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Analogia, interpretação e princípio da legalidade

 

 

 

Marcus Mota Moreira Lopes

Assessor Jurídico

Procuradoria Regional da República da 1ª Região

Pós-graduando pela Fundação Escola do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT)

 

 

Observando o atual estágio da sociedade brasileira, que experimenta há anos o chamado “Estado Democrático de Direito”, parece que tanto a distinção entre interpretação e integração quanto a restrição do uso da analogia carecem de fundamentação. Com efeito, a ordem jurídica necessita de uma metodologia menos formalista para manter sua adequação às novas situações decorrentes da modernidade, que implicam uma mudança no modo de ver e sentir o meio social. Assim sendo, a pretensão punitiva estatal, materializada na legalidade, deve atualizar-se permanentemente. Diz Hassemer1 que o Direito Penal deve manter-se em consonância com essas transformações, de forma equilibrada. Assim, não cabe mais a aplicação literal e restritiva da legislação, que se apresenta quase sempre defasada com a realidade do mundo em que vivemos. Não se deve mais atribuir tamanha importância à norma jurídica2 em si, mas, sim, deve-se envidar esforços no sentido de aplicar as leis de modo mais razoável, por meio de métodos jurídicos mais dinâmicos. Daí a importância da analogia, que é parte integrante do procedimento interpretativo.

 

Essas circunstâncias, dentre outras, levaram Perelman3 a concluir que a lógica jurídica, para ser mais bem compreendida, não deve ser vista apenas como uma simples operação silogística entre fatos e normas, mas essencialmente como parte de um processo argumentativo. Assim, a decisão considerada mais justa no processo, em tese, seria aquela que apresentaria maior potencial de convencimento, de acordo com a opinião da comunidade jurídica e, se possível, da opinião pública. Ocorre que essa perspectiva costuma ser ignorada na prática jurídica, dando-se maior importância a discussões puramente teóricas; muitas vezes o caso concreto não é devidamente analisado, como se as normas ou as teses, pura e simplesmente, fossem determinantes para verificar, por exemplo, se é ou não caso de condenar o réu, se a pena é ou não proporcional etc. Não bastasse isso, há uma forte tendência de se aplicar reiteradamente a jurisprudência dos tribunais, a fim de julgar os casos concretos com maior celeridade, porém, com um exame de mérito cada vez mais superficial.

 

Considera-se, ainda, que o princípio da legalidade penal (art. 5º, XXXIX, da Constituição, consagrado pelo brocardo nullum crimen nulla pena sine lege4) importaria em proibição indireta do uso da analogia, sobretudo in malam partem (em prejuízo da parte), entendimento há muito criticado por Kaufmann5. Apesar disso, existem diversos dispositivos legais que a permitem expressamente6.

 

Sobre a aplicação das leis, especialmente no Direito Penal, doutrina e jurisprudência admitem haver distinção entre dois procedimentos: o de integração (analogia) e o de interpretação (extensiva, analógica etc.). Segundo Cézar Roberto Bitencourt7, interpretar é descobrir o real sentido da norma jurídica e integração é uma função da analogia, que visa a aplicar preceitos jurídicos semelhantes em hipóteses não previstas em nenhuma lei. A interpretação, por sua vez, subdivide-se em interpretação extensiva, que permite ao intérprete ampliar o alcance de uma norma8 preexistente, e interpretação analógica, que, segundo Nelson Hungria9, apesar de ser um procedimento integrativo (portanto aplicável a casos análogos), é permitido expressamente por um dispositivo legal, motivo pelo qual não há confundi-lo com a analogia propriamente dita.

 

Porém, antes de analisar o aspecto prático dessa distinção, é imprescindível verificar se há diferença entre interpretação e analogia no plano ontológico.

