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A nova prisão preventiva – Lei n° 13.964/2019

1)Introdução

Coerente com o sistema acusatório que adota expressamente (art. 3°-A), a lei dá nova redação aos arts. 282, §2°, e 311 do CPP, abolindo o “de ofício” que constava da redação original desses artigos, vedando assim a decretação de medidas cautelares, especialmente a prisão preventiva, sem provocação expressa do Ministério Público ou do querelante ou sem representação da autoridade policial durante o inquérito policial.

O juiz já não poderá, portanto, decretar medida cautelar pessoal ou real de ofício, tampouco poderá converter automaticamente prisão em flagrante em prisão temporária ou preventiva, já que equivaleria a decretá-las de ofício.

A proibição legal (de prisão cautelar de ofício etc.) vale também para os casos de revogação de medida cautelar diversa, com a consequente decretação de prisão preventiva, de substituição de medida cautelar por outra mais grave e também para o caso de cumulação de cautelares, em virtude de descumprimento das condições impostas, pois também aqui se exige requerimento das partes (art. 282, §4).

Embora o juiz não possa de ofício decretar prisões ou medidas cautelares, nada o impede de revogar a prisão cautelar (prisão preventiva etc.) ou de substitui-la por restrições mais brandas, independentemente de pedido dos interessados.

Em suma: o juiz só não pode agravar a medida cautelar imposta ao réu ou ao investigado de ofício, mas pode atenuá-la mesmo de ofício. É que o princípio da legalidade penal constitui essencialmente uma garantia individual destinada a evitar abusos estatais no exercício do poder punitivo. Assim, embora o juiz não possa decretar, por exemplo, uma prisão preventiva de ofício, pode perfeitamente revogá-la sem requerimento algum (CPP, art. 316).

Mais: como regra, o juiz ou tribunal só poderá decretar medidas cautelares com observância do contraditório prévio, com prazo de 5 dias para manifestação da parte contrária. Nos casos de urgência ou de risco de ineficácia da medida, deferirá o pedido de decretação da medida cautelar, realizando o contraditório a seguir (contraditório diferido).

 

 

2)Reexame obrigatório da prisão preventiva a cada 90 dias

Embora a lei não tenha fixado o prazo máximo de duração da prisão preventiva, tal como ocorre com a prisão temporária, impôs o dever de reanálise de seus fundamentos a cada 90 dias (CPP, art. 316, parágrafo único). A rigor, portanto, a prisão preventiva vale apenas por esse prazo. Com efeito, se, decorrido o prazo legal, não houver pronunciamento judicial algum, a prisão tornar-se-á ilegal, devendo ser relaxada. Esse reexame é obrigatório e independe de provocação das partes.

Quando o juiz ou tribunal entender que a prisão preventiva deve ser mantida, proferirá decisão, motivando a manutenção da prisão. Trata-se de uma decisão que reaprecia a anterior, acolhendo ou rejeitando seus fundamentos, acrescentando novos argumentos quando houver.

Evidentemente, não valerá como tal a simples ratificação da decisão ou do acórdão já proferido, sem mais. Ou uma mera decisão afirmando que persistem os fundamentos da prisão preventiva porque nada de novo lhe sobreveio, como é comum ocorrer. É que a lei exige, a cada noventa dias, uma nova decisão, fundamentada sempre, não uma simples formalidade ou mera reiteração dos seus termos. Se assim fosse, a inovação seria de todo inútil.

Como é óbvio, nada impede que o juiz faça esse reexame antes do prazo de 90 dias, podendo, inclusive, revogar a preventiva a qualquer tempo.

Com a entrada em vigor da lei, as prisões preventivas decretadas há mais de 90 dias deverão ser reexaminadas imediatamente ou num prazo razoável. As demais deverão ser revistas tão logo completem aquele prazo legal.

De acordo com o art. 3º-C, §2°, o juiz da instrução e julgamento deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias. Como a lei não ressalva a prisão preventiva, segue-se que também ela deverá ser revista no prazo de 10 dias pelo juiz da instrução, ainda que não tenha decorrido o prazo legal de 90 dias da decretação da preventiva ou do seu reexame.

A lei não exige provocação do MP nem contraditório para a revisão periódica da prisão preventiva, que deve ser realizada de ofício, com ou sem requerimento das partes. Temos, porém, que o mais recomendável é que o MP e a defesa falem sobre o tema, de modo a conformar a decisão ao sistema acusatório, ao contraditório e à ampla defesa, especialmente nos casos de ratificação da prisão preventiva.

Não há dúvida de que o dispositivo é aplicável aos juízes e tribunais, nas ações penais originárias, os quais devem reapreciar, a cada noventa dias, os fundamentos da preventiva.

No caso dos juízes, tal análise competirá, durante as investigações, ao juiz das garantias e, uma vez instaurado processo, ao juiz da instrução e julgamento. Nas ações penais originárias, caberá ao desembargador ou ministro relator proceder ao reexame da preventiva.

A lei não resolve, porém, duas questões: a)se, proferida a sentença ou acórdão condenatório (na ação penal originária), se ainda persistirá esse dever legal de revisão da prisão preventiva; b)em caso afirmativo, se esse reexame deve ser feito pelo próprio juiz que decretou a prisão ou se pelo tribunal ad quem.

Segundo uma interpretação literal do artigo, uma vez proferida a sentença penal condenatória, cessaria a necessidade de reexame da prisão preventiva, seja porque o caput do art. 316 fala de “juiz”, “no correr da investigação ou do processo”, seja porque o parágrafo único dispõe que deverá “o órgão emissor da decisão”. Mas mesmo uma interpretação literal permite ler-se “juiz” como “desembargador” ou “ministro”, na ação penal originária, já que atuam aí como se fossem juízes de primeiro grau. Além disso, o tribunal é aqui o órgão emissor da preventiva.

