Nossos magistrados conheceram bem esse mistério. Suas togas vermelhas, seus arminhos, nos quais se cingem como gatos forrados, os palácios onde julgam, as flores-de-lis, todo esse aparato augusto era muito necessário; e se os médicos não vestissem sotainas e borzeguins, e os doutores não usassem barretes quadrados e túnicas muito amplas de quatro partes, jamais teriam iludido o mundo, que é incapaz de resistir a esse vitrine tão autêntica. Se tivessem a verdadeira justiça e os médicos a verdadeira arte de curar, não precisariam de barretes quadrados; a majestade de tais ciências seria suficientemente venerável por si própria. Mas, tendo apenas ciências imaginárias, precisam recorrer a esses vãos instrumentos que impressionam a imaginação com a qual se ocupam; e assim, de fato, conquistam respeito.
Três graus de latitude modificam toda a jurisprudência, um mediano decide acerca da verdade; com poucos anos de domínio, as leis fundamentais mudam; o direito tem suas épocas, a entrada de Saturno em Leão nos assinala a origem de determinado crime. Curiosa justiça que um rio delimita! Verdade aquém dos Pirineus, erro além.
O latrocínio, o incesto, o assassinato das crianças e dos pais, tudo encontrou seu lugar entre as ações virtuosas. Pode haver algo de mais absurdo que um homem ter direito de matar-me porque mora do outro lado do rio, e seu príncipe é contendor com o meu, embora eu não tenha nada contra ele?
O costume faz toda autoridade, pela mera razão de ser aceito; esse é o fundamento místico de sua autoridade.
Não convém que o homem sinta a verdade da usurpação: ela foi introduzida outrora sem razão, e tornou-se razoável; cumpre fazê-la ver como autêntica, eterna, e ocultar seu começo, se não quisermos que logo tenha fim.
Daí procede o direito da espada, pois a espada constitui um verdadeiro direito.
A força é a rainha do mundo, não a opinião.
Montaigne não tem razão: o costume só deve ser seguido por ser costume e não por ser razoável ou justo, mas o povo o segue pela única razão de acreditá-lo justo.
É justo que o que é justo seja seguido, é necessário que o que é mais forte seja seguido. A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem a força será contestada, porque há sempre homens maus; a força sem a justiça será acusada. É preciso, pois, reunir a justiça e a força, fazendo com que o que é justo seja forte, ou o que é forte seja justo. A justiça está sujeita à disputa, a força é muito reconhecível e sem disputa. Assim, não se pôde dar força à justiça, porque a força contestou a justiça, dizendo que era justa e que ela, a força, é que era justa. Deste modo, não se podendo fazer que o que é justo fosse forte, fez-se que o que é forte fosse justo.
Extraídas de Pensamentos sobre política. São Paulo: Martins Fontes, 1994.