 

Nesse sentido, pensamos que a melhor análise dos conceitos de integração (analogia) e interpretação para superar essa concepção diferenciadora é a de Paulo Queiroz10:

 

Mas a analogia é essencial à realização do direito por um outro motivo: ao recorrerem, na fundamentação de suas decisões, a leis, precedentes judiciais ou doutrina, juízes e tribunais, a pretexto de fazerem subsunção, em realidade fazem analogia, pois as situações em comparação nunca são idênticas, mas mais ou menos semelhantes. Dito de outro modo: as leis, doutrina, ou precedentes e situações a que se referem nunca são absolutamente iguais ou absolutamente desiguais, e sim, mais ou menos análogos; e quando as semelhanças prevalecem sobre as dessemelhanças – e isso requer um juízo de valor sempre questionável -, damos tratamento unitário; caso contrário, damos solução jurídica diversa. (…)

 

 Vejamos também a tese de Artur Kaufmann11: “no Direito, a norma abstracta do dever alcança a sua entidade concreta: ‘o direito é a correspondência entre o dever e o ser’, sendo assim originariamente analógico. Imprescindível citar, ainda, Castanheira Neves12: “Dir-se-á assim que a interpretação e a analogia se distinguem tão só provisoriamente e no ponto de partida, como dois momentos metódicos do processo metodológico-jurídico, mas formam uma unidade na dinâmica e no resultado desse processo”.

 

Tal perspectiva procura demonstrar que a diferença entre integração (analogia) e interpretação já não faz sentido. Sim, porque a interpretação judicial se vale reiteradamente de diversos procedimentos analógicos, consistentes em comparações com tudo aquilo que foi visto e aprendido pelo magistrado. Em outras palavras, a fundamentação jurídica será resultado de analogia e interpretação, porque ambas são uma só e mesma coisa.

 

Essa equiparação também foi feita indiretamente por Chaïm Perelman13, ao dizer que a analogia, assim como a interpretação, é, tão somente, um argumento, que pode incidir no caso concreto ou não, dependendo da sua força argumentativa. Por isso, classificou a analogia como sendo um argumento a simili, indispensável e inerente ao raciocínio judiciário.

 

Pois bem, partindo do pressuposto de que não há diferença entre integração (analogia) e interpretação (extensiva, analógica, restritiva), em nível teórico, com maior razão deve-se afastá-la no plano pragmático, que mais interessa à atividade jurisdicional. Assim, devemos apresentar alguns exemplos onde o uso da analogia, inclusive in malam partem, é inevitável para que seja mantida a coerência do ordenamento jurídico, bastante desatualizado e complexo, evitando-se alguns resultados de interpretação que seriam insuportáveis, como a desigualdade na aplicação das normas penais ou mesmo a impunidade generalizada.

 

O primeiro exemplo diz respeito ao crime de dano qualificado14, quando o patrimônio é de propriedade da União, Estados, Municípios, concessionários de serviços públicos e sociedades de economia mista. Como se vê, desse rol de pessoas jurídicas, não constam o Distrito Federal, as fundações públicas etc. No entanto, os tribunais têm considerado a incidência dessa qualificadora para os danos causados também a esses outros entes excluídos, recorrendo forçosamente à interpretação/analogia in malam partem para adaptar/atualizar o tipo penal. Com efeito, seria inadmissível que o prejuízo ao patrimônio do Distrito Federal fosse considerado menos grave do que aquele causado aos demais entes federativos.

 

O segundo exemplo refere-se à aplicação da interpretação/analogia in malam partem no Direito Penal nos crimes contra o sistema financeiro. Com efeito, o art. 1º da lei nº 7.492/8615 diz que há crime quando a pessoa jurídica exerce atividades típicas de instituição financeira de forma ilegal (criminosa). Entretanto, os tribunais condenam, sem ressalvas, quando a atividade criminosa é exercida por entes despersonalizados, como, por exemplo, as sociedades de fato, que não são, tecnicamente, pessoas jurídicas. Logo, de acordo com os princípios da legalidade e da proibição da analogia in malam partem, tais fatos deveriam ser considerados atípicos. Todavia, tal entendimento deixaria o sistema financeiro completamente vulnerável, na medida em que alguém, intentando locupletar-se e ficar impune, poderia constituir tais entidades para operar de forma irregular.

