser a humildade a primeira das virtudes de um bom juiz), possa vir, em casos futuros, a julgar com mais equidade, com mais humanidade, ainda que tal não coincida com a letra fria da lei, pois, como dizia Chaplin, “não sois máquinas, homens é que sois”!

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