Quando quis, distingui pessoas e não-pessoas, distingui índios e negros e fiz ambos escravos; fiz da escravidão uma instituição; autorizei o genocídio, mas quase ninguém o percebeu.
Ainda os quero diferentes, mas os mudei de modo sutil: revi a igualdade e agora não chamo de racismo ao racismo; dou-lhes outros nomes e funções.
Quando quero, faço criminosos heróis, homens deuses; faço vítimas amarem seus algozes, falando sua língua, adotando seus costumes, amando seus deuses; transformo lendas em verdades e faço sagrada a mentira.
Eu estou em todos os lugares e em parte alguma; estou no gesto mais simples, como no amante que diz para a sua amada: “eu te amo e não saberia viver sem você”; e, não obstante, é capaz de matá-la, se suspeitar de traição, ou de perdoá-la mil vezes.
Em tudo estou e não me manifesto explicitamente; prefiro as metáforas: amor, ódio, paixão, direito, justiça, beleza e deus são minhas metáforas preferidas.
Não sou nada disso e sou tudo isso; estou em todos os lugares e em lugar algum.
Estou na semente que brota, na chuva que cai, no sol que ilumina.
Estou na planta que cresce, nas flores que desabrocham e na abelha que tira a seiva.
Sou a palavra que salva ou mata, que elogia ou ofende.
Estou no herói e no santo, no criminoso e sua vítima.
Estou no espermatozóide e no óvulo, no embrião e no feto e em cada célula.
Sou o parto, o sangue, a urina e fezes; sou as glândulas, veias e artérias, unhas, dente e cárie.
Estou no corpo em decomposição e nos fungos e bactérias e vermes que festejam cada evento.
E tudo isso me parece indiferente, como o bem e o mal, o certo e o errado, o odor e o cheiro, a vida e a morte: tudo me é um estado continuum de avanços e retrocessos, adaptações, evoluir e regredir.
Sou o ético e o estético, justo e o injusto, o pio e o ímpio, o sagrado e o profano. E nunca sou o mesmo: sou e não sou; sou um fluxo permanente.