O art. 217-A, caput, do Código Penal define como estupro de vulnerável “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze)anos”.
Discute-se, então, se essa condição legal de vulnerabilidade é absoluta ou relativa, isto é, se admite ou não prova em sentido contrário, apesar da idade da vítima etc.1
Temos que as hipóteses legais de vulnerabilidade têm, necessariamente, caráter relativo, admitindo, por isso, prova em sentido contrário.
Primeiro, porque a história é um elemento essencial do direito, por isso que as presunções legais (a condição de vulnerável encerra um presunção legal implícita de impossibilidade de autodefesa) têm, em princípio, valor relativo. Segundo, porque o legislador não pode suprimir a liberdade de alguém a pretexto de protegê-la. Terceiro, porque não existem direitos absolutos, uma vez que a absolutização de um direito implicaria, inevitavelmente, a negação mesma do direito (v.g., absolutizar o direito à liberdade de expressão importaria na anulação do direito à honra e vice-versa).
Justamente por isso é que as presunções legais hão de ter caráter relativo, porque, do contrário, os mais inofensivos atos libidinosos passados entre crianças ou entre adolescentes constituiriam ato infracional e os sujeitariam à medida socioeducativa, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente. O mesmo ocorreria com portadores de transtorno mental, que ficariam privados do direito fundamental a uma vida sexual regular e, por consequência, do direito de procriar, casar etc.
Que se trata de presunção relativa, a admitir prova em sentido contrário, ao menos no que toca aos portadores de transtorno mental e incapazes de oferecer resistência, é o que se conclui facilmente da leitura da própria lei, ao exigir, além da condição de enfermidade ou deficiência mental, que o ofendido não tenha o “necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. (CP, art. 217-A, §1°).
Note-se ainda que por vezes tais relações (namoros etc.) ocorrem com o conhecimento e anuência dos próprios pais ou responsáveis pelos indivíduos tidos por vulneráveis.
E mais, os autores que sustentam o caráter absoluto da vulnerabilidade da vítima menor de 14 anos não raro admitem o caráter relativo dos demais casos, contraditoriamente, uma vez têm o mesmo tratamento legal, razão pela qual devem ser orientados segundo os mesmos princípios e terem uma mesma interpretação sistemática.
Além do mais, a proteção penal não pode ter lugar quando for perfeitamente possível uma autoproteção por parte do próprio indivíduo, sob pena de violação ao princípio de lesividade.
Finalmente, a iniciação sexual na adolescência não é necessariamente nociva, motivo pelo qual a presumida nocividade constitui, em verdade, um preconceito moral.2
Assim, ao menos em relação a adolescentes (maiores de doze anos), é razoável admitir-se prova em sentido contrário à previsão legal de vulnerabilidade, de modo a afastar a imputação de crime sempre que se provar que, em razão de maturidade (precoce), o indivíduo de fato não sofreu absolutamente constrangimento ilegal algum, inclusive porque lhe era perfeitamente possível resistir, sem mais, ao ato.3
1 No sentido de que se trata de presunção relativa, Francisco Muñoz Conde, cit., p. 220; Cezar Roberto Bitencourt. Direito Penal. Parte Especial, v. 4. São Paulo: Saraiva, 2011; e Alberto Silva Franco. Código Penal e sua intepretação. São Paulo: RT, 2007. No sentido contrário, Rogério Greco. Direito Penal. Parte Especial, v. 3. Niterói: Impetus, 2011, entre outros.
2De acordo com José Angelo Gaiarsa (Poder e Prazer. São Paulo: Editora Ágora, 1986, p. 21/27). , “se quisermos um mundo menos violento (e mais feliz) temos que rediscutir – pensando na coletividade e no futuro da espécie – o erotismo infantil e a permissão sexual para adolescentes. Sinteticamente: quem está muito interesssado em sexo e prazer não está muito interessado em violência”. Segundo James W Prescott, citado por Gaiarsa (idem), “entre os seres humanos, uma personalidade orientada para o prazer raramente exibe condutas violentas ou agressivas, e uma personalidade violenta tem pouca capacidade para tolerar, experimentar ou gozar atividades sensualmente prazenteiras. A relação recíproca entre prazer e violência é altamente signficativa, porque certas experiências sensoriais durente os períodos iniciais do desenvolvimento criarão uma predisposição neuropsicológica para comportamentos posteriores, estejam eles orientados para a violência ou orientados para o prazer.”.
3Como assinala Tomás S. Vives Antón e outros, é um exagero presumir que toda relação sexual entre um adulto e um menor é prejudicial para este, visto que um menor de 13 anos pode conhecer perfeitamente o significado de uma ação sexual e suas possíveis consequências. Derecho penal, parte especial, cit., p.225.