 

Diante do exposto, podemos concluir que a distinção entre interpretação e analogia é ilusória, simbólica. Como se vê, o raciocínio analógico está sempre presente na interpretação/aplicação das normas jurídicas. E mais, a aplicação da interpretação/analogia mesmo quando em desfavor do réu, nem sempre implica violação aos princípios da legalidade, presunção de inocência etc., ao contrário, muitas vezes é essencial para que decisão judicial seja considerada justa e coerente.

 

Finalmente, é de se reconhecer a importância do princípio da legalidade no Direito Penal, porquanto inadmissível que o Poder Judiciário venha a criar livremente o Direito, sobretudo para criar crimes e cominar penas. Convém ressaltar, porém, que, de acordo com Rosa Maria Cardoso da Cunha16, a concepção positivista tradicional deve ser afastada ou pelo menos relativizada, em virtude do caráter retórico atribuído à legislação, consistente em uma falsa impressão de segurança, certeza e liberdade. Inclusive, é bastante comum imaginar que a criação de leis cada vez mais rígidas, sobretudo normas penais, bastam para resolver os problemas do meio social. Entretanto, tal ponto de vista pressupõe, equivocadamente, que as leis são sempre coerentes e que é possível afastar as interpretações que não sejam exatamente aquelas previstas pelo legislador.

 

Entretanto, a interpretação deve ser dinâmica, mantendo coerência e proporção com o caso concreto e com o ordenamento jurídico (abstratamente), já que a lei não é. Daí a relevância dos princípios da proporcionalidade e da igualdade, que, segundo Kaufmann17, nada mais são do que manifestações da analogia, a qual ainda, de acordo com parte da doutrina mais conservadora, deve permanecer relegada a uma suposta atividade específica de integração.

 

Em conclusão: a) a analogia ou raciocínio analógico, sendo uma forma de interpretação, é elemento do raciocínio jurídico; b) a distinção entre integração (analogia) e interpretação atualmente só se justifica por motivos retóricos; c) o princípio da legalidade e a analogia, ainda que in malam partem, guardam estreita relação, e por isso devem ser controlados segundo os princípios da igualdade e da proporcionalidade, por meio da argumentação; d) a lei não pode proibir a analogia pela mesma razão que não pode proibir a interpretação: ambas são essenciais à realização do Direito.

 

 

 

 

1 HASSEMER, Winfried. Direito Penal. Fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2008, p. 50.

 2 CASTANHEIRA NEVES, António. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1993, p. 22. Segundo ele, a legislação não tem função estritamente jurídica, mas sim pragmática, pois sua finalidade é de traçar uma programação política e social e não de justificar pura e simplesmente o caráter cogente/sancionatório do Direito. Nessa perspectiva funcional, as normas jurídicas têm caráter instrumental.

 3 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica.: Nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 238-9 e 243.

 4 Art. 5º, XXXIX : Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

 5 KAUFMANN, Arthur. Analogia y naturaleza de la cosa. Hacia una teoria de la comprension juridica. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976, p. 39-40.

 6 Por exemplo, o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”; Art. 3º do Código de Processo Penal – “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.”; Art. 108 do Código Tributário Nacional – “Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I – a analogia; II – os princípios gerais de direito tributário; III – os princípios gerais de direito público; IV – a eqüidade.”, etc.

 7 BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. Vol. 1. 13ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, p.145 e 155-6.

 8 Apenas para fins didáticos, trataremos os conceitos de lei, norma e preceito jurídico como sinônimos.

 9 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. 1, Tomo I. 4ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 87-9

 10 QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. Parte Geral. 7ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 88.

 11KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 215.

 12 CASTANHEIRA NEVES, António. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1993, p. 270.

 13 Ibidem, p. 75.

 14 Art. 163 – Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único – Se o crime é cometido: (…) III – contra o patrimônio da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista; (…) Pena – detenção, de seis meses a três anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

 15 Art. 1º Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros (Vetado) de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários. Parágrafo único. Equipara-se à instituição financeira: I – a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança, ou recursos de terceiros (…)

 16 CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. O caráter retórico do princípio da legalidade. Porto Alegre: Síntese, 1979, p. 110.

 17 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 231.

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