No entanto, uma interpretação mais conforme as garantias constitucionais considerará que o dever de reexame da preventiva deve ser feito continuamente enquanto não transitar em julgado a sentença, seja pelos juízes, ainda que por delegação do tribunal, seja pelos próprios tribunais, visto que: a)a prisão preventiva, enquanto não houver trânsito em julgado da condenação, tem caráter provisório, devendo, por isso, ser revista permanentemente; b)a lei é clara em afirmar que a falta de reexame tornará a prisão ilegal; c)a lei não previu nenhum tipo de exceção no particular; d)não faria sentido exigir-se tal providência apenas em primeira instância, isentando os tribunais desse dever, em manifesto prejuízo do condenado.

Em conclusão, temos que: a)a revisão dos fundamentos da prisão preventiva é imperiosa enquanto não passar em julgado a condenação; b)enquanto não for proferida a sentença, caberá ao juiz (ou relator nas ações penais originárias) fazer o reexame obrigatório; c)interposta apelação, competirá ao tribunal reapreciar a prisão; d)o tribunal poderá delegar essa função ao juiz que proferiu a sentença condenatória.

3)Fundamentação da decisão

O art. 315, §2°, do CPP, repete ipsis litteris o art. 489, parágrafo único, do CPC, relativamente aos critérios legais para a definição de decisão fundamentada/desfundamentada.

O art. 315 exige que a decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre fundamentada. A exigência é aplicável a toda e qualquer medida cautelar (§1°).

A nova redação do art. 282, §6°, explicita a necessidade de justificar o porquê da não substituição da prisão preventiva por medida cautelar diversa. Afinal, a cautelaridade é um requisito essencial de toda e qualquer medida cautelar, que deve ser aplicada proporcionalmente.

A prisão preventiva é a ultima ratio do sistema cautelar, por ser a mais grave. A cautelaridade é, pois, uma condição necessária, mas não suficiente para a imposição da prisão preventiva, que exige mais: a insuficiência das demais medidas cautelares, aplicáveis cumulativamente. Tem, assim, caráter residual ou subsidiário relativamente às outras cautelares pessoais e reais.

Exige-se, ainda, fundamentação individualizada para o caso de coautoria e participação. Uma decisão bem fundamentada para alguns corréus pode carecer de motivação para outros. À semelhança do que se passa com a individualização da pena, cada imputação penal e cada imputado demandam uma justificação autônoma.

A lei dá nova redação ao art. 312 do CPP, acrescentando-lhe o “perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”, enfatizando a cautelaridade da prisão preventiva, reafirmada nos novos art. 283 e 313 do CPP, cujo §2º diz de modo enfático: Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia.

Afinal, a gravidade do crime é uma condição necessária, mas não suficiente para a decretação e manutenção de medidas cautelar, especialmente a prisão preventiva, a mais grave medida cautelar.

Exige-se mais: que a prisão preventiva seja motivada com base em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos (art. 312, §2°, e 315, §1°). A inovação é aplicável às medidas cautelares em geral, não apenas à prisão preventiva.

Os fatos novos ou contemporâneos têm a ver, não propriamente com os crimes imputados na denúncia ou queixa, que podem ser antigos, mas com os fundamentos da medida cautelar (garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal etc.). Afinal, um crime não recente pode dar lugar a uma motivação atual para a prisão preventiva, como, por exemplo, ameaça à testemunha, destruição de prova ou mesmo um novo delito.

4)Prisão preventiva obrigatória nos crimes dolosos contra a vida?

A lei prevê a prisão preventiva obrigatória, isto é, sem cautelaridade (CPP, art. 492) para os crimes dolosos contra a vida, de competência do tribunal do júri, conforme a gravidade da pena aplicada. A reforma ressuscitou a velha e má prisão preventiva obrigatória prevista na redação original do Código de 1941.

Com efeito, ao ser proferida sentença condenatória pelo júri, o juiz-presidente determinará (art. 492, I, e), no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos.

Nos demais casos (condenação inferior a 15 anos), a prisão é facultativa, isto é, requer cautelaridade.

A lei prevê ainda hipóteses em que o presidente poderá deixar de autorizar a execução provisória das penas (§3°). Afirma também que a apelação interposta contra decisão condenatória do tribunal do júri a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão não terá efeito suspensivo (§4°). Apesar disso, admite exceções (§5°), conferindo efeito suspensivo à apelação.

Semelhante previsão (prisão preventiva obrigatória), além de incoerente e ilógica, é claramente inconstitucional, visto que: 1)ofende o princípio da presunção de inocência, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (CF, art. 5°, LVII), razão pela qual toda medida cautelar há de exigir cautelaridade, especialmente a prisão preventiva; 2)viola o princípio da isonomia, já que condenações por crimes análogos e mais graves (v.g., condenação a 30 anos de reclusão por latrocínio) não admitem tal exceção, razão pela qual a prisão preventiva exige sempre cautelaridade; 3)estabelece critérios facilmente manipuláveis e incompatíveis com o princípio da legalidade penal, notadamente a pena aplicada pelo juiz-presidente; 4)o só fato de o réu sofrer uma condenação mais ou menos grave não o faz mais ou menos culpado, já que a culpabilidade tem a ver com a prova produzida nos autos e com os critérios de valoração da prova, não com o quanto de pena aplicado; 5)a gravidade do crime é sempre uma condição necessária, mas nunca uma condição suficiente para a decretação e manutenção de prisão preventiva. Como é óbvio, a exceção está em manifesta contradição com o novo art. 313, §2º, que diz: Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena.

Já vimos também que tal exceção não é legitimável com base na soberania dos veredictos.

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