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Sistema acusatório e “emendatio libelli”

Parte da doutrina vem defendendo nos últimos anos a inconstitucionalidade da emenda e mudança do libelo1 (CPP, arts. 383 e 3842), argumentando, fundamentalmente, que o juiz, ao condenar o réu por crime diverso do capitulado na denúncia, estaria fazendo as vezes de acusador, violando o sistema acusatório e, pois, agindo sem um mínimo de isenção. Isso significaria em termos práticos o seguinte: ou bem o juiz absolve o réu ou bem o condena como o órgão da acusação quer e propõe3 .

Efetivamente, o Código de Processo, ao admitir, inclusive, que o juiz possa de ofício, e indiretamente, “aditar” a denúncia (art. 384, caput), suprindo omissão ministerial, ofende o sistema acusatório, pois o co-responsabiliza pela acusação, transferindo-lhe parte do ônus de acusar. Compete ao Ministério Público, por isso, promover a tempo o aditamento por iniciativa própria; se não o fizer, o juiz só poderá condenar nos termos da denúncia ou absolver, mas não poderá se substituir àquele órgão, razão pela qual é manifesta a incompatibilidade da mutatio libelli com o sistema acusatório.

O mesmo não ocorre, porém, quanto à emendatio libelli (CPP, art. 383), por cujo meio o juiz corrige ou simplesmente diverge da classificação jurídico-penal dada aos fatos articulados na denúncia.

Desde logo, porque, a pretexto de preservar o sistema acusatório, se está em realidade negando o direito à divergência: o juiz, se condenar, só poderá fazê-lo nos exatos termos da proposição ministerial (denúncia e/ou alegações finais), por mais equivocada que seja a definição jurídico-penal proposta. Com efeito, de acordo com esse entendimento, se o Ministério Público descrever, precisamente, um crime de roubo e o capitular, por erro, má-fé ou convicção pessoal, como furto, o juiz só poderá condená-lo por furto, ainda que o caso seja a toda evidência de roubo. Também o contrário está proibido: se narrar um furto e o capitular como roubo, não se poderia condenar senão por roubo; se o juiz entender que o caso é de furto, embora capitulado como roubo, então, deverá absolver (!). Não há meio termo. Ora, isso não é outra coisa senão a violação pura e simples dos princípios da legalidade e proporcionalidade: condenar por mais quando cabe o menos; condenar por menos quando cabe o mais; e absolver por puro formalismo quem se sabe culpado. Converte-se assim o processo num fim em si mesmo, fazendo prevalecer a forma sobre a matéria, perdendo-se de vista o seu fim último: possibilitar uma decisão minimamente justa.

Também por isso, a tese é antidemocrática, visto que, ao fomentar uma espécie de ditadura ministerial, dificulta ou impossibilita a existência de controles dos eventuais erros e abusos, negando inclusive a divergência indispensável às instituições que se pretendem democráticas. Afinal, o erro passa a ser praticamente incorrigível ou, ao menos, dificilmente corrigível, em virtude do engessamento que implica.

E ao criar uma espécie de interpretação ex vi legis (impositiva), parte-se de algum modo do pressuposto de que o direito já está previamente dado, especialmente com a denúncia e a participação do órgão da acusação, quando, em verdade, o crime é socialmente construído durante a ação penal inclusive, por meio dos elementos de prova produzidos na instrução, de modo a provar a prática de uma infração penal (típica, ilícita, culpável e punível) imputável objetiva e subjetivamente aos seus autores. Nesse contexto, a sentença penal é a culminação dos processos primários e secundários de criminalização (reação e interação social), porque o crime não é só o que a lei classifica como tal, mas também o que os promotores dizem, o que os advogados argumentam e o que os juizes decidem. Enfim: não existem fenômenos jurídicos, mas apenas uma interpretação jurídica dos fenômenos, razão pela qual, por meio da interpretação judicial, não se descobre um sentido ou um direito pré-existente; antes, cria-se por meio de um processo que não é meramente lógico-subsuntivo, e sim analógico, complexo.

Por isso não há violação ao sistema acusatório, nem necessariamente comprometimento da imparcialidade judicial – que pode ser disfarçada sob mil formas, porque, na emendatio, o juiz simplesmente dá a sua própria interpretação aos fatos, conforme é seu dever.

Finalmente, a pretexto de evitar que o juiz se converta em acusador, na verdade, se converte o acusador em juiz, ditando a este como pode interpretar/julgar/condenar, exatamente, apequenando o papel do juiz. No fundo, se está a transformar, portanto, o juiz numa espécie de ventríloquo a serviço do órgão da acusação, por meio de uma divisão de funções excessivamente rígida, em que o Ministério Público, além de dono da ação penal, passa a ser também senhor da interpretação.

Não quer isso dizer, porém, que, no caso de emendatio libelli, não possa o processo ser eventualmente anulado, por ofensa ao contraditório e ampla defesa, a ser analisado caso a caso. É que haverá situações em que a emenda é de tal modo radical ou surpreendente que a falta ou deficiência da defesa será inevitável, a justificar a anulação, especialmente em virtude da superprodução de leis penais, muitas das quais desconhecidas, total ou parcialmente. Assim, a evitar a anulação do processo, é conveniente que o juiz abra vista às partes a fim que se manifestem a respeito do assunto.

NOTAS

1 Nesse sentido: Fauzi Hassan Choukr (Código de processo penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005), Aramis Nassif (Sentença penal: o desvendar de Themis. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2005), entre outros. Criticamente sobre a mutatio libelli, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. Criticamente sobre a emendatio libelli, Andrei Schmidt. Crítica ao JuraNovit Curia. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 13, n. 157, p. 9, dez. 2005; e Moysés Neto. A questão da denotação jurídica em Luigi Ferrajoli: capitulação do fato e filosofia da linguagem. Porto Alegre: Mimeo, 2006.

2 Art. 383. O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave. Art. 384. Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de 8 (oito) dias, fale e, se quiser, produza prova, podendo ser ouvidas até três testemunhas. Parágrafo único. Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério Público possa aditar a denúncia ou a queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, abrindo-se, em seguida, o prazo de 3 (três) dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três testemunhas.

3 Na verdade, a tese principal, de violação do sistema acusatório e comprometimento total ou parcial da isenção, teria diversas outras implicações, tais como: 1) impossibilidade de prosseguir no processo do juiz que decretou medida constritiva contra o réu (v.g., busca e apreensão, prisões etc.); 2) impossibilidade de o juiz decretar qualquer medida constritiva de ofício; 3) impossibilidade de o juiz proceder ao interrogatório e inquirição de testemunhas diretamente, tarefa que deverá ser conferida ao órgão da acusação exclusivamente; 4) impossibilidade de o juiz recorrer de oficio de certas decisões; 5) impossibilidade de o juiz condenar quando o Ministério Público pedir a absolvição em alegações finais; 6) impossibilidade de o juiz rejeitar pedidos de arquivamento; mas se o fizer, não poderá atuar na eventual ação penal; 7) impossibilidade de o juiz que proferiu sentença voltar a atuar no processo posteriormente anulado; 8) impossibilidade de o juiz requisitar inquérito de ofício; 9) impossibilidade de o Ministério Público recorrer nos casos em que pediu a absolvição por falta de interesse de agir; 10) etc.

Paulo Queiroz

Doutor em Direito (PUC/SP), é Procurador Regional da República, Professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e autor do livro Direito Penal, parte geral, S. Paulo, Saraiva, 3ª edição, 2006.

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