De acordo com a Súmula 241 do STJ, “A reincidência penal não pode ser considerada como circunstância agravante e, simultaneamente, como circunstância judicial”.
Como se sabe, a reincidência é uma circunstância agravante (CP, art. 61, I, e 63), que deve ser valorada na segunda fase da dosimetria da pena. É a máxima expressão dos antecedentes criminais, que são, por sua vez, uma circunstância judicial (CP, art. 59).
No caso de reincidência, a sentença deverá valorá-la unicamente na segunda fase, não podendo ser também considerada na primeira fase, pois tal importaria em bis in idem, vedado pela Súmula 241 do STJ.
Apesar disso, a jurisprudência do STF e STJ admite, no caso de réu multirreincidente, isto é, que tem contra si duas ou mais condenações definitivas, que uma sentença (ou mais) seja considerada na primeira fase e a outra (ou outras) na segunda fase, negativando-se os antecedentes e a reincidência, sucessivamente. Nesse caso, segundo a jurisprudência não haveria bis in idem porque foram consideradas condenações diversas na fixação da pena-base e provisória.
O equívoco é manifesto.
Com efeito, haveria bis in idem se, com base em certidões diversas, fossem também negativadas outras circunstâncias judiciais, como a culpabilidade, a conduta social ou a personalidade do réu? Exemplo: havendo quatro certidões de condenações definitivas, poderia a sentença negativar, na primeira e segunda fases, a culpabilidade, a conduta social, os antecedentes e a reincidência?
Evidentemente que nessa hipótese a sentença incidiria em bis in idem, já que a reincidência, embora com nome diverso (culpabilidade etc.), agravaria a pena múltiplas vezes. Ora, se é assim quanto às circunstâncias judiciais, por que não haveria dupla punição indevida quando certidões distintas servem para exasperar a pena-base (antecedentes) e a pena provisória?
Em suma, também no caso de réu multirreincidente, a reincidência deveria ser considerada unicamente como circunstância agravante, nos termos do art. 61, I, do CP, ainda que com percentuais distintos de agravamento, isto é, mais de 1/6, por exemplo.
A atual jurisprudência dos tribunais superiores legitima, portanto, manifesto bis in idem ao admitir que mais de uma condenação definitiva possa ser considerada, simultaneamente, na primeira e segunda fases da dosimetria da pena.
Além disso, temos que a reincidência não poderá gerar aumento de pena igual ou superior à pena aplicada ou cumprida anteriormente. Assim, por exemplo, o réu condenado a seis meses de detenção por lesão corporal leve (CP, art. 129, caput), não poderia sofrer, na nova condenação por homicídio qualificado (CP, art. 121, §2°), acréscimo de pena igual ou superior a seis meses, em virtude da reincidência. Assim, se aplicada a pena-base do homicídio no mínimo legal de doze anos de reclusão, a reincidência não poderia implicar aumento de pena de dois anos de reclusão ou mais (fração de 1/6), sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade. O acréscimo de pena deve, pois, ser proporcional à condenação anterior geradora da reincidência.
Existem ainda diversas hipóteses legais que podem configurar bis in idem, como as seguintes: 1)na determinação do regime inicial de cumprimento da pena (CP, art. 33, §§ 2° e 3°); 2)na substituição da pena privativa da liberdade por restritiva de direito (CP, art. 44, II, III); 3)na fixação da pena do crime continuado (CP, art. 71, parágrafo único); 4)na suspensão condicional da pena (CP, art. 77, II e 78, §2°); 5)no livramento condicional (CP, art. 83, I); 6)na progressão e regressão de regime (LEP, art. 112); 7)no indulto e comutação de pena; 8)na remição; 9)na aplicação de falta grave; 10)na reabilitação (CP, art. 95); 11)na prescrição (CP, art. 117, VI); 12)no ANPP (CPP, art. 28-A); 13)na suspensão condicional do processo e transação penal (arts. 89 e 76, §2°, I, da Lei n° 9.099/95).
É que em todos esses casos as circunstâncias judiciais ou a reincidência, além de valoradas na fixação da pena-base e provisória, serão também consideradas na admissão ou revogação desses institutos, duplamente.
1)Determinação do regime inicial de cumprimento de pena
De acordo com o art. 33 do CP:
A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto. A de detenção, em regime semiaberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado.
§ 1º – Considera-se:
a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média;
b) regime semiaberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar;
c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado.
§ 2º – As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso:
a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado;
b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semiaberto;
c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.
§ 3º – A determinação do regime inicial de cumprimento da pena far-se-á com observância dos critérios previstos no art. 59 deste Código.
Inicialmente, é de ver que, quando a condenação for superior a oito anos, é irrelevante se o apenado é primário ou reincidente, já que será necessariamente submetido ao regime fechado (CP, art. 33, §2°, a), a demonstrar que a lei poderia perfeitamente fixar critérios de determinação do regime semiaberto ou aberto sem recorrer à reincidência. A reincidência é, pois, um dado acidental, não essencial.
Se a reincidência será valorada na primeira e/ou segunda fases da dosimetria da pena, seja como circunstância judicial (antecedentes), seja como circunstância legal (reincidência), parece evidente que a sentença, ao se valer novamente dela para justificar o regime mais gravoso de execução (semiaberto ou fechado), incidirá em bis in idem, uma vez que a considerará dupla ou triplamente na dosimetria da pena.
2)Substituição da prisão por pena restritiva de direito
Segundo o art. 44 do CP:
Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:
I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
II – o réu não for reincidente em crime doloso;
III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.
Também aqui, a sentença considerará duplamente as circunstâncias judiciais e a reincidência, já que servirão tanto para fixar a pena-base e provisória quanto para admitir ou não a substituição da pena de prisão por pena restritiva de direito.
Apesar disso, a aplicação da reincidência foi atenuada, pois somente a reincidência em crime doloso, não a reincidência em crime culposo ou em contravenção, impedirá a substituição. E ainda que haja reincidência em crime doloso, a substituição poderá ser admitida quando for socialmente recomendável e o condenado não for reincidente específico, isto é, tenha cometido o mesmo delito.
De fato, segundo o art. 44, §3°, do CP: “Se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime”.
3) Crime continuado
De acordo com o art. 71, parágrafo único, do CP:
Crime continuado
Art. 71 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
Parágrafo único – Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.
Como se vê da transcrição, o CP recorre duplamente às circunstâncias judiciais (aqui e na dosagem da pena-base) para a aplicação da pena na continuidade delitiva qualificada, embora pudesse, por exemplo, graduar a pena conforme o número de infrações praticadas, como fazem o STF e o STJ, inclusive.
Também aqui, claramente há bis in idem.
O mesmo deve ser dito, mutatis mutandis, das demais hipóteses legais mencionadas, como a progressão e regressão de regime, o livramento condicional, a reabilitação etc., nos quais a lei recorre, por mais de uma vez, à reincidência para admitir ou negar o benefício.
Se fosse eventualmente abolida ou restringida a reincidência, nem por isso o cometimento de novo crime deixaria de ter importância para o direito, o processo e a execução penal, já que é legítimo considerar a reiteração delitiva como justificativa para uma nova investigação/processo, condenação, decretação de prisões cautelares e imposição de sanções penais, como a regressão de regime, a revogação do livramento condicional etc. O legislador não poderia simplesmente ignorar tal circunstância, como se nada tivesse acontecido.